Vivemos, hoje, sob a pressão de dois grandes ideais políticos: a democracia e o constitucionalismo. Erguidos em resposta às tragédias do século passado, a esperança é de que, cultivando-os intensamente, os campos de concentração da Alemanha nazista, os gulags do regime soviético e as torturas da nossa ditadura militar brasileira nunca se repitam. A esperança, vale lembrar, de quem cultiva ideias democráticas e segue entendendo a ditadura, tal como ela é: uma ditadura (ABBOUD, 2021, p.25) [1].
A democracia é um fundamento constitucional. Sua defesa, pois, não pode ser atribuição de um poder específico, mas, sim, dever intransigente de todo poder público. Neste artigo, pretendemos também defender a ideia de que a defesa da democracia, sob a égide do constitucionalismo democrático contemporâneo, é também um dever fundamental dos cidadãos que desejam operar neste regime.
Começaremos a desenvolver o argumento, portanto, a partir do fatídico dia da infâmia, ocorrido em 8 de janeiro de 2023. Exatamente uma semana após a posse do novo presidente da República, a Praça dos Três Poderes, em Brasília, foi tomada por supostos manifestantes que invadiram e destruíram o interior e exterior dos edifícios-sede dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, em um dos mais tristes, lamentáveis e violentos episódios da história republicana brasileira.
Esse ato golpista somente logrou êxito porque contou com a conivência e o incentivo, ainda que indireto, de diversos atores públicos e privados, de modo que o trágico 8 de janeiro de 2023 foi tão somente a culminação de um desastre anunciado por anos de gestação de narrativas golpistas, violentas e obscurantistas que, de súbito, tomaram a forma de ações concretas, de modo que, assim como Lenio Streck, Rafael Valim, Walfrido Warde e tantos outros, entendemos que o lavajatismo iniciou o processo de elaboração e incubação do ovo da serpente [2].
O dia da infâmia, portanto, representa o mais forte ataque à frágil democracia constitucional brasileira desde a sua criação, em 05 de outubro de 1988. Recentemente, Ayres Britto, ministro aposentado do Supremo Tribunal Federal, defendeu que a democracia é o “princípio dos princípios” constitucionais brasileiros, e que todos os demais princípios são conteúdo deste, inclusive o da separação dos poderes. Ayres Brito também falou sobre as depredações ocorridas em Brasília no dia 8 de janeiro, classificando tais acontecimentos como “um deliberado ataque à democracia, grave demais para ser esquecido” [3].
Concordamos com o ministro. De fato, alguns acontecimentos são graves e trágicos demais para serem esquecidos. Este pensamento, inclusive, culminou na publicação da obra Direito Constitucional Pós-Moderno, fruto da tese de livre-docência do professor Georges Abboud, em que se estudou à ascensão do regime nazista, em detrimento da República Democrática de Weimar [4].
A ideia, portanto, é bastante assertiva: Uma vez que, como comunidade civil, estejamos decididos que não podemos de modo algum retornar e retroceder a certos pontos políticos históricos como civilização, precisamos, inicialmente, entender e compreender como se chegou neste ponto indesejável para início de conversa. É preciso compreender para não se repetir.
Conforme mencionamos anteriormente, as democracias constitucionais vêm sofrendo com aquilo que já chamamos em outros textos de “combo obscurantista”, caracterizado pela polarização + teorias conspiratórias + fake news [5]. Tudo isso manipulado e estimulado através de plataformas digitais. Neste sentido, por exemplo, dois meses após os ataques golpistas à sede dos três Poderes, em 8 de janeiro, o ministro Gilmar Mendes defendeu a regulamentação das redes sociais e a responsabilização das plataformas por eventuais envolvimentos nos atos antidemocráticos. O ministro citou exemplos de países em que há modelos de regulamentação das mídias sociais, como a Alemanha, sem que a liberdade de expressão seja cerceada, e sim utilizada com responsabilidade [6].
Em semelhante sentido, o advogado-geral da União, Jorge Messias, reiterou discurso em prol da criação da Procuradoria Nacional de Defesa da Democracia. Nas palavras do advogado-geral da União: “A barbárie protagonizada nessa fatídica data, com a destruição dos prédios-sede dos Poderes da República e de objetos de valor inestimável, mostrou o quanto é necessário que o Estado possua uma estrutura que dê respostas e cobre responsabilidades pelas violações de bens jurídicos de alto valor social”.
Este é, pois, o ponto: direitos carregam consigo uma necessária e indissociável carga de responsabilidade, dever e accountability. Em um Estado Democrático de Direito, o cidadão espera, com razão, ser tratado com igual respeito e dignidade, tendo seus direitos e liberdades protegidas. É este o esforço da civilidade moderna. Não obstante, este mesmo cidadão deve, necessariamente, assumir também deveres fundamentais, por coerência lógica e funcional do sistema.
Conforme José Casalta Nabais (2002) [7], os deveres fundamentais seriam a face oculta dos direitos fundamentais. Esta face oculta que, assim como a face da lua, não obstante não se veja, é absolutamente necessária para a correta compreensão do indivíduo, e consequentemente, da condição humana em sede dos direitos fundamentais no âmbito de um Estado Democrático de Direito. Os deveres fundamentais, portanto, assim como os direitos fundamentais, integram o estatuto constitucional do cidadão. Não podemos ter apenas metade desta conversa, por mais inconveniente e impopular que possa parecer.
Por mais óbvio que possa parecer, muito embora atualmente o óbvio precise ser defendido e reforçado, em um Estado que se diz Democrático de Direito, o compromisso com a democracia e o Estado de Direito é, claramente, um dever fundamental. Não há, portanto, “um direito fundamental a defender golpe militar”. O já clássico paradoxo de Popper tratou de deixar isso claro. Assim, conforme perfeitamente explicitado por Lenio Streck, não podemos, a partir de um exemplo de hermenêutica dos pés virados, entender que a nova Lei de Defesa do Estado Democrático (14.197/2021) garanta a livre manifestação golpista, desde que feita de forma pacífica [8].
A escalada autoritária que culminou nos trágicos atos terroristas de 8/1/2023 é, portanto, ilegal e inconstitucional. Nesse sentido, o PSOL, entendendo ser dever do STF continuar a garantir as condições de uma esfera pública democrática e orientar a administração pública e o Judiciário no combate a uma série de práticas até então praticamente impunes ou cujas consequências eram inespecíficas, protocolou uma ADPF com o intuito de discutir o entendimento constitucional aplicado ao artigo 142 da Constituição.
De acordo com o partido, a ideia de uma intervenção militar retira a política das mãos dos civis, a quem a Constituição atribuiu o exercício dos Três Poderes independentes e harmônicos Também é prejudicial às próprias Forças Armadas, sobre as quais começa a pesar um “fardo de corresponder a ideais ressentidos e violentos de parte da população”.
Na ADPF, a legenda explica que as Forças Armadas não têm a prerrogativa de proteger os Poderes e intervir na vida política da nação. O papel de árbitro dos conflitos entre os Poderes é, na verdade, do STF, considerado o guardião da Constituição e da democracia.
Em outras palavras, aguarda-se que o Supremo Tribunal Federal esclareça que o artigo 142 da Constituição não transformou as Forças Armadas no superego da população. E que as pessoas não possuem o direito de pedir por golpe militar. E mais: que isso é crime.
A democracia e o Estado de Direito somente funcionam através de uma relação mútua, de modo que a existência e sobrevivência de uma pressupõe, necessariamente, a existência e sobrevivência da outra. A democracia é, portanto, mais que um valor moral a ser defendido na sociedade. É, pois, um dever fundamental dos cidadãos. Conforme sintetizou Zakaria (1997, p. 1) [9], quando se fala em democracia no ocidente, estamos na verdade falando sobre a poliarquia liberal republicana, ou seja, um sistema político marcado não apenas por eleições livre e justas, mas também pelo respeito ao império da lei, separação de poderes e proteção de liberdades, como liberdade de expressão, religiosa, propriedade, entre outras.
A ideia, portanto, é que democratas liberais vislumbram uma sociedade tolerante, inclusiva, pluralista e multiculturalista, composta por pessoas que aderem a uma variedade de sistema de crenças, nas quais ideias e heranças se chocam, eventualmente, com outras e competem por adesão na comunidade, de forma que o princípio da tolerância mútua, bem como, o respeito ao império da lei, evitam o conflito entre estes sistemas de crenças antagônicos. Esse common ground, para utilizar uma expressão dworkiana, somente faz sentido no chão comum da democracia. A democracia, portanto, passa a ser condição de possibilidade do Estado Constitucional de Direito.
Sabemos que, no mundo real, uma sociedade pluralista deve enfrentar dificuldades reais (e perigosas) com a convivência: isto porque, em uma sociedade pluralista complexa, não é fácil definir exatamente até onde vai o dever de tolerância mútua sob certas circunstâncias. Contudo, nossos desacordos morais devem ser resolvidos no seio e à luz da democracia. Esta é uma precondição inafastável e inegociável. Novamente, é a lógica do paradoxo de Popper.
Applebaum (2021, p. 19) [10], aduzira que Hamilton, John Adams e Thomas Jefferson, com apoio nas histórias e experiências grega e romana, tentavam descobrir uma engenharia institucional que evitasse que uma nova democracia se tornasse uma tirania, buscando construir uma democracia com base no debate racional, na razão e no compromisso, muito embora soubessem do sempre presente risco de uma explosão humana de irracionalidade, como vimos no dia 8 de janeiro de 2023.
Isto foi resolvido a partir do arranjo institucional de que uma instituição deve possuir o poder/dever de exercer o caráter contramajoritário quando necessário, evitando a tirania da maioria. Conforme Abboud (2021, p. 28) [11], o constitucionalismo forneceu à democracia diversas instâncias contramajoritárias para a proteção da própria ideia de democracia, de modo que o balanceamento entre democracia e constitucionalismo forma, portanto, o tecido social do processo civilizatório da maior parte das democracias constitucionais.
Assim, tem-se que a democracia atua a partir de seus impulsos de igualdade, enquanto o liberalismo atua conforme seu compromisso de proteção à liberdade aos indivíduos na sociedade, e o republicanismo, por sua vez, em sua severa visão das obrigações daqueles que governam (accountability), convergindo todos estes valores em um aspecto fundamental da poliarquia e do Estado Constitucional de Direito: o respeito ao império da lei e da democracia, estando todos, sem exceção, sujeitos a uma forte ideia de accountability.
Desta forma, Alexis de Tocqueville, com clarividência que ainda hoje nos impressiona, dizia com assertividade que a reclamação de direitos e a sua realização não são suficientes; os cidadãos também têm deveres. O dever de respeito e obediência ao império da lei é um deles. O dever de respeitar a democracia também. É este o chão comum que nos une, como dita sociedade civilizada.
A maior demonstração de amor e respeito que um cidadão verdadeiramente patriota pode oferecer ao Brasil deve se dar, em primeiro lugar, na defesa intransigente da democracia e das instituições que a representam e dão voz ao povo brasileiro, sendo condição de possibilidade para o desenvolvimento nacional e promoção de liberdade individual. As instituições nacionais, a divisão e complementação dos poderes, os pesos e contrapesos, e a ideia que ninguém está acima do império da lei e que todos estão sujeitos ao accountability, que somente coexistem no Estado Democrático de Direito, são as garantias para a estabilidade e harmonia entre os cidadãos. Defender a democracia, portanto, é mais que um imperativo categórico: é um dever fundamental do cidadão.
[7] NABAIS, José Casalta. A face oculta dos direitos fundamentais: os deveres e os custos dos direitos. Revista Direito Mackenzie, v. 3, n. 2, 2002. APA
José Gutembergue de Sousa Rodrigues Júnior é advogado, juiz leigo do TJ-CE, mestre em Ciência Política pela Universidade Federal de Campina Grande, especialista em Direito Público e pesquisador do Núcleo de Pesquisa de Interpretação e Decisão Judicial (Nupid).
Clara Skarlleth Lopes de Araújo é advogada, juíza leiga do TJ-PB, mestre em Ciência Política pela Universidade Federal de Campina Grande e pós-graduada em Direito Constitucional pela Universidade Regional do Cariri.