Vivianne Araujo: Reflexões sobre direitos de autor na era da IA

Em tempos de ChatGPT, Dabus e termos como “machine learning”, não temos como nos ausentar da problemática dos direitos autorais em obras criadas por inteligência artificial. Mas essas obras são criadas “por” ou criadas “com” uma IA? E podemos chamá-las de obras ou apenas de criações?

Temos uma lacuna regulatória em relação à matéria, já que, historicamente, o direito material não muda ao mesmo tempo que a sociedade; porém, é possível que isso venha a revolucionar os conceitos atuais de autor e de obra, trazendo alterações substanciais em tais definições e na jurisprudência.

A Lei 9.610/98 (Lei de Direitos Autorais) traz, expressamente, em seu artigo 11, que a figura do autor deve, necessariamente, ser uma pessoa física, humana e, em seu artigo 7º, que “são obras intelectuais protegidas as criações do espírito…”, evocando claramente o humano à expressão.[1] Ainda, nos termos da Convenção que instituiu a Organização Mundial da Propriedade Intelectual, assinada em 1967, no artigo 2º, VIII, que enumera os vários objetos de proteção desse tema, temos a seguinte descrição: “…invenções em todos os domínios da atividade humana”[2].

No Brasil, o Senado nomeou uma comissão de juristas para elaborar um anteprojeto de marco regulatório para a inteligência artificial no país. O prazo final para a conclusão está previsto para dezembro deste ano, o que esperamos que seja cumprido, dada a velocidade com que a IA tem se tornado uma “colaboradora fiel” para estudantes, jornalistas e até artistas, aumentando os questionamentos sobre a ética aplicada ao tema.

No mês de maio (dia 11) deste ano, tivemos um debate proposto pelo deputado Áureo Ribeiro (Solidariedade-RJ) para a Comissão de Cultura da Câmara dos Deputados. O tema foi “Os impactos da inteligência artificial (IA) na Propriedade Intelectual”. De acordo com o deputado, “o crescimento e o aprimoramento dos recursos de inteligência, para que tenham comportamentos e ofereçam respostas cada vez mais independente da atuação humana, coloca em questão a autoria e a propriedade intelectual dos frutos”.

O parlamentar citou o caso dos Estados Unidos, onde as regras de copyright negam a existência de um autor “não humano”. Citou também que o sistema jurídico do Reino Unido considera que o direito de obras criadas por sistemas de IA pertence à pessoa que arranjou o que era necessário para a criação da tal obra. “E quem seria? O programador? O usuário?“, questiona o deputado, acrescentando ainda que, em Portugal, as obras criadas por IA são consideradas “criações acidentais”, pertencendo ao domínio público [3].

Há uma grande diferença entre as criações assistidas pela inteligência artificial (computer assisted work) e aquelas geradas pela inteligência artificial (computer generated work). No primeiro caso, a intervenção humana é necessária, enquanto, no segundo, há uma contribuição humana mínima ou até mesmo nenhuma. Ainda que seja mínima, acreditamos que seja imprescindível. A IA não é absoluta, ao menos não ainda! Uma obra criada “por” ou “com” IA deve sempre ser revista por uma pessoa física; isso é, no mínimo, responsável nos dias atuais, não? Afinal, ela não tem a Ética como princípio, podendo gerar para o bem ou para o mal com o mesmo empenho. Temos visto fake news e deep fakes tão bem feitas que te fazem defendê-las como se verdades fossem!

Então, a quem atribuir a autoria destas “obras”?

A interpretação que vem prevalecendo aqui e em países como Estados Unidos e membros da União Europeia é a de que, mesmo uma obra tendo sido gerada “por” uma IA, não poderá ser registrada em nome desta, pois os direitos autorais pertencem apenas a uma pessoa física e, por ser resultado da associação de dados previamente fornecidos, tal obra careceria do requisito obrigatório da originalidade. Mas será? O mundo e suas descobertas não têm acontecido desta forma? Como fica o “Nada se cria, tudo se transforma?”

Em contrapartida aos entendimentos do Brasil e demais países já mencionados, na China, a corte da cidade de Shenzhen decidiu que a IA chamada Dreamwriter, de tecnologia Tecent, é a real autora do conteúdo criado. Isso abre um precedente importante e, por que não, perigoso, pois a máquina se equiparou a uma pessoa? Com vontade própria, opinião e criatividade? Alguns desenvolvedores defendem que sim e que, em breve, passarão a sentir, a se emocionar e até a se relacionar…

O chamado machine learning ou “aprendizado de máquina” é o que possibilita a existência da inteligência artificial. Ele oferece aos sistemas de computadores a habilidade de aprender a partir de dados inseridos com um propósito específico.

Isso era o “normal” até pouco tempo. Hoje, o macro machine learning progrediu e engloba o deep learning, que oferece aos sistemas a habilidade de aprender a partir de redes neurais generativas artificiais, que simulam as biológicas, sem serem previamente programados. Munido de incontáveis dados, ele age em cima de um aprendizado baseado em informações prévias, associações e análises/deduções comportamentais, assim os sistemas conseguem identificar padrões e tomar decisões com o mínimo de intervenção humana e de forma independente dos algoritmos inicialmente inseridos ali pelo ser humano. Ao contrário da IA convencional, que é programada para executar tarefas específicas e limitadas a um escopo original, a IA generativa é capaz de criar algo inesperado – não pré-definido – a partir de suas próprias conclusões [4]. Nesse contexto, a pessoa (autor humano) perde o domínio sobre os caminhos criativos da IA e ela passa a ser considerada como “uma inventora de si mesma” ou IA generativa – computer generated work. E aí entram os atuais questionamentos envolvendo a autoria.

Contextualizando, Stephen Thaler, o desenvolvedor do Dabus (Device for the Autonomous Bootstrapping of Unified Sentience), vem tentando, em diversos países, o reconhecimento do seu sistema como o “autor” de produtos patenteáveis, dentre eles, um recipiente de alimentos baseado em geometria fractal. A Procuradoria Especializada do Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI) emitiu o Parecer nº 00024/2022/CGPI/PFE-INPI/PGF/AGU, referente ao pedido de patente de invenção nº BR 11 2021 008931 4, figurando o Dabus como o autor. Entendeu o INPI, em setembro de 2022, da seguinte maneira: “Diante de todo o exposto, à vista da consulta formulada, a Procuradoria, em estrito juízo de legalidade, manifesta-se no sentido de impossibilidade da indicação ou de nomeação de inteligência artificial como inventora em um pedido de patente apresentado no Brasil, ex vi no contido no art. 6º da Lei 9.279/96[5], do disposto na convenção de Paris (CUP) e no Acordo TRIPS” [6], Reforça ainda, com o que concordamos plenamente, a necessidade de elaboração de legislação específica que discipline a inventividade desenvolvida por máquinas dotadas de IA, a fim de se preservar os investimentos em pesquisa e desenvolvimento no país.

O ChatGPT é um chatbot – um robô de conversação – desenvolvido pela OpenAI (a mesma do Dall-E, a inteligência artificial que cria imagens a partir de descrições) e foi lançado em novembro de 2022. A ferramenta “personifica” a máquina e entrega respostas elaboradas para perguntas nos mais diferentes domínios do conhecimento, produz conteúdo, entrega sistemas em linguagens e códigos de programação, resolve questões matemáticas complexas…, mas não só isso: o ChatGPT consegue escrever obras literárias, como poemas, histórias, novelas, roteiros, sermões religiosos e até mesmo músicas! Os resultados vêm a partir do processamento de um imenso volume de dados disponíveis na internet até 2021 e sua atualização está prevista para breve.

Neste último caso, quem seria o autor de um poema “original”, por exemplo, feito por um sistema de IA como o ChatGPT? Para alguns, os algoritmos, ao criarem uma música, um poema ou um texto literário, estariam apenas simulando o comportamento e o estilo criativo humano conforme solicitado pelo usuário. Não haveria, por isso, como se aferir, em determinada obra, a emoção do compositor ou a essência do poeta.

Nesta linha, poderia a IA competir criativamente com o ser humano?

Como vimos, legalmente ainda não. Nos casos de criação de trabalhos literários, dramáticos, musicais ou artísticos por computadores, o autor sempre será a pessoa que fez os arranjos necessários para a criação da obra em questão. Ou seja, a propriedade intelectual é atribuída à pessoa física que possibilita a criação da obra pelo robô ou computador, e não à máquina. Já pelo viés da prática, a IA tem, em sua base de dados, informações que milhões de seres humanos só teriam se somadas, então a tendência em responder “sim” para essa questão é bem grande; porém, perguntando ao próprio ChatGPT, ele respondeu que “ainda não experimenta a criatividade em profundidade, como faz o ser humano”.

Mas, se sua base de dados está atualizada até 2021, ele não se baseia apenas em obras de domínio público para suas criações, certo? Ali estão publicações de plataformas de streaming, sites, blogs, feeds, stories…; ou seja, como o ChatGPT não cita suas fontes, a possibilidade de configuração de plágio é muito grande e também tem gerado inúmeras discussões. Se antes já não se citavam fontes, imaginem agora….

No campo da Música, por exemplo, a IA de nome Music LM foi alimentada com mais de 280 mil horas de composições variadas e o índice de plágio detectado foi de 1%. Por decisão interna, esta porcentagem foi suficiente para a suspensão do sistema, mas isso está longe de ser a regra.

E como distinguir uma obra exclusivamente humana de uma criação “por” IA? Sim, muitos profissionais e/ou estudiosos não conseguem. Parece uma grande ironia, mas temos usado uma IA para identificar criações de outra IA!

Onde isso vai parar? E será que vai parar?

Outro ponto não menos complexo que envolve as criações desenvolvidas por máquinas refere-se à exploração comercial e apropriação de seus frutos. De quem seriam os direitos de exploração/patrimoniais de uma música composta por um algoritmo?

A IA não é, pelo menos ainda, um sujeito de direitos nem uma empresa a ponto de ser titular de direitos patrimoniais decorrentes da exploração de uma Obra, o que segue o preceituado nas Leis e seus artigos antes mencionados. Segundo o regramento atual, autor não poderia ser um animal, nem uma máquina; apenas uma pessoa física, com capacidade e personalidade jurídica para ser titular de direitos e deveres. Mas será que é assim que o mundo está vendo esta questão?

Como foi apresentado no relatório da Comissão Europeia sobre Responsabilidade da IA e Tecnologias Emergentes (2018 ) [7], alguns dos responsáveis pela redação de políticas públicas começaram a considerar a possibilidade de se conferir personalidade jurídica – o que denominam de e-personality – a sistemas de IA como forma de obter-se vantagens na aquisição e fruição de ativos e assim, indiretamente, escapar das responsabilidades legais derivadas, transferindo tais responsabilidades para outros agentes sem quaisquer avaliações, o que seria claramente injusto e antiético.  

Esta vertente do e-personality é minoritária e vem diminuindo; portanto, por enquanto acredita-se que qualquer ação neste sentido contradiz e prejudica o sistema de propriedade intelectual contemporâneo, que nasceu da necessidade de se proteger uma obra/criação, tendo como principal finalidade a sua monetização durante o período de exclusividade de exploração concedido ao titular de tal direito. Os titulares humanos de invenções comercializadas devem ser responsabilizados em caso de danos aos consumidores, pelo que essa tendência deve continuar a ser aplicada visando a sua proteção, enquanto hipossuficientes [8].

E os direitos conexos? Seu conceito solucionaria esta questão, ao menos neste momento?

Manoel J. Pereira dos Santos e Ygor Valério, por exemplo, defendem que sim, pois pelo viés dos direitos conexos não há que se discutir a autoria, mas tão somente a titularidade da obra e esta deveria ser atribuída à pessoa natural responsável pelo resultado obtido através do uso da IA. Seria uma nova forma de proteção, com foco no investimento feito e que, ao nosso ver, faz bastante sentido, até mesmo para se garantir a segurança jurídica em toda a cadeira de licenciamentos necessária à indústria e seu desenvolvimento [9].

Tudo isso é assustador para muitos… dá medo, pois “A IA afasta a intervenção humana definitivamente?” “O que sobra pra nós”? “Seremos substituídos pelas máquinas?”, como já retratado em inúmeros filmes de ficção científica, ou ela é a maior ferramenta de colaboração já inventada?

Em curto prazo, dificilmente teremos uma resposta para este dilema. O mundo todo está com este mesmo questionamento, afinal, qual o intuito de tão avassalador desenvolvimento desta tecnologia, que atropelou nossos dias com tamanha força? Seria a economia de tempo? Victor Drummond questiona muito isso: “Por que querem economizar o tempo humano da criação?” “Pergunte a uma criança se ela trocaria o tempo da brincadeira pelo resultado da brincadeira!” [10]

A máquina processa, prevê e calcula numa velocidade incomparável à do ser humano, mas só o ser humano dá sentindo e significado a estes cálculos. A inteligência humana engloba a inteligência emocional, os sentidos e a intuição, ainda não replicados pela IA e, esperando que Regalado esteja certo, dificilmente o serão. “Nenhuma engenharia pode reproduzir ou calcular o cérebro humano” [11].

Fato é que ela está aí e não vai parar, mesmo que alguns tentem brecá-la; então o caminho, no momento, é encararmos todas essas possibilidades de maneira mais otimista, acreditando que podemos evoluir graças à evolução da IA, e não sucumbir a ela.

Nas palavras de Lenio Streck, “o processo criativo foi ‘algoritmizado’, perdendo seu encantamento” [12], mas sempre será nosso, afinal não há como afastarmos a arte de um fotógrafo só porque ele usa uma câmera fotográfica…ou há?

Vivianne Araujo é advogada associada do Velloza Advogados, especialista em propriedade intelectual e proteção de dados e pianista.

Consultor Júridico

Facebook
Twitter
LinkedIn
plugins premium WordPress

Entraremos em Contato

Deixe seu seu assunto para explicar melhor