A supranacionalidade da internet não leva necessariamente à extraterritorialidade das normas, isto é, à possibilidade de aplicação da lei de um país a crimes cometidos fora de seu território. No entanto, para que seja feita uma regulamentação adequada e eficaz das redes sociais, é preciso que as leis dos países tenham certas regras em comum e que tratados internacionais normatizem a matéria. Essa é a opinião de especialistas no assunto que participaram do XI Fórum Jurídico de Lisboa, no último mês.
Presidente da comissão de juristas responsável por elaborar um anteprojeto de regulação da inteligência artificial no país, o ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, do Superior Tribunal de Justiça, afirmou à revista eletrônica Consultor Jurídico que a aplicação das leis nacionais ou regionais de proteção de dados aos serviços e plataformas digitais tem suscitado questões de difícil e variada resposta.
“O direito ao esquecimento, ou à desindexação de conteúdos dos motores de busca da internet, por exemplo, levou a uma queda de braço das autoridades europeias com empresas com sede nos Estados Unidos, que nem por isso deixaram de aplicar a legislação europeia. No Brasil, houve várias liminares judiciais que determinaram a remoção de conteúdos ilícitos ou o fornecimento de informações sobre IPs, com base no Marco Civil da Internet. O combate à desinformação trará agora novos desafios”, avaliou Cueva.
Por sua vez, a juíza federal Caroline Tauk, coordenadora acadêmica do Centro de Inovação, Administração e Pesquisa do Judiciário da FGV Conhecimento, apontou que é um grande desafio promover uma regulação mundial das redes sociais.
“O discurso público, ou seja, os locais onde as pessoas exercem sua liberdade de expressão, vem ocorrendo de forma crescente na internet e, por isso, há uma intensa participação das plataformas de redes sociais e dos serviços de mensageria. Regular a internet implica discutir legislações voltadas a regulamentar o uso das plataformas digitais”, disse Caroline à ConJur. “Na Uniao Europeia, temos o Digital Service Act (DSA), de alcance regional, e no Brasil temos o Projeto de Lei 2.630/2020, de alcance nacional. O caráter supranacional da internet não leva necessariamente à extraterritorialidade das leis. Para isso, é preciso que haja tratados ou outros atos internacionais que harmonizem as normas aplicáveis aos países signatários — um desafio enorme no contexto mundial atual”, completou ela.
Supranacionalidade da internet
Carlos Blanco de Morais, professor catedrático de Direito Constitucional da Universidade de Lisboa, acredita que o caráter supranacional da internet pode levar a uma aplicação extraterritorial das leis de regulação das plataformas digitais. Esses marcos regulatórios, porém, devem ser criados por meio de tratados internacionais entre os Estados, e não por normas de caráter constitucional.
De acordo com ele, as legislações voltadas a regulamentar o uso das plataformas deverão ser resultado da aproximação de nações democráticas interessadas em consolidar normas em forma de convenções.
Já o ex-advogado-geral da União Luís Inácio Adams destacou que a extraterritorialidade tem hoje sua face mais visível na tentativa dos Estados de regular a atuação das plataformas digitais, sobretudo contra a onda de fake news. Mas esse fenômeno não é exatamente novo e extrapola o âmbito da internet, podendo ser observado, por exemplo, no combate à corrupção e ao desmatamento, e até na elaboração de políticas púbicas.
O ministro da Justiça e Segurança Pública, Flávio Dino, entende que a regulação das redes sociais é fundamental para proteger a democracia e seus valores. Segundo ele, isso deve ser feito em nível nacional, por meio das instituições de Estado, mas, por envolver ameaças de alcance mundial, é preciso que o tema também seja regulado de forma supranacional.
Para o ministro do Supremo Tribunal Federal Gilmar Mendes, não é possível esperar que a autorregulação das plataformas digitais parta justamente de big techs que “lucram com o caos”. De acordo com o decano do STF, o ambiente digital está impondo desafios significativos à governança, e o assunto não pode mais ser tratado por juristas de forma blasé. O magistrado usou como exemplo o 8 de janeiro, em que bolsonaristas invadiram e depredaram as sedes dos Três Poderes, em uma espécie de “golpe por terceirização”.
“Ninguém poderia seriamente sustentar que esse putsch terceirizado ocorreria sem a complacência das grandes plataformas de tecnologia, que convenientemente fornecem ao populismo autoritário a oportunidade de se portar como leão entre ovelhas. O prognóstico parece tanto mais acertado porque igualmente correta é a premissa contextual na qual se assenta: revelou-se implausível esperar autorregulação por parte daqueles que lucram com o caos”, analisou Gilmar.
Na opinião de outro ministro do Supremo, Luís Roberto Barroso, já não há como discutir a necessidade de regulação das plataformas digitais. A questão agora é decidir quando e como elas serão reguladas. Segundo ele, o modelo adotado pela União Europeia, a “regulação autorregulada”, que está presente no Projeto de Lei 2.630/2020, é uma boa alternativa para o Brasil.
O ministro observou que há dois modelos puros de regulação das plataformas no mundo, a regulação estatal e a autorregulação. No entanto, ele citou como modelo ideal para o Brasil o que foi adotado pela União Europeia, a “regulação autorregulada”. “Tem-se o arcabouço geral principiológico estatal e o dever de as plataformas terem termos de uso especificando quais são os conteúdos que ela não vai aceitar. Idealmente, no sistema de regulação autorregulada, as próprias plataformas implementam essa legislação.”
Sérgio Rodas é correspondente da revista Consultor Jurídico no Rio de Janeiro.