Da leitura do artigo 86, §3º da nova Lei de Licitações e Contratos (Lei nº 14.133/2021) depreende-se que a autorização legal referida em tal norma geral não incluiu os municípios como gerenciadores de atas de registros de preços passíveis de adesão.
Assim, nos estritos termos legais, inexiste autorização para permitir a “carona” em atas de registros de preços gerenciadas por municípios.
Ao criticar tal circunstância decorrente da redação do dispositivo, Juliano Heinen [1] leciona que “a regra faz crer que não é possível nenhuma adesão à ata de registro de preços municipal”. “Sequer um município poderia aderir à ata de outro ente de mesma envergadura. E isso é problemático, porque não tem proporcionalidade e adequação qualquer vedar que Municípios limítrofes, por exemplo, possam aderir à ata de um ou outro. Seria até condizente com a economicidade permitir o ‘carona’ nestes casos.”
Ronny Charles [2] também critica tal dispositivo e entende que o mesmo pode vir a receber um tratamento diferente em sede local: “Segundo o §3°, a adesão estará limitada a órgãos e entidades da Administração Pública federal, estadual, distrital e municipal que, na condição de não participantes, desejarem aderir à ata de registro de preços de órgão ou entidade gerenciadora federal, estadual ou distrital. Importante atentar que, neste dispositivo, o legislador criou uma restrição à ade- são a atas oriundas de órgão municipais! Órgãos e entidades da Administração Pública federal, estadual, distrital e municipal poderiam realizar a adesão, desde que as Atas não fossem de entidade gerenciadora municipal. Segundo a regra posta, mesmo os municípios, embora possam realizar adesão, não poderiam fazê-la em relação a atas de órgãos ou entes municipais! Pior ainda, levando-se ao extremo, um órgão do município de São Paulo não poderia aderir a uma ata de uma entidade do mesmo município! Em nossa opinião, esta regra deve ser interpretada como materialmente específica. Não há justificativa legítima para tal restrição ao uso da adesão, que, como já dissemos, possui natureza jurídica de contratação direta (hipótese anômala de dispensa), que sendo norma materialmente geral, pelo qual sua criação só pode ser feita por Lei federal, exige que a União, ao dispor sobre o tema, o faça sem discriminação indevida ou preconceitos, legislando verdadeiramente para todos”. “Sendo norma materialmente específica, a legislação local, aproveitando a criação da adesão pela norma geral, pode regrar tal hipótese sem restrição à adesão de atas oriundas de órgãos e entes municipais.”
Já Joel de Menezes Niebuhr [3] defende que o dispositivo “não deve ser interpretado como que órgãos e entidades municipais sejam proibidas de aderir às próprias atas municipais. Essa interpretação, pondera-se, seria possível diante da literalidade do dispositivo”. “No entanto, ela seria inconstitucional, porque o inciso III do artigo 19 da Constituição Federal veda à União, aos estados, ao Distrito Federal e aos municípios criarem preferências entre si.” Concluindo o autor o seguinte: “então, deve-se realizar interpretação conforme a Constituição em harmonia ao inciso III do artigo 19 da Constituição Federal, de modo que órgãos e entidades federais, estaduais e distritais não possam aderir à ata municipal, permitindo-se aos órgãos e entidades municipais aderirem às atas municipais e às federais, estaduais e distritais”.
Compartilhamos do mesmo sentimento de estranheza de Juliano Heinen, mas quanto aos posicionamentos de Ronny Charles e Joel de Menezes Niebuhr é preciso, por razões de cautela e pragmatismo, tecer algumas considerações em defesa dos agentes públicos responsáveis por dar exequibilidade à NLLC.
De imediato é preciso ter em mente que, conforme já assentado pelo STF [4], “vige no direito brasileiro o postulado de que lei formal goza de presunção de constitucionalidade até declaração em contrário”.
Também cumpre se ater ao fato de que ao Poder Executivo cabe o controle preventivo de constitucionalidade (controle constitucional preventivo político) por meio do veto a projetos de lei (artigo 66, §1º, da CF/88) ao passo que o controle repressivo de constitucionalidade se dá apenas e tão somente por meio da anulação, por inconstitucionalidade, dos seus próprios atos administrativos.
Devemos destacar ainda que a interpretação das normas jurídicas (e não só da Constituição) por parte da Administração Pública é feita por meio da edição de portarias, despachos, ordens, dentre outros e, é claro pela edição de decretos por parte do Chefe do Executivo mas que tal atividade encontra grandes limites no princípio da legalidade, uma vez que “diferentemente dos particulares, a quem se confere liberdade para fazer tudo aquilo que não lhes for proibido, a Administração Pública só pode fazer o que lhe for permitido por expressa disposição legal. Ao Poder Público não se faculta tudo o que está proibido, cumprindo-lhe fazer tão-somente o que a lei prescreve. É de ver que a Administração deve agir nos estritos limites fixados pela lei (…) A atividade administrativa restringe-se à aplicação da lei e à execução da norma geral e abstrata constante do texto legal, sendo-lhe defeso instituir qualquer determinação que implique restrição ou cerceio a direitos de terceiros. (…) Os órgãos públicos assujeitam-se, todos, aos enunciados legais, devendo as autoridades administrativas agir em conformidade com as normas jurídicas. (…) a Administração tem sua atuação lindada aos limites da lei, só podendo agir secundum legem. Significa que a lei pode estabelecer proibições e vedações à Administração, mas esta só pode fazer o que a lei previamente autorizar” [5].
Para finalizar, diga-se que, por enquanto, a única base que temos para definir o que é lei geral aplicável a todos os entes e o que é lei federal aplicável apenas à União no âmbito das licitações foi o julgamento da ADI nº 927, onde o STF [6] entendeu que é específica e não geral a norma que disciplinava permuta de bens imóveis.
Assim, pelo que foi até aqui exposto, a adoção do entendimento de Ronny Charles e Joel de Menezes Niebuhr pelos agentes públicos que aplicam e aplicarão a NLLC esbarrará nas dificuldades pragmáticas de reconhecer que: 1) o artigo 86, § 3º da Lei nº 14.133/2021 (e, portanto, a impossibilidade de aderir à ata de registro de preços de órgão ou entidade gerenciadora municipal) é presumivelmente constitucional e não temos base para afirmar que tal dispositivo seria específico e não geral e 2) o Poder Executivo executa e executará a Lei nº 14.133/2021 à luz do princípio da legalidade, não lhe cabendo exercer um controle repressivo de constitucionalidade.
De tal sorte, na prática, não é recomendável que os agentes públicos responsáveis pela execução material da NLLC promovam e/ou permitiam a “carona” em atas de registros de preços gerenciadas por municípios.
Do contrário existe o risco (considerável) de aplicação de penalidades por parte dos órgãos de controle (sobretudo Tribunais de Contas) e de questionamentos por parte dos próprios licitantes (aqui restrito a eventuais competidores interessados em fustigar a concorrência, convenhamos).
Tal cenário de risco pode ser mitigado com um parecer da própria Administração Pública que autorize a adesão às atas de registro de preços de órgão ou entidade gerenciadora municipal em que pese a redação do artigo 86, §3º da nova Lei de Licitações? Sim, mas não muito, pois dependerá da postura do órgão de controle, que inclusive poderia responsabilizar o parecerista por ter ignorado disposição expressa da lei.
Outra alternativa, repleta de incertezas, seria uma consulta ao Tribunal de Contas competente que pode, por óbvio, vedar a carona com base na disposição literal do artigo 86, §3º e aí soterrar quaisquer pretensões em contrário.
Para os agentes públicos que pretendem aderir ou permitir a adesão à ata de registro de preços de órgão ou entidade gerenciadora municipal à revelia do artigo 86, §3º da Lei nº 14.133/2021, a alternativa menos arriscada passa pela edição de uma lei local pelo legislativo (um decreto do Chefe do Executivo seria flagrantemente ilegal) que não encarasse o artigo 86, §3º da Lei nº 14.133/2021 como uma norma geral, algo que, como se presume, pode vir a ser questionado no Poder Judiciário.
Conclui-se, portanto, que o cenário deve ser de extrema cautela.
[1] Heinen, Juliano, Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos, Salvador: Editora Juspodivm, 2021, pág. 512.
[2] Torres, Ronny Charles Lopes de, Leis de licitações públicas comentadas, 12a ed., São Paulo, Ed. Juspodivm, 2021, pág. 510.
[3] Niebuhr, Joel de Menezes, Licitação pública e contrato administrativo, 5ª. ed., Belo Horizonte: Fórum, 2022, pág. 907.
[4] ARE 1182358 ED-AgR, relator(a): Edson Fachin, Segunda Turma, julgado em 22/06/2020, Processo Eletrônico DJe-201 DIVULG 12-08-2020 Public 13-08-2020.
[5] Cunha, Leonardo José Carneiro da, A Fazenda Pública em Juízo, São Paulo, Editora Dialética, 2003, pág. 256.
[6] ”Ementa: CONSTITUCIONAL. LICITAÇÃO. CONTRATAÇÃO ADMINISTRATIVA. Lei n. 8.666, de 21.06.93. I. – Interpretação conforme dada ao artigo 17, I, ‘b’ (doação de bem imóvel) e artigo 17, II, ‘b’ (permuta de bem móvel), para esclarecer que a vedação tem aplicação no âmbito da União Federal, apenas. Idêntico entendimento em relação ao artigo 17, I, ‘c’ e par. 1. do artigo 17. Vencido o Relator, nesta parte. II. – Cautelar deferida, em parte. ADI 927 MC/RS, j. 03/11/1993″.
Aldem Johnston Barbosa Araújo é advogado de Mello Pimentel Advocacia, pós-graduado em Direito Público e
integrante da Comissão de Direito Administrativo da OAB-PE.