Urgente reforma da Lei de Impeachment, do crime de responsabilidade

Imagine que você precisa consertar um carro moderno, desses que têm milhões de softwares, sensores, sistemas, alarmes… Imagine, ainda, que você precisa fazer isso premido pelo tempo e pela necessidade: há um monte de gente do lado de fora da oficina gritando que você é um mau mecânico, ou que o carro não precisa de conserto, ou que essa ladainha já durou tempo demais. Ah, um detalhe: todo esse procedimento vai ser feito com ferramentas que consertavam Fuscas e Gordinis na década de 1950; algumas peças não se encaixam no modelo dos carros novos, e faltam os instrumentos modernos de programação para mexer nos programas de computador do veículo. Em linhas gerais, é assim que se percebe qualquer autoridade julgadora quando precisa aplicar a Lei de Crimes de Responsabilidade brasileira: com um instrumento obsoleto e incompleto em mãos, para resolver problemas de natureza político-jurídica extremamente complexa.

Mas qual a razão dessa “birra” com a Lei nº 1.079, de 10 de abril de 1950? Ela não “serviu” para o impeachment de Collor, Dilma e Witzel? “Servir”, mesmo, ela só serviu porque o Supremo Tribunal Federal (STF) foi provocado e definiu um “roteiro” do impeachment — no caso Dilma Roussef, por meio da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 378/DF — especificando quais partes da Lei não tinha sido recepcionadas pela Constituição de 1988, e suprindo lacunas graves deixadas por essa legislação. Explica-se.

É que a Lei nº 1.079, de 1950, foi editada ainda sob a égide da Constituição de 1946, quando os papeis da Câmara dos Deputados e do Senado eram diferentes dos que são desempenhados na Constituição de 1988. Por exemplo: naquela época, a Câmara era tribunal de processo e de pronúncia (colhia provas e liberava para julgamento), cabendo ao Senado apenas a sessão de julgamento em si; já no texto atual, compete ao Senado instaurar o processo (artigo 86, § 1º, II), de modo que toda a colheita de provas é realizada já na Casa da Federação. Pode parecer pouco, mas muda substancialmente a dinâmica processual, e esse é apenas um dos pontos.

Outro aspecto: há diversas autoridades citadas pela Constituição de 1988 como suscetíveis de impeachment, mas sobre as quais a Lei atual nada diz (até porque não existiam quando ela foi votada). É que, quando se fala em impeachment, a lembrança logo remete ao presidente da República, mas vale lembrar que a é preciso lembrar que a Constituição de 1988 — algo aprofundado por modificações posteriores — inovou ao prever também o crime de responsabilidade de autoridades fora do âmbito do Poder Executivo, tais como ministros do STF (artigo 52, II), dos Tribunais Superiores (artigo 102, I, c), membros de Cortes de Contas (artigo 102, I, c e 105, I, a), desembargadores (artigo 105, I, a), juízes de 1ª instância (artigos 96, III, e 108, I, a), Procurador-Geral da República (artigo 52, II), membros do Ministério Público (artigo 108, I, a e 96, III), assim como membros do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) (artigo 52, II). Até mesmo autoridades sem status de ministro de Estado, como comandantes das Forças Armadas (artigo 102, I, c e 52, I, in fine) e chefes de missão diplomática de caráter permanente (artigo 102, I, c) foram submetidos ao regime do impeachment. A maioria dessas não é alcançada pela Lei nº 1.079, de 1950, o que cria uma situação esdrúxula: são autoridades sujeitas ao regime do crime de responsabilidade, mas que não podem ser punidas porque a Lei simplesmente não lhes define as condutas puníveis[2]. Basta ver que, por exemplo, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) já deixou de punir desembargador, por atipicidade da conduta, vez que não havia lei que definisse seus crimes de responsabilidade[3].

Mais ainda: a Lei atual define diversos como crime de responsabilidade várias condutas inúteis, mas deixa de prever outros comportamentos gravíssimos como atentatórios à Constituição. Outro problema: o poder quase absoluto que a legislação atual confere aos presidentes das Casas Legislativas. Como está hoje a Lei (que quase nada traz a respeito, atraindo a incidência de regras regimentais sobre o assunto), a decisão de dar ou não andamento à denúncia por crime de responsabilidade cabe na prática exclusivamente ao presidente da Câmara dos Deputados ou ao presidente do Senado (este último, quando o processo e julgamento das autoridades não depende de autorização da Câmara). É muito poder para uma pessoa só… Ademais, não faz sentido “abrir” demais a legitimidade ativa (a denúncia pode ser feita às Casas Legislativas por qualquer cidadão), mas permitir que o andamento do processo dependa da vontade “soberana” do presidente da Casa.

Por todas essas razões, especialmente diante dessa necessidade premente de se atualizar a legislação sobre os crimes de responsabilidade, o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), determinou a instalação de Comissão de Juristas “com a finalidade de apresentar anteprojeto de lei para atualização da Lei nº 1.079, de 10 de abril de 1950” (artigo 1º do Ato da Presidência do Senado Federal nº 3, de 11 de fevereiro de 2022)[4]. Ao final dos trabalhos, o Colegiado entregou o anteprojeto — o qual, com pouquíssimas alterações meramente redacionais, foi apresentado pelo presidente do Senado na forma do Projeto de Lei (PL) nº 1.388, de 2023.

A proposição foi distribuída à apreciação terminativa (CF, artigo 58, § 2º, I) da Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ), onde recebeu emendas de qualquer Senador no prazo de cinco dias úteis (Regimento Interno do Senado Federal — RISF, artigos 91, I; 101, I e II, d; e 122, II, c e § 1º). Ao final desse período, foram apresentadas 58 emendas. Durante a tramitação na CCJ, ainda poderão ser apresentadas propostas de alteração pelo relator ou por qualquer outro membro daquele colegiado. Como se trata de proposta sujeita ao procedimento abreviado, contra a decisão da CCJ aprovando ou rejeitando o PL, caberá recurso ao Plenário do Senado. Após tudo isso, o PL, se aprovado, seguirá à Câmara dos Deputados, para que atue como Casa Revisora, nos termos do artigo 65, caput, da Constituição.

Ayrton Vignola/Fiesp

O PL soluciona — ou propõe solucionar — algumas dessas questões. São incluídas várias autoridades que a Lei atual esquece ou não trata (artigo 2º); estipula-se um regramento melhor para o papel do presidente da Casa, com recurso à Mesa e ao Plenário contra sua decisão (artigo 29); melhora-se a tipificação dos crimes de responsabilidade em espécie (artigos 6º ao 14), inclusive com a especificação de condutas sobre temas atuais, além de se dar tratamento mais adequado às regras de conexão (artigo 3º) e de competência (artigo 21); transforma-se a fase de pronúncia em algo realmente útil (artigo 58). Claro que há pontos mais controversos, como a delongada extensão dos prazos de processo, a restrição da legitimidade para apresentar denúncia perante as Casas Legislativas (a acusação das autoridades que são julgadas pelo Judiciário, por outro lado, está sendo facilitada), assim como a positivação da polêmica interpretação sobre a possibilidade de “fatiamento” da pena (artigos 67 e 68). Trata-se de aspectos que logicamente suscitarão o debate no Senado e, em caso de aprovação, também na Câmara dos Deputados, mas que mostram que o PL é um ponto de partida extremamente qualificado e avançado para o trabalho dos parlamentares. 

Assim, como se percebe, é inadiável discutir a reformulação da Lei de Crimes de Responsabilidade (Lei nº 1.079, de 1950), uma vez que ela é antiga, lacunosa e desatualizada. O PL que trata do tema, porém, está ainda num estágio muito inicial de tramitação — ao contrário do que tem sido alardeado nas redes sociais, que tratam com algum catastrofismo a reforma, como se fosse algo para amanhã —, de modo que teremos tempo, inclusive, de analisar mais detalhadamente alguns aspectos dessa proposição em outras colunas aqui na Fábrica de Leis. O que é certo é que não se pode mais esperar para debater tal legislação, ainda mais porque ainda estamos num ponto muito inicial de uma possivelmente longa tramitação parlamentar do PL nº 1.388, de 2023.

Consultor Júridico

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