Renato Ribeiro: Consequências da cassação do registo de Deltan

A cassação do mandato de um político sempre é sucedida por fortes emoções populares. Por um lado, há quem comemore a decisão da Justiça Eleitoral. Por outro, sempre haverá aqueles que dirão que tudo não passou de uma conspiração para retirar um legítimo representante do povo. Todas as centenas de prefeitos, vereadores, deputados, senadores e até governadores que tiveram mandatos cassados pelo TSE e pelos TREs dizem isso. Com Deltan Dallagnol não é diferente.

Alegrias ou lamúrias à parte, a sociedade brasileira deve-se pautar pela lei. E coube ao Tribunal Superior Eleitoral dar a interpretação final sobre o registro de candidatura do ex-procurador do MPF (Ministério Público Federal).

No caso em questão, a ordem dos acontecimentos importa. Em 15 de agosto de 2022 encerrou-se o prazo para o registro de candidatura e abriu-se o prazo de cinco dias para que federações, coligações, partidos, candidatos e o próprio Ministério Público Eleitoral oferecessem a tecnicamente chamada ação de impugnação ao registro de candidatura.

Logo na sequência, abriu-se o prazo de sete dias para que houvesse defesa do impugnado. E assim o processo judicial seguiu seu curso com parecer da Procuradoria Regional Eleitoral e julgamento no plenário do Tribunal Regional Eleitoral do Paraná. Esse julgamento ocorreu após 2 de outubro de 2022, dia das eleições. Como afirmado, essas datas, especialmente o dia das eleições, importa muito. Deixemos essa informação guardada para retomar mais adiante.

Outras datas importam também. Como membro do Ministério Público, a legislação impõe que o pretenso candidato se desincompatibilize das suas funções [1] em seis meses antes das eleições. É vedada, por força de lei, a filiação partidária de magistrados e membros do MP. Deltan pediu exoneração do cargo dia 3 de novembro de 2021, 11 meses antes das eleições.

A discussão se deu justamente sobre esses fatos. Segundo os autores da impugnação, a precoce saída do MPF não implicou tão somente o nobre fato de renunciar-se a alguns meses de salário de mais de R$ 30 mil e dedicar-se integralmente às atividades políticas. Àquela época, aliás, fazer campanha eleitoral explícita, com pedido de voto, consistiria ilícito de campanha antecipada. A impugnação trouxe aos autos que o então candidato respondia por 15 procedimentos administrativos diversos, que poderiam levar à demissão dos quadros do MPF, como ocorrera dias antes com o Diogo Castor, ex-procurador que também havia atuado na Lava-Jato.

As datas, tão importantes, revelam que o mais grave dos procedimentos chegou ao CNMP (Conselho Nacional do Ministério Público) em 28 de outubro de 2021, após defesa nos autos do então procurador. Assegurados ampla defesa e contraditório. Dallagnol pediu exoneração no dia 3 de novembro. Seis dias depois. Caso fosse demitido do serviço público, a Lei Complementar nº 64/1990, alterada pela Lei Complementar 135/2010 (Lei da Ficha Limpa), claramente impediria qualquer plano político de Deltan, dada a redação do artigo 1º, I, alínea o, que considera inelegíveis “os que forem demitidos do serviço público em decorrência de processo administrativo ou judicial, pelo prazo de 8 anos, contado da decisão, salvo se o ato houver sido suspenso ou anulado pelo Poder Judiciário”. Com o pedido de exoneração, esse risco estava descartado. Obviamente, não se pode punir com demissão quem já não é mais servidor público.

Contudo, na impugnação outra hipótese de inelegibilidade, prevista em outra alínea da mesma Lei da Ficha Limpa foi debatida. Tratava-se da rara condição prevista na alínea q: os magistrados e os membros do Ministério Público que forem aposentados compulsoriamente por decisão sancionatória, que tenham perdido o cargo por sentença ou que tenham pedido exoneração ou aposentadoria voluntária na pendência de processo administrativo disciplinar, pelo prazo de oito anos.

Fernando Frazão/Agência Brasil

A sua defesa afirmou que se tratavam de procedimentos administrativos diversos, que não levariam à demissão. Alegou-se que a procedência da ação levaria à vedada interpretação extensiva do texto legal sobre restrição dos direitos políticos. Por outro lado, os autores da impugnação afirmaram que a sindicância, no regimento do CNMP, tem natureza jurídica de processo administrativo disciplinar, posto que antecedida de defesa do sindicado e que consistiria etapa que, em tese, poderia levar à demissão. Afirmou também que a própria legislação não fazia diferenciação entre as múltiplas formas de procedimentos. Constavam 15 procedimentos contra o ex-procurador que, à época da exoneração, não haviam sido suspensos pela justiça ou arquivados administrativamente. E foi o entendimento dos autores que prevaleceu.

Postos tais situações e argumentos, é necessário analisarmos temas jurídicos não triviais que efervesceram durante o julgamento e tomaram conta da cena jurídico nacional: interpretação teleológica da norma, interpretação extensiva, futurologia e consequências imediatas da cassação.

Comecemos pela interpretação teleológica. O que desejou a população que assinou a iniciativa popular da Lei da Ficha Limpa e os legisladores que a subscreveram e a aprovaram? Justamente que vereadores, deputados, senadores, prefeitos, governadores e presidentes que estivessem sofrendo processo disciplinar que pudessem levar à cassação dos seus mandatos não pudessem usar a faculdade da renúncia para se eximir da inelegibilidade e voltassem aos cargos públicos eletivos logo na sequência.

À época, era comum ver deputados renunciarem aos seus cargos diante da cassação por quebra de decoro parlamentar e lançarem-se novamente como candidatos nas eleições seguintes. Conquistavam novos mandatos como se nada tivesse ocorrido. O mesmo ocorria com prefeitos e vereadores, nas hipóteses de cassação regidas pelo antigo e ainda vigente Decreto Lei 201/1967.

Para por fim a essa situação elaborou-se o texto previsto na alínea k: “o Presidente da República, o Governador de Estado e do Distrito Federal, o Prefeito, os membros do Congresso Nacional, das Assembleias Legislativas, da Câmara Legislativa, das Câmaras Municipais, que renunciarem a seus mandatos desde o oferecimento de representação ou petição capaz de autorizar a abertura de processo por infringência a dispositivo da Constituição Federal, da Constituição Estadual, da Lei Orgânica do Distrito Federal ou da Lei Orgânica do Município, para as eleições que se realizarem durante o período remanescente do mandato para o qual foram eleitos e nos oito anos subsequentes ao término da legislatura”.

Durante a tramitação do Projeto de Lei da Ficha Limpa, foi introduzida a já mencionada alínea q, destinada a magistrados e membros do Ministério Público. O legislador quis abranger essas duas importantíssimas categorias de profissionais no texto da nova lei. Como mencionada, uma hipótese rara porque raros são os magistrados e membros do Ministério Público que abandonam suas carreiras para lançarem-se à política. E mais raros ainda são aqueles que o fazem na pendência de resolução de processos administrativos.

O caso Deltan Dallagnol entrará para os livros de direito eleitoral como precedente importante. Seu provável ineditismo, ainda mais em se tratando de um político tão popular e que atrai par si tanta polarização, justifica todo o debate, curiosidade sobre o tema e a própria redação desse artigo.

O segundo ponto controvertido é a interpretação extensiva. Não ocorreu. O voto do ministro Benedito Gonçalves, relator do processo, apresentou o conceito de fraude à lei, em que o agente, consciente da norma jurídica, tenta se esquivar de sua aplicação por meio de ação voluntária. Ficou claro nos autos que Deltan poderia vir a ser demitido dos quadros do MPF. Pediu demissão para evitar a incidência do texto previsto na alínea “o” e provocou o arquivamento natural dos processos administrativos contra si. Mas o contexto e as datas atraíram a incidência da norma da alínea “q”. A votação foi unânime e contou com participação dos também ministros do STF Alexandre de Moraes, Carmem Lúcia e Kássio Nunes Marques.

O que resta à defesa de Deltan Dallagnol? Há previsão legal para oposição de embargos de declaração. Como sabido, embargos de declaração são previstos pelo artigo 275 do Código Eleitoral e se destinam a sanar obscuridade, dúvida ou contradição contida no acórdão. Não se prestam a modificar o mérito da decisão. Há também previsão legal para recurso extraordinário, de matéria exclusivamente constitucional, a ser remetido ao STF. Mas mesmo esse recurso não deve prosperar. Primeiro porque a Lei das Inelegibilidades, (com a ampliação dada pela Lei da Ficha Limpa), é lei complementar. Infraconstitucional, portanto.

O próprio recurso não poderia debater matéria infraconstitucional e teria a fragilidade de cingir-se apenas a temas mais abstratos como direitos políticos e princípios. Por isso mesmo a máxima reiterada que a “última palavra em matéria eleitoral é dada pelo TSE”. Segundo porque três atuais ministros do STF já compõem a corte do TSE, participaram do julgamento e votaram com o relator. No STF o recurso já partiria de um placar desfavorável.

Quanto às reclamações e críticas que a Justiça Eleitoral teria usado de futurologia para inferir que a precoce saída do ex-procurador do MPF tenha tido motivação de esquivar-se de eventual punição e inelegibilidade, resta-nos esclarecer que esse argumento não encontra guarida na doutrina e nem na assentada jurisprudência. As hipóteses de inelegibilidades, ampliadas pela Lei da Ficha Limpa, constituem um filtro que faz com que aqueles que se enquadrem nas situações previstas sejam impedidos de acessar os cargos públicos eletivos por meio do indeferimento do registro de candidatura.

Em outras palavras e de modo mais didático e simples, caso Dallagnol tivesse apenas deixado o MPF e se dedicado à outras atividades profissionais que não se lançar como candidato a cargo eletivo, nada lhe haveria ocorrido. Com efeito, uma vez que o ex-procurador tentou candidatar-se, o filtro legal precisou ser acionado para verificar as condições fáticas por trás do pedido de exoneração e aplicação do filtro legal da alínea “q”. Houve o devido enquadramento legal e votação unânime pelo indeferimento do registro de candidatura e cassação do diploma.

Como se era de esperar com esse tipo de decisão judicial envolvendo um político tão popular, abriu-se o debate sobre as suas consequências imediatas. A resposta é bastante simples. Novamente, a polêmica retórica termina mediante a leitura da literalidade da lei. O resultada da procedência da ação de impugnação ao registro de candidatura é o indeferimento do registro de candidatura e a cassação do diploma, caso já expedido.

A diplomação dos deputados federais eleitos pelo estado do Paraná ocorreu em dezembro de 2022. A diplomação encerra o processo eleitoral e o diploma habilita o diplomado a tomar posse. Como o diploma foi cassado, Deltan não está mais apto a ser deputado federal. Houve determinação, nos termos do acórdão, de posse ao suplente. Cabe à Câmara dos Deputados apenas a formalidade de tomar ciência da decisão judicial, nada podendo fazer para reformá-la.

Quanto à suplência, entra mais um novo debate acalorado. Como dito no começo deste artigo, as datas importam para a resolução plena do caso. E o registro de candidatura do ex-procurador não estava julgado na origem (TRE-PR) quando das eleições. Deltan recebeu 344.917 votos. Por força do artigo 16-A da Lei 9.504/1997, nesse caso os votos do parlamentar com candidatura indeferida após as eleições são aproveitados pelo partido político. No caso, o Podemos-PR. Não haverá novo cálculo para distribuição das vagas de deputado federal. Esse entendimento foi assentado por meio do julgamento das ADIs 4.513 e 4.542 pelo Plenário do STF.

Para ter direito à cadeira, cada partido político precisa atingir o quociente eleitoral [2]. E por força do artigo 112 do Código Eleitoral, conforme entendimento do STF nessas ADIs, cada candidato deverá, para ser declarado eleito, ter obtido votação nominal mínima de 10% do quociente eleitoral. Essa norma é chamada de cláusula de desempenho, a qual foi introduzida para evitar-se situações em que candidatos com candidaturas ínfimas sejam beneficiados e alçassem mandatos eletivos exclusivamente ajudados pelos chamamos “campeões de votos”. Todos sabem que, nas eleições de 2002, o ex-deputado Enéas Carneiro (Prona-SP) foi um fenômeno eleitoral e levou consigo cinco parlamentares, um deles com apenas 275 votos.

Ocorre que Luiz Carlos Hauly, atual suplente do Podemos, recebeu apenas 11.925 votos. Abaixo dos 10% exigidos. A solução, entretanto, está no próprio Código Eleitoral, que afirma, no artigo 108, “estarão eleitos tantos candidatos registrados por um Partido ou coligação quantos o respectivo quociente partidário indicar, na ordem da votação nominal que cada um tenha recebido”. Novamente, o STF já se debruçou sobre o assunto na ADI 6.657 afirmando que o texto do referido artigo é constitucional.

Como as datas importam, Deltan Dallagnol teve o diploma cassado e perdeu o mandato de deputado federal. Também em razão das datas, o Podemos-PR aproveitará seus votos e continuará a ter assento na Câmara dos Deputados, por meio do novo deputado Luiz Carlos Hauly.

Renato Ribeiro de Almeida é coordenador acadêmico da Abradep (Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político) e conselheiro do Instituto Luiz Gama. É doutor em direito do estado pela USP e mestre em direito político e econômico pela Mackenzie. Autor de Direito Eleitoral, da editora Quartier Latin e coautor de Participe! Eleições, Partidos Políticos e Ideologias de A a Z, da editora Liquet.

Consultor Júridico

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