Bianca Fernandes: Intervenções corporais forçadas

A identificação criminal está prevista no artigo 5º inciso LVIII, da Constituição, e foi devidamente regulamentada pela Lei nº 12.037/2009. De acordo com os princípios mencionados, existem três formas de identificação criminal:

– identificação datiloscópica;

– identificação fotográfica;

– coleta de material genético.

Dentre essas, a coleta de material genético, no que se refere ao campo do estudo da prova, no processo penal, é considerada a mais polêmica. De acordo com redação da Lei nº 12.654/2012, que trata sobre a extração de DNA para realização de identificação de perfil genético, a intervenção poderá ocorrer sem a aprovação do réu/indiciado. 

Em razão disso, nos deparamos com o conflito de princípios constitucionais e grave afronta aos direitos fundamentais.

A Lei 12.654/2012 acrescentou um dispositivo relevante à Lei de Execução Penal, de nº 7.210/1984, senão vejamos:

“Artigo 9º- A.  Os condenados por crime praticado, dolosamente, com violência de natureza grave contra pessoa, ou por qualquer dos crimes previstos no artigo 1º da Lei nº 8.072, de 25 de julho de 1990, serão submetidos, obrigatoriamente, à identificação do perfil genético, mediante extração de DNA — ácido desoxirribonucleico, por técnica adequada e indolor.”

Realizada a leitura do referido dispositivo, coerente se faz o seguinte questionamento: teria o réu, realmente, o direito de não produzir provas contra si mesmo?  O processo penal, que deveria servir de instrumento para garantir o exercício de seus direitos fundamentais, por vezes, acaba por cercear tais garantias, de modo que o agente já inicia o processo fadado à condenação.

Cumpre salientar que existem duas situações distintas para a utilização desse material genético coletado. Enquanto indiciado, a coleta de material genético serve para constituir prova em um caso concreto, que já existe. Já na condição de apenado, a extração de material genético serve para alimentar o banco de perfis genéticos a fim de serem utilizados para apuração de crimes futuros, cuja a autoria seja desconhecida. (LOPES JÚNIOR, 2016, p. 362)

Nesse contexto, realização da extração de material genético como prova em um caso concreto é justificável, embora exista também a prerrogativa do indiciado a não fornecê-lo, com intuito de não constituir provas para sua incriminação. Todavia, nada justifica a extração de seu DNA para alimentar um banco de dados de perfis genéticos, com a finalidade de solucionar crimes futuros.

Com base nisso, com o advento da lei nº 12.654/2012, o juízo de “condenação antecipada” ficou ainda mais evidente. Passa-se de um estado (situação) de inocência, que está expresso na Constituição Federal, para um estado de culpa (PACELLI, 2017, p.50): o réu é considerado culpado, até que se prove o contrário!

As intervenções corporais para fins criminais são vastamente utilizadas nos países da América Latina. Contudo, para a sua realização, as leis e procedimentos são rigorosíssimos, estando muito bem regulamentados, além de estarem em conformidade com as garantias constitucionais desses países. (PACELLI, 2017, p.394)

No Brasil, entretanto, existe pouca previsão legal para regulamentar a sua realização. A lei nº 12.654/2012 quando menciona no artigo 3º, a obrigatoriedade da identificação do perfil genético, mediante extração de DNA aos condenados por crime praticado, dolosamente, com violência de natureza grave contra pessoa, sequer descreve quais crimes estariam submetidos a essa obrigatoriedade.

Nesse sentido, percebe-se que o rol de crimes que se enquadrariam dentro dessa previsão ficaria ao alvedrio da autoridade. Em razão disso, o sentido amplo trazido pela lei mencionada, faz com que se estabilize uma certa insegurança jurídica, haja vista que o conceito de “crimes praticados, dolosamente, com violência de natureza grave contra pessoa” é muito amplo, podendo qualquer tipo penal ser enquadrado ali.

Dessa maneira, a coleta de material genético para a formação de um banco de dados genéticos destinados às pessoas condenadas se mostra extremamente prejudicial, pois uma série de garantias previstas são afrontadas. 

Os direitos à inviolabilidade ao próprio corpo, à intimidade, à presunção de inocência são atingidos em demasia, com base única e exclusivamente na incerteza, a medida que a formação desse banco de dados genéticos para condenados funda-se exclusivamente na incerteza.

Além disso, a supressão de determinadas garantias, como a presunção de inocência, por exemplo, viola de forma integral o direito daquele que cumpriu integralmente a sua pena, de retornar ao seu estado de cidadania e de inocência, uma vez que já  estão imputando-lhe a culpa, antes mesmo do cometimento do delito.

A Lei nº 12.654/2012 afronta o princípio nemo tenetur se detegere, que assegura que o acusado possui o direito de não produzir provas contra si mesmo, tampouco a colaborar para atos que corroborem ou facilitem a sua incriminação.

Além de tal princípio encontrar respaldo constitucional, em uma interpretação extensiva do artigo 5º, inciso LXIII, encontra também guarida na Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica, do qual o Brasil é signatário), no artigo 8º, 2, alínea g, que preceitua que ninguém está obrigado a depor contra si mesmo ou confessar-se culpado.

Com base nisso, submeter o acusado a uma intervenção corporal contra a sua vontade, conforme afirma Aury Lopes Junior (2007, p. 592-5960) é o mesmo que autorizar a tortura para obter uma confissão. O que está em jogo aqui é assegurar que o direito fundamental a não autoincriminação seja exercido.

A justificativa de que não há lesividade física para a realização da extração de material genético não prospera, tendo em vista que essa prática engloba algo muito maior do que a simples integridade física do agente. 

Trata-se de direitos fundamentais que devem ser assegurados.

É evidente que essa abordagem facilitou muito a identificação de autores de determinados delitos, pois o código genético pode ser facilmente confrontado com os resquícios presentes na cena do crime. Entretanto, uma infração também é cometida quando o suspeito é coagido a fornecer esse material genético contra a sua vontade.

Por outro lado, imprescindível destacar também que essa prática pode beneficiar o réu/indiciado, de modo que, através desse exame, pode ser comprovada a sua inocência quando não estiver envolvido com a prática do crime.  

Contudo, diante da existência de benefícios e prejuízos, fato é que a realização da extração de material genético, ainda que contra a vontade do agente, ainda é realizada, mesmo estando em desacordo com os parâmetros e garantias legais.

Portanto, torna-se necessária uma reflexão a respeito das garantias fundamentais expressas na Constituição, isso porque, ainda que esteja em desconformidade com o texto legal, a lei nº 12.654/2012 continua vigente, ameaçando, de forma considerável, a aplicabilidade e eficácia das normas constitucionais.

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Referências


LOPES JUNIOR, Aury. Direito Processual Penal. 13ª ed. Saraiva: São Paulo, 2016.

LOPES JÚNIOR, Aury. Direito processual e sua conformidade constitucional. Rio de Janeiro: Lumen Juris, v. 1, 2007.

PACELLI, Eugênio. Curso de Processo Penal. 21ª ed. Atlas: São Paulo, 2017.

Bianca da Silva Fernandes é advogada criminalista, vice-presidente da Associação de Proteção e Assistências aos Condenados de Porto Alegre/RS (APAC) e pós-graduada em Direito Penal e Processo Penal.

Consultor Júridico

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