As disposições contidas no artigo 226 do Código de Processo Penal não são mera recomendação legal, e sim uma formalidade que deve ser observada, sob pena de nulidade do reconhecimento do suspeito.
Assim entendeu o 7º Grupo de Direito Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo ao acolher uma revisão criminal para absolver um homem acusado por roubo de uma residência, que havia sido condenado com base em reconhecimento feito pela vítima e em imagens de câmeras de segurança ligadas a outro crime de roubo.
O homem foi acusado de envolvimento em um assalto em 17 de fevereiro de 2016, junto com outros três suspeitos. Segundo a denúncia, o grupo teria invadido uma casa e roubado R$ 1,2 mil em dinheiro, um celular, um cordão e dois perfumes, avaliados em R$ 1,4 mil. Os criminosos, que estavam armados, deixaram a vítima amarrada e fugiram.
Em primeiro grau, o réu foi condenado a nove anos e dois meses por roubo majorado. A pena foi reduzida pela 4ª Câmara de Direito Criminal para sete anos e quatro meses, mantido o regime inicial fechado. Em revisão criminal, a defesa, patrocinada pelos advogados Nugri Campos e Ingryd Silvério, sustentou a insuficiência de provas.
De acordo com a defesa, o réu teria sido condenado somente por reconhecimento baseado em fotos publicadas nas redes sociais, sendo que a descrição prévia feita pela vítima indicava que o criminoso que o amarrou seria um homem pardo e de estatura média, e não negro e gordo, como é o acusado.
Além disso, os advogados sustentaram a nulidade do reconhecimento fotográfico e em juízo por não respeitar o procedimento do artigo 226, do CPP. Por fim, reforçaram o álibi apresentado em juízo de que o réu estaria trabalhando no dia e horário do crime, o que não teria sido considerado na sentença.
Ao acolher a revisão criminal, o relator, desembargador Marcelo Semer, reconheceu que o réu foi condenado com base em duas provas: imagens de câmeras de segurança emprestadas de outra investigação por outro crime de furto na mesma região, e o reconhecimento pela vítima, inicialmente por fotografia em sede policial e, posteriormente, ao ser apresentado sozinho em juízo.
Para Semer, a forma de produção das provas torna seu conteúdo “pouquíssimo confiável”. Inicialmente, ele analisou como o acusado foi envolvido na investigação. Os relatórios policiais informam que, em diligências para apurar o roubo ocorrido no dia 17 de fevereiro 2016, os policiais responsáveis pelo caso tomaram conhecimento de que outro furto de residência ocorreu em 24 de fevereiro, sete dias depois, na mesma região.
Como a vítima do primeiro delito havia visto um veículo Gol de cor cinza estacionado em frente à sua casa e as câmeras de segurança apresentadas pela vítima do segundo crime mostravam um veículo com as mesmas características, a polícia passou a investigar os delitos em conjunto. O réu teria aparecido em imagens do dia 23 de fevereiro de 2016, andando a pé pela região e, por isso, se tornou suspeito dos dois roubos.
“Não obstante a afirmação policial de que o réu aparecia na mídia fornecida pela vítima do segundo delito ter sido o pontapé inicial para sua investigação e posterior condenação, em nenhum momento esta identificação foi comprovada pela acusação. O laudo pericial apresenta imagens de péssima qualidade e que não confirma tal alegação policial. Na verdade, tal laudo confirma a alegação da defesa de que não é possível observar nenhuma informação específica em tais mídias além do tipo e marca dos veículos: nem a placa de tais veículos, nem a identidade da pessoa que anda na rua”, disse Semer.
O relator considerou que os depoimento dos policiais civis responsáveis pela investigação confirmam a insegurança da identificação do réu nas imagens. “O teor do depoimento policial indica que o ‘reconhecimento’ do réu pelos policiais civis se tratou de mero palpite depois que ele foi indicado informalmente por policiais militares anônimos como possível envolvido no delito por ter relação pessoal com outro suspeito”, dono do veículo Gol que teria sido visto no local do crime.
Semer também destacou que o réu era primário antes desse feito e nunca tinha sido sequer alvo de investigação. Assim, para o magistrado, não há indícios nos autos de que o acusado tivesse qualquer envolvimento prévio com o cometimento de crimes, nem foi apresentada razão para que ele fosse “conhecido dos meios policiais”, como alegado pelos investigadores do caso.
Reconhecimento nulo
Para o relator, o procedimento do artigo 226, do CPP, foi “propositalmente descumprido na esfera policial”, sendo que a vítima foi exposta a fotografias dos suspeitos inicialmente de maneira informal, junto aos investigadores. Apenas caso reconhecesse algum dos indivíduos de interesse à investigação, tal reconhecimento seria posteriormente “formalizado”.
O reconhecimento em juízo, na visão do desembargador, também não obedeceu ao procedimento legalmente estabelecido no artigo 226, do CPP. Isso porque os réus foram apresentados, um a um, sem qualquer outro cidadão em conjunto, nem mesmo outros suspeitos.
“Embora não exista nenhum indicativo de má-fé por parte da vítima, e ainda que este simulacro de reconhecimento venha sendo rotineiramente aceito pelos juízes de uma maneira geral, muitas vezes apenas como subsídio a outros elementos colhidos na instrução, fato é que a jurisprudência das duas turmas do Superior Tribunal de Justiça consolidou o entendimento de que o reconhecimento fotográfico feito em sede policial nem poderia ser sanado por reconhecimento realizado em juízo”, afirmou Semer.
Ele citou o julgamento do HC 598.886 em que o STJ passou a entender que as disposições contidas no artigo 226, do CPP, não se configuram mera recomendação legal, mas verdadeira formalidade que deve ser observada, sob pena de nulidade. Na ocasião, o relator, ministro Rogério Schietti Cruz, fez considerações sobre a fragilidade do reconhecimento fotográfico, que foram aplicadas por Semer no caso dos autos.
“A forma como foi feito o reconhecimento, portanto, foi infirmada por vieses insanáveis. Ao ver as fotos dos suspeitos em conjunto com o investigador, a vítima esteve exposta a seu viés, ainda que inconsciente. Não tendo reconhecido o réu na primeira ‘sessão’ de reconhecimento, teve o procedimento repetido, com resultado distinto. Exposta diversas vezes à imagem do réu vinculada ao delito, ao chegar na audiência e ser presentada novamente ao réu, desta vez vestido com os trajes do sistema de justiça criminal, apresentou total certeza de sua participação.”
Justamente para evitar situações como essa, o relator afirmou que a jurisprudência tem ressaltado que o procedimento não pode ser repetido, e que não há forma de se aproveitar a prova irregularmente produzida, como afirmou o Supremo Tribunal Federal no julgamento do RHC 206.846, sob relatoria do ministro Gilmar Mendes.
“Assim, não há como reconhecer a validade do reconhecimento fotográfico e nem do reconhecimento pessoal em juízo, já que feitos à revelia das formalidades legais estabelecidas no artigo 226 do Código Penal”, concluiu o desembargador.
Provas da inocência
Segundo Semer, as principais provas da inocência do acusado foram produzidas na instrução criminal originária, em especial o álibi para a data e horário do delito. O relator citou o depoimento de uma testemunha que confirmou que o réu estava trabalhando para ele no dia dos fatos como pintor, em expediente que ia das 7h às 17h. Outras duas testemunhas também confirmaram o trabalho do réu como pintor.
“Não bastasse o peticionário apresentar testemunha direta de que estava em outro local no dia dos fatos e diversas outras testemunhas que corroboram seu trabalho lícito como pintor, pediu para que fossem periciados seus telefones celulares para comprovar o local onde estava na data, diligência esta negada. Vale dizer, portanto, que a condenação contrariou as provas constantes dos autos”, disse.
Dessa forma, o relator afirmou que as únicas evidências contra o acusado eram uma “identificação impossível” em um vídeo feito na véspera de outro delito e um reconhecimento nulo. Por outro lado, ele considerou que o réu comprovou sempre ter tido trabalho lícito, ser pintor na época dos fatos e estar trabalhando no dia e horário do roubo.
“Dessa feita, inexistindo provas produzidas em juízo para afiançar a autoria do fato, estando a condenação do peticionário fiada em prova nula e vazia e havendo prova de sua inocência, resta a esta relatoria deferir o pedido revisional para absolver o acusado, com base no artigo 386, IV, CPP”, finalizou Semer. A decisão foi unânime.
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Processo 2104996-49.2022.8.26.0000