Sahade e Azambuja: Efeitos da ADI 4.233 sobre agentes de tributos

Este artigo aborda a Ação Direta de Inconstitucionalidade 4233 (ADI 4.233) que questiona a constitucionalidade do artigo 2º, incisos I e II, da Lei nº 11.470/2009 [1], e do artigo 24 e anexo V, da Lei nº 8.210/2002 [2], ambas do estado da Bahia.

O cerne da ação está relacionado ao critério de ascensão funcional para o cargo, que passou a exigir nível superior e mescla de atribuições com o cargo de auditor fiscal. A decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) parcialmente procedeu em relação aos dispositivos impugnados, mas a modulação dos efeitos da decisão torna-se fundamental para preservar a segurança jurídica e não trazer a arrecadação tributária do estado.

O artigo busca analisar essas questões, considerando o voto do ministro relator, Alexandre de Morais, e a expectativa do julgamento dos embargos de declaração pelos demais ministros. Atualmente, o julgamento está suspenso por pedido de vista do ministro Dias Toffoli.

Da ADI 4.233

Primeiramente, ressalta-se que o escopo deste artigo não consiste em discutir a decisão de mérito do STF, mas sim abordar a necessidade de modulação dos efeitos dessa decisão, uma vez que podem acarretar graves reflexos, conforme será exposto adiante.

Em suma, o objeto da ação é relacionado ao critério de ascensão funcional para o cargo de agente de tributos estaduais de nível superior e mescla de atribuições com as do cargo de auditor fiscal. Para o cargo de agente de tributos estaduais, a Lei nº 8.210/2002 passou a exigir nível superior, em substituição ao de nível médio. Posteriormente, a Lei nº 11.470/2009 modificou e ampliou a atribuição dos agentes de tributos estaduais, conferindo-os a atribuição de constituir crédito tributário referente às mercadorias em trânsito e à fiscalização de microempresas e de empresas de pequeno porte que sejam optantes do Simples Nacional.

O teor constitucional decorre do fato que a investidura em cargo diverso daquele que o servidor ocupava anteriormente só é possível mediante concurso público, que, com o advento da Constituição de 1988, tornou-se postulado inafastável, conforme artigo 37, inciso II [3].

Assim sendo, a decisão proferida pelo STF parcialmente procedeu em relação aos dispositivos impugnados. Todavia, sob a iminência de julgamento dos embargos de declaração, é de suma importância demonstrar a necessidade de modulação dos efeitos da decisão para preservar a segurança jurídica e, sobretudo, a arrecadação tributária do Estado.

Entretanto, preliminarmente, é importante ressaltar um ponto fundamental que não foi abordado na decisão proferida pelo STF, mas que foi levantado nos embargos de declaração: a falta de manifestação sobre a constitucionalidade ou inconstitucionalidade do artigo 1º da Lei 11.470/2009 e do artigo 107 do Código Tributário da Bahia por arrastamento.

Esses dispositivos permanecem íntegros, permitindo a continuidade do status anterior à declaração de inconstitucionalidade, isto é, permite que os Agentes de Tributos Estaduais possam continuar exercendo suas funções atribuídas. A omissão do STF sobre esses dispositivos pode acarretar grande insegurança jurídica, uma vez que a própria Administração Pública terá problema de saber como proceder, tornando imprescindível uma manifestação clara do tribunal a respeito sobre a inconstitucionalidade ou não por arrastamento desses outros dispositivos.

À vista disso, importa, nesse momento, verificar os questionamentos e a necessidade de modulação dos efeitos da decisão em sede dos embargos de declaração, especialmente em relação a: 1) segurança jurídica e ao direito adquirido dos agentes em exercício que estão em exercício antes da edição da Lei 8.210/2002; e 2) arrecadação tributária do estado e supremacia do interesse público.

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Violação à segurança jurídica e ao direito adquirido


A decisão proferida sugere que os Agentes de Tributos Estaduais nomeados após a promulgação da Lei nº 8.210/2002, no estado da Bahia, se tornaram aptos a desempenhar funções originalmente atribuídas aos auditores fiscais. Por outro lado, conforme o raciocínio adotado na decisão, os agentes de tributos estaduais concursados antes da alteração legal de 2002, ao serem admitidos com exigência apenas de diploma de nível médio, não poderiam assumir tarefas mais complexas sem violar a reserva constitucional que requer a realização de concurso público, conforme disposto no artigo 37, inciso II, da Constituição.

Entretanto, é importante destacar que os agentes de tributos estaduais têm desempenhado suas funções por um longo período, o que gera segurança jurídica e lhes confere o direito de permanecerem nos postos que ocupam há mais de 20 anos. A não modulação dos efeitos da decisão, excluindo os Agentes que atualmente atuam na área desde antes da edição da Lei 8.210/2002, acarreta uma grande insegurança jurídica ao estado da Bahia, uma vez que perderiam seus empregos e fonte de subsistência sem qualquer prazo pré-estabelecido para se adaptarem a essa mudança.

O princípio da segurança jurídica, conforme previsto no artigo 5º, XXXVI, da Constituição Federal, é um dos pilares do Estado democrático de Direito, pois protege tanto os interesses públicos quanto os privados [4]. Assim, nas palavras da ilustre doutrinadora Maria Di Pietro, o princípio da segurança jurídica visa resguardar que “mudança de interpretação de determinadas normas legais, com a consequente mudança de orientação, em caráter normativo, afetando situações já reconhecidas e consolidadas na vigência de orientação anterior” [5].

Nesse mesmo sentido, J. J. Gomes Canotilho aduz que “o homem necessita de segurança jurídica para conduzir, planificar e conformar autônoma e responsavelmente a sua vida. Por isso, desde cedo se consideravam os princípios da segurança jurídica e proteção à confiança como elementos constitutivos do Estado de direito” [6].

Portanto, é evidente a possibilidade de violação à segurança jurídica dos agentes de tributos estaduais e é imperativo que os efeitos da decisão sejam modulados para preservar aqueles que possuem formação comprovada de ensino superior e que foram investidos em seus cargos antes da vigência da Lei nº 8.210/2002, garantindo a continuidade das funções que lhes foram atribuídas.

Arrecadação tributária do Estado e supremacia do interesse público

Como principal destaque, com o fim de resguardar os princípios do interesse público e da segurança jurídica, o ministro relator, Alexandre de Moraes, optou por modular os efeitos da decisão, a fim de preservar os atos realizados pelos agentes de tributos estaduais, que foram amparados por normas estaduais presumidamente válidas.

Essa medida evitou o risco potencial de invalidar uma grande quantidade de autos de infração emitidos ao longo dos anos, bem como as cobranças judiciais em curso. Por outro lado, o ministro relator destacou a inviabilidade de estender os efeitos da decisão até a realização de um novo concurso público de nível superior, uma vez que isso poderia significativamente reduzir o alcance da decisão proferida pelo tribunal.

Cabe mencionar que, atualmente, não há auditores fiscais atuando nos postos de fiscalização do trânsito de mercadorias e na fiscalização de empresas optantes do Simples Nacional na Bahia, uma responsabilidade desempenhada pelos agentes de tributos estaduais. Inclusive, dados da Secretaria de Fazenda da Bahia apontam que, entre 2009 e 2021, os agentes de tributos estaduais lavraram 385.912 autos de infração referentes às operações de trânsito e empresas optantes do Simples Nacional, resultando em uma receita tributária constituída de mais de R$ 1.6 bilhão.

“Os tributos apresentam-se como receitas derivadas (por oposição às receitas originárias, produzidas pelo patrimônio público), arrecadadas pelo Estado para financiar a despesa pública.” [7]

Assim, o tributo representa uma fonte essencial de receita para o Estado, sendo sua principal forma de arrecadação. Sacha Calmon destaca que “o exercício da tributação é fundamental aos interesses do Estado, tanto para auferir as receitas necessárias à realização de seus fins” [8].

Em virtude disso, a não modulação dos efeitos da decisão até a realização de um novo concurso público de nível superior poderia acarretar na insolvência financeira da Bahia. Tal decisão teria um impacto direto no povo baiano e, por consequência, no Brasil como um todo, afetando áreas fundamentais para o bem-estar da população, tais como segurança pública, saúde, educação, infraestrutura e assistência social, entre outras.

Logo, a permanência dos agentes de tributos estaduais é crucial para a arrecadação tributária da Bahia, que depende desses profissionais para fiscalizar mercadorias e empresas optantes do Simples. A não modulação dos efeitos da decisão pode resultar na falência do Estado e prejudicar o bem-estar da população.

Do apelo ao legislador

Uma alternativa subsidiária, em consonância com a jurisprudência do Supremo, consiste em adotar a técnica do apelo ao legislador, caso este tribunal opte por não estender os efeitos desta decisão até a realização de um novo concurso público.

A técnica do apelo ao legislador implica na rejeição da inconstitucionalidade, condicionada, entretanto, à convocação do legislador para que tome as medidas corretivas ou adequações necessárias. Nessa perspectiva, torna-se imprescindível estabelecer um prazo razoável para que o legislador possa corrigir ou ajustar a situação de acordo com as necessidades apresentadas.

Inclusive, conforme exposto pelo ministro Gilmar Mendes, “essa qualificação não retira a eficácia desse pronunciamento, não havendo, até agora, registro de qualquer caso de recalcitrância ou de recusa do legislador no cumprimento de dever constitucional de legislar atestado pela Corte Constitucional” [9]. Situação essa que esvaziaria o receio do ministro Alexandre de Morais de não ser cumprida a decisão judicial proferida pela Suprema Corte.

Vale mencionar que o próprio governador da Bahia informou nos autos da ADI 4.233 que “já foi autorizado o concurso público para o provimento do cargo de Agente de Tributos Estaduais, com requisito de escolaridade superior”.

Com base nisso, essa proposta pode ser considerada uma solução viável para que a Bahia cumpra o teor da decisão do STF, ao mesmo tempo em que assegura a preservação dos princípios da segurança jurídica e do interesse público, evitando perdas na arrecadação estatal.

Ademais, destaca-se que o eminente Supremo já utilizou desse mecanismo em diversas ocasiões, a exemplo do julgamento da ADI 875/DF [10] (julgada em conjunto com as ADIs 1987, 3243 e 2727). e da ADI 5867/DF de 2021 [11].

Dessa forma, caso o STF não estenda os efeitos da decisão até a realização de novo concurso público, a técnica do apelo ao legislador pode ser utilizada para estabelecer um prazo terminativo para correção ou adequação da situação. Essa medida permitiria ao estado da Bahia cumprir a decisão do STF e preservar a segurança jurídica e o interesse público.

Ante o exposto, demonstra-se que o atual voto proferido pelo ministro relator, Alexandre de Morais, acompanhado pela ministra Cármen Lúcia e pelo ministro Edson Fachin traz um grande risco ao arrecadamento da Bahia e, por consequência, ao próprio bem estar do povo baiano.

 


[1] Lei nº 11.470/2009-BA: artigo 2º Ficam alterados dispositivos da Lei nº 8.210, de 22 de março de 2002, na forma a seguir: I – incisos I, III e IV do artigo 6º: “I – constituir privativamente: a) Créditos tributários, salvo na fiscalização de mercadorias em trânsito e nos estabelecimentos de microempresas e de empresas de pequeno porte que sejam optantes pelo Simples Nacional; b) Créditos relativos a compensações e participações financeiras decorrentes da exploração de recursos hídricos pra fins de geração de energia elétrica e de recursos minerais, por meio da lavratura de autos de infração” … “III – efetuar, privativamente, perícias, revisões fiscais e contábeis; IV – julgar, privativamente, no âmbito administrativo como representantes da Fazenda Pública, processos de impugnação de lançamentos de créditos tributários; …”. II – incisos II e III do artigo 7º: “II – planejar, coordenar e executar atividades de fiscalização de receitas estaduais, observado o Anexo II desta Lei; III – constituir créditos tributários, limitando-se ao trânsito de mercadorias e à fiscalização de estabelecimentos de microempresas e de empresas de pequeno porte que sejam optantes pelo Simples Nacional; …”. Lei nº 8.210/2002-BA.

[2] Artigo 24 – O enquadramento dos Auditores Fiscais e Agentes de Tributos Estaduais nas novas classes em que passam a escalonar-se os cargos que ocupam, a partir da data de início dos efeitos desta Lei, far-se-á diretamente, observada a correlação prevista no Anexo V.

[4] XXXVI – a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada.

Wilson Sahade Filho é advogado do escritório Lecir Luz e Wilson Sahade Advogados, doutorando em Direito pelo UniCeub. Mestre em Direito pelo Centro de Ensino Unificado de Brasília (UniCeub), ex-membro da 3ª Seção do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) e pós em Ordem Jurídica e Ministério Público pela Fundação Escola Superior do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios.

Consultor Júridico

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