Suprema Corte dos EUA proíbe universidades de favorecer minorias

A Suprema Corte dos Estados Unidos protelou até a véspera de seu recesso de verão (no Hemisfério Norte) o anúncio do que foi, provavelmente, sua decisão mais polêmica no ano judicial: por 6 votos a 3, o tribunal declarou que é ilegal a política das universidades de dar alguma prioridade a minorias raciais no processo de admissão, instituída com o nome de “ação afirmativa”. Trata-se de um ataque a um precedente de 45 anos, reafirmado por outras decisões.

Universidades como Harvard não

poderão mais praticar a ‘ação afirmtiva’

Divulgação/Harvard

Uma característica rara dessa decisão é que seis dos nove ministros da corte escreveram votos. O presidente da Suprema Corte, ministro John Roberts (que é conservador), foi o relator do voto da maioria. Outros três ministros conservadores, Clarence Thomas, Neil Gorsuch e Brett Kavanaugh, escreveram votos concorrentes. E os outros dois ministros conservadores, Samuel Alito e Amy Barrett, apenas aderiram ao voto do relator.

A ministra liberal Sonia Sotomayor escreveu o voto dissidente principal, ao qual aderiram as ministras, também liberais, Ketanji Brown Jackson e Elena Kagan. A ministra Ketanji escreveu um voto dissidente separado.

A decisão da corte, no julgamento de dois casos (Students for Fair Admissions, Inc. v. University of North Carolina e Students for Fair Admissions, Inc. v. President and Fellows of Harvard College), gerou polêmica na sociedade, como é natural. Mas gerou tantas ou até mais polêmicas nos votos dos ministros.

Os magistrados conservadores apresentaram seus argumentos contra a “ação afirmativa” e criticaram, às vezes acidamente, os votos dissidentes. As ministras liberais, por sua vez, apresentaram seus argumentos a favor da política e criticaram, às vezes acidamente, os votos dos conservadores.

Destacaram-se os votos do ministro Thomas, que é negro, e da ministra Ketanji, que também é negra. Thomas defendeu o fim da “ação afirmativa” e dedicou muitas páginas de seu voto a críticas à ministra Ketanji. E ela defendeu a “ação afirmativa” e criticou as opiniões de Thomas.

Roberts escreveu, no voto da maioria, que a Constituição e a lei dos direitos civis proíbem as faculdades e universidades de dar prioridade a minorias raciais. Roberts se referiu à 14ª Emenda da Constituição, ratificada após a Guerra Civil para garantir a proteção igual da lei aos negros libertados, e à Lei dos Direitos Civis de 1964.

Mas ele acrescentou que essa legislação também proíbe a discriminação com o propósito de elevar as pessoas que integram grupos em desvantagem (na sociedade). “Eliminar a discriminação racial significa eliminá-la por completo”, escreveu Roberts.

“Assim, a corte decide que a cláusula da proteção da igualdade perante a lei, que deve ser aplicada sem consideração a qualquer diferença de raça, cor ou nacionalidade, é universal em sua aplicação. A garantia de proteção da igualdade não pode significar uma coisa, quando aplicada a uma pessoa, e outra coisa diferente, quando aplicada a uma pessoa de outra cor”.

“O estudante deve ser tratado com base em suas experiências como um indivíduo, não com base em sua raça. Muitas universidades vêm fazendo o oposto há muito tempo. Ao fazê-lo, elas concluíram que as pedras de toque da identidade de um indivíduo não são os desafios vencidos, as qualificações construídas ou as lições aprendidas, mas a cor de sua pele. Nossa história constitucional não tolera essa escolha”, ele escreveu.

“Os programas universitários devem realizar um exame minucioso estrito (para admissões) e nunca usar a raça como um estereótipo ou um ponto negativo. Seus sistemas de admissão, embora bem-intencionados e implementados em boa-fé, falham nesse critério. Portanto, precisam ser invalidados, de acordo com a Cláusula da Proteção da Igualdade da 14ª Emenda.”

No entanto, Roberts fez uma ressalva: “Nada nesta decisão deve ser interpretado como uma proibição às universidades de levar em consideração uma discussão do candidato sobre como a raça afetou sua vida, seja através da discriminação, da inspiração ou de qualquer outro motivo”.

O ministro Clarence Thomas escreveu em seu voto separado que a “ação afirmativa” gera um estigma contra as minorias que alcançam sucesso em suas carreiras profissionais, com a especulação de que são bem-sucedidos devido a favoritismo, e não a mérito.

Para Thomas, as políticas das universidades de buscar diversidade racial resulta em uma incompatibilidade entre os candidatos de minorias e as escolas, porque tais estudantes são aceitos por uma instituição onde o mau desempenho é inaceitável, mas se torna inevitável.

O ministro, que ingressou na universidade pelo caminho da “ação afirmativa”, já havia criticado essa política anteriormente, quando escreveu, segundo o Washington Post: “A ação afirmativa tornou meu diploma da Faculdade de Yale praticamente imprestável. O paternalismo racial pode ser tão venenoso e pernicioso como qualquer outra forma de discriminação”.

Em seu voto, Thomas escreveu: “Apesar de estar dolorosamente consciente da devastação social e econômica que recaiu sobre minha raça e sobre todos que sofrem discriminação, a Constituição é daltônica — não distingue cores”.

A ministra Ketanji Brown Jackson rebateu: “A resposta (a esse argumento) é simples: nosso país nunca foi daltônico. Considerar que a raça é irrelevante na lei não torna a raça irrelevante na vida”. Ela considerou a decisão da maioria “uma tragédia para todos nós”.

“Em vista da longa história de preferências baseadas em raça, patrocinadas pelo Estado, dizer agora que alguém é vitimizado se uma universidade considera o legado de discriminação a favor de alguns candidatos é uma falha no reconhecimento da bem-documentada transmissão, por várias gerações, da desigualdade que ainda é uma praga na coletividade de cidadãos”, diz seu voto.

“Os programas de admissão das universidades lidam exatamente com essa desigualdade. Mas a decisão da maioria tolhe o progresso dessa política, sem qualquer base na lei, na história, na lógica ou na Justiça”, ela escreveu.

A ministra Sonia Sotomayor escreveu que os três ministros negros da Suprema Corte — ela, a única latina do colegiado, Thomas e Ketanji Brown Jackson — “se formaram em universidades e faculdades de Direito de elite, graças a programas de admissão conscientes de raça, apesar de terem antecedentes educacionais diferentes de seus colegas”.

Ela escreveu em seu voto que uma característica perturbadora da decisão da maioria é a de que “sequer foi feita uma tentativa de apresentar a extraordinária prova requerida para reverter precedentes”. E argumentou que “a oportunidade educacional igual é um pré-requisito para se alcançar a igualdade racial no país”.

“Com essa decisão, a corte interrompe o progresso e reverte décadas de precedentes por impedir que a raça não possa mais ser usada, de maneira limitada, na admissão de candidatos nas universidades, o que sempre resultou em benefícios fundamentais para o país.”.

“Ao tomar essa decisão, a corte cimenta uma regra superficial de daltonismo como um princípio constitucional, em uma sociedade endemicamente segregada, na qual a raça sempre teve importância e continua a ter. A decisão aprofunda a desigualdade racial, ao tornar esse canal para papéis de liderança menos diversificado”, argumento ela.

Para a ministra, a corte tomou dos administradores das universidades a capacidade de decidir o que consideram melhor para a instituição e para a sociedade. As instituições de ensino consideram que a diversificação do campus justifica a concessão de uma certa preferência a minorias raciais. Mas também privilegiam candidatos com outras características, como atletas bem-sucedidos e músicos, porque é do seu interesse.

A decisão da corte não toca nesse ponto, nem descarta as regras que garantem a inclusão no trabalho, no sistema de saúde, nas forças armadas etc.. Mas Roberts esclareceu, em uma nota de rodapé, que a decisão não afeta as políticas de admissão das academias militares, “em vista de interesses potencialmente distintos que as academias militares possam ter”.

Não existe cota racial para admissão de estudantes nas universidades dos EUA. Mas a Suprema Corte levantou a participação de alunos, por raça, em um período de dez anos (de 2009 a 2018), na Universidade de Harvard:


Percentual de estudantes admitidos por raça
Ano Negros (%) Latinos (%) Asiáticos (%)
2009 11 8 18
2010 10 10 18
2011 10 10 19
2012 10 9 19
2013 10 11 17
2014 11 9 20
2015 12 11 19
2016 10 9 20
2017 11 10 20
2018 12 12 19

Uma das principais alegações da organização que lutou contra o favorecimento a negros e latinos no sistema de admissão nas universidades foi a de que essa política desfavorecia os asiáticos. No entanto, a tabela da Suprema Corte mostra que a participação asiática equivale, praticamente, às de negros e latinos somadas.

João Ozorio de Melo é correspondente da revista Consultor Jurídico nos Estados Unidos.

Consultor Júridico

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