O desembargador Rebouças de Carvalho, da 9ª Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça de São Paulo, retirou de pauta a ação indenizatória movida pelo fotógrafo Sérgio Silva contra o estado de São Paulo, que seria julgada nesta quarta-feira (29/3). Silva perdeu o olho esquerdo ao ser atingido por uma bala de borracha que teria sido disparada pela Polícia Militar enquanto cobria uma manifestação em junho de 2013.
O caso já havia sido julgado em novembro de 2017, quando a indenização foi negada pelo TJ-SP, mas voltou ao tribunal paulista após o Supremo Tribunal Federal decidir pela responsabilidade do Estado em um caso semelhante. A retirada de pauta nesta quarta se deu em razão de uma alteração na composição da turma julgadora.
Em 2017, a turma julgada era formada pelos desembargadores Rebouças de Carvalho, relator; Décio Notarangeli, revisor; e Oswaldo Palu, terceiro juiz. Por questões internas da Câmara, a turma julgadora, hoje, é composta por Rebouças de Carvalho, relator; Pontes Neto, revisor; e Décio Notarangeli, terceiro juiz. Em razão da mudança, a defesa do fotógrafo pediu uma nova sustentação oral, já que o desembargador Pontes Neto não acompanhou o julgamento de 2017.
Para analisar essa questão, o relator retirou o processo de pauta, mas já adiantou que entende pelo não cabimento de nova sustentação oral por se tratar de um pedido de retratação. Mas a decisão só será tomada após a definição final da composição da turma julgadora. Caso retorne ao julgamento, o desembargador Oswaldo Palu já informou que pretende pedir vista.
O advogado de Silva, Maurício Vasques, afirmou que, independentemente da composição da turma julgadora, a expectativa é de que o TJ-SP revise seu posicionamento anterior para se adequar ao novo entendimento do STF de que o Estado responde por danos causados a profissionais de imprensa feridos por agentes públicos em manifestações de rua.
“Espero que o tribunal se sensibilize e aplique o novo paradigma do STF”, disse o advogado. Como a retirada de pauta se deu por uma questão considerada pequena por Vasques, a defesa espera que o caso não demore a ser julgado e reiterou a importância de uma nova sustentação oral: “O Sérgio está esperando há dez anos por essa justa reparação.”
O fotógrafo compareceu à sessão e lamentou o adiamento. “É mais um capítulo da violência que venho sofrendo nesses dez anos. Cada dia que passa é como se esses dez anos tivessem um peso maior. É difícil ter que lembrar do que aconteceu e sustentar uma defesa de algo muito óbvio. Vai alimentando um trauma, o tempo perpetua essa violência”, disse.
Culpa da vítima
Sérgio Silva perdeu o olho esquerdo ao ser atingido por uma bala de borracha que teria sido disparada pela Polícia Militar enquanto cobria uma manifestação em junho de 2013. Na Justiça, ele pediu indenização de R$ 1,2 milhão, referentes aos danos moral, estético e material. Além disso, pediu pensão mensal de R$ 2,3 mil, acrescido de R$ 316 para custeios médicos.
Mas, em 2016, o juiz Olavo Zampol Júnior, então titular da 10ª Vara da Fazenda Pública de São Paulo, negou o pedido de indenização e culpou o fotógrafo por ter levado o tiro. Silva teria, segundo o juiz, se colocado “em situação de risco” porque se posicionou entre os policiais e os manifestantes para registrar o protesto.
O magistrado criticou a conduta de Silva e afirmou que “alguns jornalistas buscam dar visibilidade à sua condição (de profissional da imprensa) em meio ao confronto ostentando coletes com designação disso, e mais recentemente, coletes à prova de bala e capacetes”, o que não foi o caso do fotógrafo.
Em 2017, a mesma 9ª Câmara de Direito Público manteve a sentença por unanimidade. Na ocasião, Rebouças de Carvalho disse que não bastava a demonstração do dano, sendo imprescindível, para a condenação do Estado, a clara comprovação de que o agente público tenha produzido o dano.
“A situação posta nos autos é dramática e, infelizmente, de consequências desastrosas para o autor, mas não é possível desvendar se o objeto que atingiu seu olho esquerdo fora realmente um projétil de bala de borracha”, afirmou o desembargador.
STF vira o jogo
Em 2021, ao julgar um caso semelhante de fotógrafo ferido em protesto, o STF decidiu que o Estado tem responsabilidade pelo dano. A corte analisou um processo movido pelo fotógrafo Alex Silveira, que perdeu 85% da visão de um olho durante a cobertura de uma greve de professores em São Paulo, no ano 2000.
Assim como no caso de Silva, Silveira também teve o pedido de indenização negado pela Justiça paulista, que o culpou pelo ferimento. Os ministros da Suprema Corte criticaram tal posicionamento. A ministra Cármen Lúcia qualificou como “quase bizarro” culpar o fotógrafo por ter levado um tiro.
O então ministro Marco Aurélio acrescentou que o TJ-SP “violou o direito ao exercício profissional”, e que, ao atribuir ao fotógrafo a responsabilidade pelo dano, “endossou ação desproporcional das forças de segurança durante eventos populares”.
O ministro Luís Roberto Barroso ressaltou que, pelo fato de a cobertura de uma manifestação ser de interesse público, é dever do Estado proteger os profissionais de imprensa. “O jornalista não estava lá correndo o risco em nome próprio, ele estava lá correndo o risco pelo interesse público. E todos nós temos o interesse de saber o que está acontecendo em uma manifestação”, disse.
O ministro Alexandre de Moraes, relator, classificou como cerceamento à liberdade de imprensa a exigência aos jornalistas para que abandonem a cobertura de protestos. Maior do que o risco que o fotógrafo assumiu ao cobrir a manifestação, segundo Moraes, seria “o Poder Judiciário entender que a cobertura jornalística não tem nenhuma proteção”.
Com isso, o estado de São Paulo foi condenado a indenizar Alex Silveira e o STF determinou o retorno do caso de Sérgio Silva ao TJ-SP para readequação do julgamento à nova tese (Tema 1.055). Para o advogado Maurício Vasques, o caso é emblemático na luta pela liberdade de imprensa e por ações mais responsáveis e equilibradas das polícias ao lidar com manifestações de rua.
“O próprio STF deu o caminho para o TJ-SP rever a decisão de 2017. Antes, o profissional de imprensa precisava provar que não se colocou em risco. Agora, é o Estado quem tem que provar ter buscado salvaguardar a integridade de fotógrafos, cinegrafistas e jornalistas que realizam a cobertura. E as imagens do dia e a quantidade de munição utilizada, bem como o fato de nenhum policial daquele batalhão ter se ferido, mostram que a letalidade veio de um lado só”, disse.