Willer Tomaz: Não pagamento de multa e extinção da punibilidade

Em 26/8/2015, a 3ª Seção do STJ (Superior Tribunal de Justiça), no julgamento do Recurso Especial Representativo de Controvérsia nº 1.519.777/SP (Tema 931), com relatoria do ministro Rogerio Schietti, firmou a tese de que “nos casos em que haja condenação a pena privativa de liberdade e multa, cumprida a primeira (ou a restritiva de direitos que eventualmente a tenha substituído), o inadimplemento da sanção pecuniária não obsta o reconhecimento da extinção da punibilidade”.

Ocorre que em 8/4/2015, o Plenário do Supremo Tribunal Federal, no julgamento do Agravo Regimental na Progressão de Regime na Execução Penal nº 12/DF (com relatoria para acórdão do ministro Roberto Barroso), decidiu que “o inadimplemento deliberado da pena de multa cumulativamente aplicada ao sentenciado impede a progressão no regime prisional”, e que “tal regra somente é excepcionada pela comprovação da absoluta impossibilidade econômica do apenado em pagar a multa, ainda que parceladamente”.

Mais tarde, em 13/12/2018, novamente o Plenário do Supremo Tribunal Federal, no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 3.150 (com relatoria para acórdão também do ministro Roberto Barroso), fixou a tese de que “a Lei nº 9.268/1996, ao considerar a multa penal como dívida de valor, não retirou dela o caráter de sanção criminal, que lhe é inerente por força do art. 5º, XLVI, c, da Constituição Federal”, e que “em matéria de criminalidade econômica, a pena de multa desempenha um papel proeminente de prevenção específica, prevenção geral e retribuição”.

Sobreveio a Lei nº 13.964, de 24/12/2019, que inovou o artigo 51 do Código Penal e reforçou a natureza penal da multa ao estabelecer que “transitada em julgado a sentença condenatória, a multa será executada perante o juiz da execução penal e será considerada dívida de valor, aplicáveis as normas relativas à dívida ativa da Fazenda Pública, inclusive no que concerne às causas interruptivas e suspensivas da prescrição”.

O Conselho Nacional de Justiça, em 8/10/2021, editou a Resolução nº 425, que instituiu no Poder Judiciário a “Política Nacional Judicial de Atenção a Pessoas em Situação de Rua e suas Interseccionalidades”, um documento não apenas jurídico, mas eminentemente cívico e humanitário, pois estabeleceu no seu artigo 29, parágrafo único, que “cumprida a pena privativa de liberdade e verificada a situação de rua da pessoa egressa, deve-se observar a possibilidade de extinção da punibilidade da pena de multa”.

E então em 24/11/2021, a 3ª Seção do Superior Tribunal de Justiça, no julgamento dos Recursos Especiais Representativos de Controvérsia nº 1.785.383/SP e nº 1.785.861/SP, com relatoria do ministro Rogerio Schietti, modificou a tese anteriormente fixada no Tema 931.

Ao rever o seu entendimento anterior para atualizá-lo conforme a evolução jurisprudencial e legal, a corte decretou que “na hipótese de condenação concomitante a pena privativa de liberdade e multa, o inadimplemento da sanção pecuniária, pelo condenado que comprovar impossibilidade de fazê-lo, não obsta o reconhecimento da extinção da punibilidade”.

Quer dizer, no tocante à matéria, finalmente conciliou-se o direito de punir com os direitos fundamentais da pessoa do preso, pois somente a absoluta e comprovada insolvabilidade do apenado é capaz de mitigar a exigência de adimplemento da multa criminal como condição para a extinção da punibilidade, não se socorrendo o inadimplemento voluntário.

Mais do que possa parecer, a mudança de percepção é das mais relevantes para o sistema de justiça penal e funciona como um verdadeiro mecanismo de política criminal que concilia o jus puniendi com as garantias fundamentais da pessoa humana.

Isso porque se de um lado a complacência com o desacato do criminoso elide a confiança na Justiça, de outro, a condicionante econômica intransponível para a extinção da punibilidade produz um ciclo vicioso de exclusão social e de inclinação à delinquência, pois o egresso desvalido e que não pôde trabalhar durante a execução penal acaba impossibilitado de cumprir a pena pecuniária, que, conforme o artigo 164 da Lei de Execuções Penais, deve ser paga no prazo de dez dias após a intimação para tanto.

Apenas para exemplificar, o não pagamento implica um acréscimo de 20% a título de encargo legal quando iniciada a execução fiscal, nos termos do Decreto-Lei nº 1.025/69, e o débito passa a ser corrigido pela taxa Selic.

Além disso, o inadimplemento sujeita os bens do apenado a penhora e a própria pessoa à marginalização civil em razão da negativação do seu nome perante a União, dada a inscrição em dívida ativa, no Cadin e na Lista de Devedores da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, impossibilitando-a de emitir uma simples certidão negativa de regularidade fiscal, o que gera outras restrições civis deletérias para a ressocialização.

O que é pior, a cobrança é inevitável mesmo quando o valor é irrisório, pois a essa dívida não se aplica o patamar mínimo exigido legalmente para a inscrição em dívida ativa e para o ajuizamento da execução fiscal comum, já que a Portaria do Ministério da Fazenda nº 75/2012, em seu artigo 1º, §1º, dispõe que “os limites estabelecidos no caput [atualmente de R$1.000,00 e R$20.000,00 perante a Fazenda Nacional] não se aplicam quando se tratar de débitos decorrentes de aplicação de multa criminal”.

Considerando apenas o estado de São Paulo, a Defensoria Pública informou que “entre janeiro de 2020 e maio de 2021, foram ajuizadas quase 74 mil ações de execução de pena de multa em SP (…) sendo identificado que 53% das ações ajuizadas tratam de cobrança de multa cujo valor não ultrapassa R$ 500; 65% dizem respeito a valores que não ultrapassam R$ 1 mil; 99% dos valores não chegam ao teto de não execução pela Fazenda Estadual; 91% não alcançam o limite de não execução da Fazenda Nacional”.

É fácil perceber que nesse cenário, onde apenas 17,5% da população prisional trabalha, conforme o Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias de 2017, do Ministério da Justiça, a exigência econômica ortodoxa surte em verdade efeitos nefastos que não se limitam à vida particular do preso, pois onera os cofres públicos, a própria máquina judiciária já atolada com execuções fiscais infrutíferas, retarda a prestação jurisdicional para quem precisa e prejudica inclusive os familiares mais próximos do apenado.

Como salientado pelo ilustre ministro Rogerio Schietti, ao propor a nova tese no Tema 931, “ineludível é concluir, portanto, que o condicionamento da extinção da punibilidade, após o cumprimento da pena corporal, ao adimplemento da pena de multa transmuda-se em punição hábil tanto a acentuar a já agravada situação de penúria e de indigência dos apenados hipossuficientes, quanto a sobreonerar pessoas próximas do condenado, impondo a todo o seu grupo familiar privações decorrentes de sua impossibilitada reabilitação social, o que põe sob risco a implementação da política estatal proteção da família”.

A atuação jurisdicional do Superior Tribunal de Justiça e institucional do Conselho Nacional de Justiça, como se vê, revela a importância de um Poder Judiciário robusto, independente, firme e esclarecido no compromisso com os princípios constitucionais da dignidade humana, da individualização da pena, da equidade e igualdade material, bem como com os objetivos fundamentais mais importantes para a nação, como o de construir uma sociedade mais justa, tudo sem perder de vista o ideal de um sistema jurídico eficaz de proteção da cidadania e de prevenção e reprovação do crime.

Consultor Júridico

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