Rodrigo Spessatto: Súmula Vinculante 11 do STF

A 20ª sessão ordinária, de 13 de agosto de 2008, feita pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal, foi objeto de intensos e substanciosos debates pelos ministros da Suprema Corte, resultando na formulação e aprovação da Súmula Vinculante nº 11, cujo enunciado foi assim redigido:

“Só é lícito o uso de algemas em casos de resistência e de fundado receio de fuga ou de perigo à integridade física própria ou alheia, por parte do preso ou de terceiros, justificada a excepcionalidade por escrito, sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente ou da autoridade e de nulidade da prisão ou do ato processual a que se refere, sem prejuízo da responsabilidade civil do Estado.”

A redação do enunciado foi erigida com o escopo de tentar restringir os abusos na atuação estatal, quando da realização de prisões em flagrante e execução de mandados de prisão temporária ou preventiva, uma vez que em muitos casos o indivíduo era objeto de exacerbada privação da liberdade e desnecessária exibição pública, o que lhe acarretava humilhação e uma injusta antecipação da culpa perante a sociedade, inclusive, violando o Princípio da Presunção da Inocência.

Cabe asseverar que a discussão acerca do enunciado foi imediatamente após a ocorrência de prisões de vários membros da elite econômica e política do país, a exemplo do ex-prefeito de São Paulo Celso Pitta e do banqueiro Daniel Dantas, que foram algemados e expostos publicamente por toda a imprensa nacional, de modo que a sua criação foi possivelmente resultado de pressão da classe político-econômica a época dominante.

Impende mencionar, outrossim, que no mesmo ano foi editada a Lei federal nº 11.689, de 9 de junho de 2008, que incluiu o §3º ao artigo 474 do Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941 (Código de Processo Penal), preceituando que “não se permitirá o uso de algemas no acusado durante o período em que permanecer no plenário do júri, salvo se absolutamente necessário à ordem dos trabalhos, à segurança das testemunhas ou à garantia da integridade física dos presentes” [1].

Faz-se mister citar alguns precedentes representativos que motivaram a discussão acerca da criação da Súmula Vinculante nº 11, bem como redundaram na edição da referida Lei federal que acrescentou o §3º ao artigo 474 do Código de Processo Penal:

“HABEAS CORPUS. PENAL. USO DE ALGEMAS NO MOMENTO DA PRISÃO. AUSÊNCIA DE JUSTIFICATIVA EM FACE DA CONDUTA PASSIVA DO PACIENTE. CONSTRANGIMENTO ILEGAL. PRECEDENTES. 1. O uso legítimo de algemas não é arbitrário, sendo de natureza excepcional, a ser adotado nos casos e com as finalidades de impedir, prevenir ou dificultar a fuga ou reação indevida do preso, desde que haja fundada suspeita ou justificado receio de que tanto venha a ocorrer, e para evitar agressão do preso contra os próprios policiais, contra terceiros ou contra si mesmo. O emprego dessa medida tem como balizamento jurídico necessário os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade. Precedentes. 2. Habeas corpus concedido”. (HC 89429, relator(a): CÁRMEN LÚCIA, Primeira Turma, julgado em 22/08/2006, DJ 02-02-2007 PP-00114   EMENT VOL-02262-05 PP-00920 RTJ VOL-00200-01 PP-00150 RDDT nº 139, 2007, p. 240).

“ALGEMAS
 UTILIZAÇÃO. O uso de algemas surge excepcional somente restando justificado ante a periculosidade do agente ou risco concreto de fuga. JULGAMENTO  ACUSADO ALGEMADO  TRIBUNAL DO JÚRI. Implica prejuízo à defesa a manutenção do réu algemado na sessão de julgamento do Tribunal do Júri, resultando o fato na insubsistência do veredicto condenatório”. (HC 91952, relator(a): MARCO AURÉLIO, Tribunal Pleno, julgado em 07/08/2008, DJe-241  DIVULG 18-12-2008  PUBLIC 19-12-2008 EMENT VOL-02346-04  PP-00850 RTJ VOL-00208-01 PP-00257).

A título de curiosidade e a fim de contextualizar as possíveis razões que ensejaram a edição da Súmula Vinculante nº 11, ressalta-se que a Polícia Federal em 2003 fez apenas 18 operações, sendo que no ano de 2008 houve um salto para 216 ações policiais, ou seja, um vertiginoso crescimento de 1.100%. (FERRO, 2017)

Sabe-se que as operações policiais geralmente são acompanhadas pela imprensa televisiva e ocorrem ao nascer do sol, de modo que os alvos são comumente abordados em suas residências revelando a sua intimidade, sendo filmados e publicamente expostos em rede nacional em situação vexatória, cuja humilhação é enaltecida pela privação da liberdade com o uso de algemas.

Percebe-se, portanto, que houve uma preocupação da Suprema Corte em tutelar os direitos fundamentais dos indivíduos presos em flagrante ou cautelarmente, em especial diante do aumento significativo de operações policiais e, consequentemente, do elevado número de pessoas expostas publicamente em situações que violam o Princípio Estruturante da Dignidade da Pessoa Humana, além de outros postulados constitucionais que dele decorrem.

À vista disso, no embate em torno da redação definitiva de seu enunciado, os ministros do Supremo Tribunal Federal declararam a importância da tutela de alguns direitos fundamentais que nortearam a edição da súmula vinculante n.º 11, quais sejam:

1) Princípio da Dignidade da Pessoa Humana (artigo 1º, III, CF [2]);

2) Vedação ao Tratamento Desumano ou Degradante (artigo 5º, III, CF [3]);

3) Responsabilidade pelos danos à imagem e moral (artigo 5º, V, CF [4]);

4) Inviolabilidade da intimidade, vida privada, honra e imagem das pessoas (artigo 5º, X, CF [5]);

5) Respeito à integridade física e moral dos presos (artigo 5º, XLIX, CF[6]);

6) Princípio da Presunção de Inocência (artigo 5º, LVII, CF [7]);

7) Princípio do Livre Desenvolvimento da Personalidade (artigo 1º, III, CF);

8) Tutela da privacidade e identidade (artigo 5º, X, CF).

Destarte, constata-se que diversos direitos fundamentais foram objeto de discussão pelos ministros, notadamente os relacionados à imagem e honra dos presos que, diante da exacerbação do estado de privação da liberdade conjugada com a exposição midiática, restariam violados com reflexos também na antecipação da culpa pela sociedade, cuja mácula poderia ser irremediável igualmente infringindo outros postulados constitucionais e, quiçá, influenciar no próprio julgamento do acusado.

Conforme a doutrina de Luiz Alberto David Araújo, quando “houver a utilização indevida da imagem, poderá seu titular (qualquer pessoa que for tocada pela ordenação jurídica nacional) se opor”, de modo que “a utilização indevida da imagem, portanto, gera imediatamente direito de oposição do titular dessa imagem”, devendo haver “uma prestação jurisdicional rápida e eficaz”, com a aplicação do “poder acautelatório do juiz sempre e, em caso de dúvida, em favor do direito à imagem”, sendo que a “reprodução tardia da imagem poderá causar menos prejuízo do que sua exibição indevida imediata”. (ARAÚJO, 1996, p. 83)

Desse modo, resta indubitável que o direito à imagem, como desdobramento do Princípio Estruturante da Dignidade da Pessoa Humana, demanda uma rápida, eficaz e imediata tutela do Poder Judiciário, razão pela qual houve uma premente preocupação da Suprema Corte em estabelecer um comando judicial de sujeição obrigatória e erga omnes, por intermédio da edição do enunciado da Súmula Vinculante nº 11.

Por sua vez, consoante os ensinamentos de Marco Aurélio Cunha e Cruz, a honra seria o “conjunto de valores, qualidades morais, intelectuais que determinam o mérito do indivíduo no meio em que vive”, sendo a “projeção pessoal a partir da consideração alheia”, representando o “valor social do indivíduo, pois está conectado à sua aceitação ou aversão dentro dos círculos sociais em que se desenvolve”.

O referido jurista continua, dizendo que a “honra possui, pois, um duplo aspecto: o subjetivo, compreensivo das representações que o sujeito tem de si mesmo e a vontade de afirmar o próprio valor”, bem como o “objetivo, que seria a boa reputação ou fama”, podendo a honra então “ser considerada como a estima/sentimento que a pessoa tem de si mesma e a reputação que cada pessoa goza na sociedade ou grupo ao qual pertence”. (CUNHA E CRUZ, 2017, p. 20)

Não há dúvida que a exposição pública de uma pessoa algemada, além da depreciação interna a acarretar efeitos psicológicos negativos, irá resultar em estigma social prejudicando eventual boa reputação ou fama que o indivíduo possui junto aos seus pares, em total afronta à honra subjetiva e objetiva que são direitos de personalidade inerentes a qualquer ser humano.

A história recente demonstra que a truculência estatal é uma realidade e, especificamente no Brasil, as décadas que antecederam à Constituição de 1988 foram marcadas pela violência e perseguições, o que justifica o enorme e permanente cuidado do Poder Judiciário em tutelar possíveis violações a direitos fundamentais ligados à privação da liberdade.

Vale ressaltar que o Brasil é signatário do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (1966), que, em seu artigo 10, expressamente declara que “toda pessoa privada de sua liberdade deverá ser tratada com humanidade e respeito à dignidade inerente à pessoa humana” [8].

O mencionado Tratado Internacional também consigna em seu artigo 17, que “ninguém poderá ser objeto de ingerências arbitrárias ou ilegais em sua vida privada, em sua família, em seu domicílio ou em sua correspondência, nem de ofensas ilegais às suas honra e reputação”, sendo que “toda pessoa terá direito à proteção da lei contra essas ingerências ou ofensas” [9].

A Convenção Americana sobre Direitos Humanos, também denominada de Pacto de São José da Costa Rica (1969), internalizada no Ordenamento Jurídico brasileiro por meio do Decreto nº 678, de 6 de novembro de 1992, possui dispositivos semelhantes e foi adotada no âmbito da Organização dos Estados Americanos (OEA) igualmente para a proteção dos direitos fundamentais.

O seu artigo 5º preceitua que “toda pessoa tem o direito de que se respeite sua integridade física, psíquica e moral”, devendo a privação de sua liberdade “ser tratada com o respeito devido à dignidade inerente ao ser humano” [10].

Ademais, também estabelece o artigo 10 do Pacto de São José da Costa Rica, que “toda pessoa tem direito ao respeito de sua honra e ao reconhecimento de sua dignidade”, de modo que “ninguém pode ser objeto de ingerências arbitrárias ou abusivas em sua vida privada, na de sua família, em seu domicílio ou em sua correspondência, nem de ofensas ilegais à sua honra ou reputação”, sendo que “toda pessoa tem direito à proteção da lei contra tais ingerências ou tais ofensas” [11].

Dessa forma, olvidando-se do contexto político e social que norteou a sua criação, revela-se evidente que a Súmula Vinculante nº 11 foi erigida em consonância com os Tratados Internacionais de Direito Humanos, bem como objetivando a tutela de direitos fundamentais constitucionalmente protegidos, o que também legitima a sua eficácia erga omnes e efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal (artigo 103-A, CF [12]).

Destaca-se, outrossim, que o enunciado da Súmula Vinculante nº 11 foi editado com o precípuo escopo de coibir eventuais abusos perpetrados em face do preso, contudo, tem-se demonstrado igualmente útil e importante para respaldar a atuação dos agentes estatais. É o que se depreende dos seguintes julgados proferidos pelo Supremo Tribunal Federal (jurisprudência selecionada):

“O uso de algemas durante audiência de instrução e julgamento pode ser determinado pelo magistrado quando presentes, de maneira concreta, riscos à segurança do acusado ou das pessoas ao ato presentes. (…) II — No caso em análise, a decisão reclamada apresentou fundamentação idônea justificando a necessidade do uso de algemas, o que não afronta à Súmula Vinculante 11”. (Rcl 9.468 AgR, relator ministro Ricardo Lewandowski, P, j. 24-3-2011, DJE 68 de 11-4-2011).

“(…) nestes autos os reclamantes insurgem-se contra ato praticado por policiais em cumprimento ao mandado de prisão temporária decretado pelo Juízo da 2ª Vara Criminal da Comarca de Betim/MG. (…) Destaco, também, que o Juízo da 2ª Vara Criminal da Comarca de Betim/MG, ao decretar a prisão temporária dos reclamantes, consignou que o mandado deveria ser cumprido ‘com as cautelas previstas em lei, evitando qualquer abuso ou arbitrariedade por parte dos seus cumpridores” (…). No caso, a utilização excepcional das algemas foi devidamente justificada pela autoridade policial, nos termos exigidos pela Súmula Vinculante 11. Ficou demonstrada a existência de fundado perigo à integridade física dos conduzidos, de terceiros e dos agentes policiais que realizaram a escolta. Ademais, como bem destacado pelo MPF, ‘eventual nulidade decorrente do uso de algemas no cumprimento do mandado não vicia a prisão processual'”. (Rcl 8.409, relator ministro Gilmar Mendes, dec. monocrática, j. 29-11-2010, DJE 234 de 3-12-2010).

A anterior ausência de norma ou comando judicial vinculante acerca do uso de algemas, em verdade, acarretava uma enorme insegurança jurídica na atividade estatal concernente à privação da liberdade dos indivíduos, uma vez que qualquer alegação de falha procedimental poderia não apenas resultar no relaxamento da prisão em flagrante, como também em eventual nulidade do processo penal.

O hodierno entendimento sumular, portanto, possui dupla perspectiva, primeiramente no que se refere à proteção dos direitos fundamentais do preso, bem como a fim de respaldar a atuação dos agentes estatais em operações que resultam em privação da liberdade dos indivíduos. Assim, a redação da Súmula Vinculante nº 11 deve ser analisada como sendo o verso e anverso da mesma moeda, uma vez que será aplicada a depender do destinatário do seu enunciado.

Não obstante, é de se ressaltar que ainda pairam dúvidas sobre a sua interpretação, a exemplo da situação fático-jurídica relatada no seguinte julgado do Supremo Tribunal Federal (jurisprudência selecionada):

“A leitura do processo, especialmente do pronunciamento mediante o qual implementada a segregação, revela a ausência de manifestação do juízo criminal acerca da utilização das algemas. Embora evidenciado o emprego injustificado do artefato, a providência decorreu de ato administrativo da autoridade policial, situação não abarcada pelo verbete, no que alude à prática de ato processual. As algemas foram utilizadas um dia após a prisão, quando o reclamante já se encontrava na delegacia de polícia, tão somente no momento da exibição dos presos à imprensa. Eventual responsabilização do Estado ou, até mesmo, dos agentes envolvidos, decorrente dos fatos noticiados na inicial, deve ser buscada na via apropriada. Descabe potencializar o alcance da reclamação”. (Rcl 7.116, voto do relator ministro Marco Aurélio, 1ª T, j. 24-5-2016, DJE 135 de 29-6-2016).

Infere-se da citada decisão que o verbete sumular teria aplicação unicamente circunscrita à prática de atos processuais pelos agentes estatais, de modo que, em tese, restaria afastado nas hipóteses de realização de atos administrativos (não jurisdicionais), como no caso do uso de algemas no momento da exibição dos presos à imprensa, situação que teria ocorrido um dia após a prisão quando o custodiado já se encontrava na delegacia de polícia.

O entendimento externado no julgado da Suprema Corte, salvo melhor juízo, vai de encontro ao substrato fático que fundamentou a própria edição da Súmula Vinculante nº 11, porquanto o seu enunciado foi erigido a fim de tutelar o custodiado também quando de sua prisão em flagrante, cuja privação da liberdade não decorre de um prévio ato processual ou jurisdicional, tendo em vista que a sua comunicação ao Poder Judiciário é apenas ulterior, razão pela qual possui natureza de mero ato administrativo.

Destarte, entende-se que não há justifica idôneo e suficiente para diferenciar o uso de algemas na prisão em flagrante, de se utilização quando da exibição do preso à imprensa, mormente porque as duas situações não podem ser consideradas atos processuais. Noutros termos, tanto a prisão em flagrante como a apresentação do preso à imprensa não decorrem de ato jurisdicional, de modo que ambos os casos possuem a mesma natureza de ato administrativo.

Assim, conquanto os precedentes representativos tenham contribuído para o debate, formulação e aprovação da Súmula Vinculante nº 11, resta indubitável que a sua interpretação pelo STF não se demonstra uniforme, consoante se verifica na decisão prolatada na Reclamação nº 7.116, de Relatoria do ministro hoje aposentado Marco Aurélio Mello.

Por conseguinte, ao se deparar com certas incongruências jurisprudências que não encontram fundamento plausível para a conclusão adotada, fica o operador do direito temeroso acerca das possibilidades exegéticas que ainda podem ser adotados, malgrado exista comando judicial vinculante e que, em tese, deveria ser respeitado sob pena de violação ao Digesto Processual vigente, cuja sistemática privilegia a segurança jurídica, a uniformidade e a coerência das decisões (artigo 926, CPC [13]).

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Referências

FERRO, Alan Alves. A súmula vinculante n.º 11 e o uso de algemas, 2017. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/59290/a-sumula-vinculante-n-11-e-o-uso-de-algemas>. Acesso em: 29 jun. 2023.

ARAÚJO, Luiz Alberto David. A proteção constitucional da própria imagem. Belo Horizonte: Del Rey, 1996. p. 83.

CUNHA E CRUZ, Marco Aurélio Rodrigues da. Considerações sobre o direito fundamental à própria imagem / Marco Aurélio Rodrigues da Cunha e Cruz, Cristhian Magnus De Marco. Joaçaba: Editora Unoesc, 2017. p. 20.

Rodrigo Spessatto é mestrando em Direito pela Universidade do Oeste de Santa Catarina (Unoesc), especialista em Direito Público pela Universidade Potiguar (UNP) e procurador da Foz Previdência (Fozprev).

Consultor Júridico

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