A violência contra a mulher é uma realidade brasileira cuja administração pública tenta, por intermédio de legislações e políticas públicas, combater a todo custo, mas o que se vê é a inefetividade daquelas ações, que representa uma afronta à teoria geral dos direitos humanos.
Prescreve a declaração universal dos direitos humanos que a liberdade é um direito fundamental do indivíduo, independente do seu gênero, e que qualquer discriminação deve ser combatida, com a respectiva garantia do contraditório e da ampla defesa, bem como da presunção de inocência, até que a culpabilidade do acusado seja provada de acordo com a lei [1].
Em relação à violência contra a mulher, no âmbito do processo legislativo brasileiro, há um marco de atuação estatal, a lei 11.340/2006, que muito embora aparentemente seja uma atuação voluntária do legislativo, é resultado de uma condenação que o Brasil sofreu na corte interamericana de direitos humanos, no âmbito da Organização dos Estados Americanos (OEA) [2].
Segundo consta no relatório nº 54/01 [3], o case que originou aquela lei foi a tolerância do Estado brasileiro para com a violência cometida por Marco Antônio Heredia Viveiros contra a sua então esposa Maria da Penha Fernandes, razão pela qual aquele normativo é conhecido por “Lei Maria da Penha”.
Como se vê, a topografia normativa que orienta ações de prevenção e combate à violência contra a mulher é exógena ao ordenamento jurídico pátrio e resultante de uma denúncia que a República Federativa do Brasil sofreu no âmbito do direito internacional.
De toda forma, aquela lei traz em seu corpo jurisdicional cinco tipos de violência contra a mulher: física, psicológica, sexual, patrimonial e moral, mas, o seu raio de incidência é restrito ao âmbito da unidade doméstica, familiar ou em qualquer relação íntima de afeto.
A título de exemplificação, o assédio moral no ambiente de trabalho contra a mulher não possui regulação na lei maria da penha, embora o artigo 186 do Código Civil, consoante prescreve a cartilha de prevenção ao assédio moral publicada pelo TST (Tribunal Superior do Trabalho) [4], sirva de argumento jurídico para tipificação repressiva no âmbito cível.
Disso se depreende que diferente do feminicídio, qualificadora do crime de homicídio contra a mulher por razões da condição do sexo feminino, ainda não há um reforço legislativo no âmbito do direito do trabalho quando o assédio moral restar configurado em uma relação de poder na qual uma mulher está subordinada.
Entretanto, embora na esfera cível e na legislação trabalhista ainda não tenha essa qualificadora, no código penal há um dispositivo específico que tipifica como crime causar dano emocional à mulher por quem a prejudique e perturbe seu pleno desenvolvimento, e cause prejuízo à sua saúde psicológica e autodeterminação (artigo 147-B).
Dessa maneira, além da qualificadora do feminicídio para fins de homicídio, o código penal também traz um crime específico em relação à violência contra a mulher, que é a violência psicológica, prescrita por aquele artigo 147-B.
Como se vê, há uma tentativa de punição criminal em relação à violência contra a mulher, mas é preciso que seja feita uma reflexão sistêmica em relação ao assunto que estruture de maneira racional normativos transversais, como é o caso da legislação cível e da regulamentação das relações de trabalho.
Além disso, diante de tanta violência, a engrenagem normativa deve estar articulada para promover uma proteção jurídica à mulher e, para isso, deve a administração pública ir além de prescrições normativas, que regulamentam, em abstrato, um enquadramento jurídico de um comportamento social.
É nesse contexto que o direito financeiro apresenta colaboração, porque é responsável pela forma de concretizar políticas públicas por intermédio de uma conduta administrativa chamada escolha alocativa.
Por escolha alocativa devem ser entendidas as diretrizes da função administrativa responsável pelo planejamento e coordenação de uma política pública. Em outras palavras: a escolha alocativa versa sobre prioridades governamentais diante de um cenário de escassez de recursos públicos em relação à uma infinidade de direitos que devem ser prestados pelo Estado. É, portanto, intrínseca ao processo de tomada de decisão.
Como exemplo, a lei maria da penha traz como indução de escolha alocativa em relação às medidas integradas de prevenção, a implementação de atendimento especializado às mulheres por intermédio da criação de delegacias especializadas no atendimento à mulher, nos termos do seu artigo 8º, inciso IV.
Faculta, também, pelo seu artigo 14, a criação de juizados especializados de violência doméstica e familiar contra a mulher, reverberada pela recomendação nº 09/2007 do CNJ, a qual suscita aos Tribunais de Justiça dos estados, Distrito Federal e dos Territórios a criação e estruturação dos juizados de violência doméstica e familiar contra a mulher, nas capitais e no interior, com a implementação de equipes multidisciplinares.
Como se vê, existe uma política de descentralização da atividade policial e jurisdicional em relação ao atendimento especializado às vítimas de violência doméstica e familiar contra a mulher, o que proporciona a reflexão de que aquele tipo de agressão gera um custo específico para o Estado.
Sobre o tema, dados do CNJ apontam que entre 2016 e 2021 houve um aumento de 33% em relação à criação de varas exclusivas, saltando de 109 varas em 2016 para 145 em 2021, sendo o estado de São Paulo a unidade federativa com o maior número de varas especializadas: 28 [5].
O aumento é exponencial e demonstra a ineficácia da legislação em relação ao combate da violência doméstica. Ora, se há normativo específico e políticas públicas específicas para combater, o número deveria cair e não aumentar.
Em relação à colaboração do Direito Financeiro no enfrentamento da violência contra a mulher, é importante lembrar o seu caráter instrumental, que oferece lastro financeiro à implementação de políticas públicas. Não basta o administrador público estabelecer metas a serem atingidas por planos governamentais. É preciso correlacionar aquelas ideias à engrenagem das finanças públicas.
Sobre o tema, é importante trazer à baila o pensamento de José Maurício Conti, para quem as políticas públicas “transcendem também a própria organização setorial da Administração Pública, por abranger várias vezes uma multiplicidade de órgãos integrantes de diversas áreas da administração, o que se constatará oportunamente, por ocasião da referência às políticas e agendas transversais” [6].
Nesse sentido, a construção de uma agenda específica em relação à uma política pública requer a criação de arranjos governamentais aptos a balizarem a conduta dos gestores públicos no atingimento de metas previamente estabelecidas, e para isso é preciso a criação de uma atividade transversal com diversas áreas de atuação da administração pública.
Acontece que o recorte de uma política pública que envolva o engajamento do direito financeiro requer a construção da identidade do interesse público, que passa, necessariamente, pela reflexão do conceito de bem comum, que lastreia juridicamente a legitimidade pela escolha alocativa a partir do estudo e delimitação de uma estrutura social a ser atendida.
Sobre o assunto, aponta Fernando Facury Scaff que “A ideia por detrás da expressão bem comum é a da busca de interesses de toda a sociedade, ou de uma comunidade mais restrita, seja ou não esse bem comum veiculado ou buscado através de atos governamentais. Interesse público demonstra o interesse do Estado, enquanto representante da sociedade. Para quem acredita que o Estado é a sociedade politicamente organizada, estas duas noções serão equivalentes, pois haverá uma pausterização dos conflitos decorrentes da pluralidade de interesses existente na sociedade” [7].
A construção do bem de todos, com ênfase no combate à violência contra a mulher, necessita de uma intervenção estatal cuja ferramenta é a manipulação do direito financeiro, a teor da criação de atendimento policial e de varas especializadas, tanto por despesas correntes, como pagamento de pessoal, como despesas de capital, com a construção de infraestrutura física.
Oportuno informar que a Lei nº 14.133/20203, conhecida como nova lei de licitações, possibilita, nos termos do seu art. 25, §9º, inciso I, que os editais de contratações públicas poderão exigir que um percentual mínimo na mão de obra a ser contratada pelo Estado seja constituído por mulheres vítimas de violência doméstica.
Isso representa a força do direito financeiro como estrutura de reforço no combate à violência contra a mulher, no caso violência doméstica, a partir da função distributiva do orçamento público em relação às licitações.
A iniciativa, embora importante, é tímida, já que a violência doméstica é apenas um gênero em relação à violência contra a mulher, que, por apresentar números crescentes, precisa de uma intervenção mais efetiva no sentido de que seja prevenida.
Para isso, a alocação de recursos em iniciativas aptas a fomentarem na sociedade a ideia de que esse tipo de violência é desarrazoado e contra a base jurídica pela qual se alicerça o Estado brasileiro é de fundamental importância. Além disso, é uma conduta que vai de encontro a um direito humano fundamental.
Vale lembrar que não basta destinar rubrica orçamentária para esse tipo de política. É preciso que haja efetivamente execução, com a respectiva destinação de recursos apta a garantirem vazão à essa demanda preocupante em relação à dignidade da pessoa humana.
No que diz respeito ao assunto, aponta um estudo feito pela Câmara dos Deputados sobre o orçamento destinado às políticas para mulheres que, em 2020, em comparação ao exercício de 2019, houve um incremento de 144%, passando de R$ 51,7 milhões em 2019, para R$ 126,4 milhões em 2020.
Entretanto, em relação à execução, de um total de R$ 126,4 milhões previstos à época daquela publicação, o governo federal gastara apenas R$ 5,6 milhões, o que equivale um gasto de aproximadamente pouco mais de 5% do que foi planejado [8].
Como se vê, não basta destinar orçamento às políticas de enfrentamento à violência contra a mulher. É preciso monitorar a execução orçamentária, bem como a apresentação de resultados em relação àquelas políticas setoriais.
Para isso, por força do artigo 166, §1º da Constituição, as comissões de orçamento são colegiados importantes em relação ao acompanhamento e fiscalização orçamentária do “orçamento mulher”, devendo avaliar, pois, se a destinação orçamentária efetivamente resultou no desembolso financeiro com o respectivo resultado esperado.
O exercício do direito à liberdade é uma obrigação que o Estado tem de prestar a todos, e a violência contra a mulher, sob qualquer gênero, é um óbice ao gozo daquele direito humano.
Deve, pois, a administração pública destinar carga orçamentária à execução de políticas públicas pautadas contra a violência contra a mulher, sob pena de incidir a responsabilidade civil extracontratual do Estado.
Inclusive a inefetividade em a República Federativa do Brasil garantir aquele direito já foi reconhecida no âmbito internacional pela Organização dos Estados Americanos, cuja responsabilidade jurídica do país resultou na criação da Lei Maria da Penha.
Que a afronta ao direito das mulheres seja combatida de maneira transversal pela administração pública brasileira, sob pena de outra condenação no plano internacional.
Para isso o direito financeiro se presta a servir de uma ferramenta para a concretização da mudança de cenário a partir do processo de escolha e monitoramento do gasto público.
Assim, diante de tanta agressividade de gênero, o direito de ser mulher deve ser visto como uma prioridade alocativa em todas as suas fases: planejamento, execução, monitoramento e controle.
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Referências bibliográficas
BRASÍL. Cartilha de Prevenção ao assédio moral. Tribunal Superior do Trabalho. Brasília/DF. Disponível em https://www.tst.jus.br/documents/10157/55951/Cartilha+ass%C3%A9dio+moral/573490e3-a2dd-a598-d2a7-6d492e4b2457#:~:text=Ass%C3%A9dio%20moral%20%C3%A9%20a%20exposi%C3%A7%C3%A3o,prejudicando%20o%20ambiente%20de%20trabalho
_______. Monitoramento da Política Judiciária Nacional de Enfrentamento à violência contra as mulheres. CNJ. Brasília/DF. Disponível em https://paineis.cnj.jus.br/QvAJAXZfc/opendoc.htm?document=qvw_l%5Cpainelcnj.qvw&host=QVS%40neodimio03&anonymous=true&sheet=shVDResumo
_________. Governo gastou apenas R$ 5,6 milhões de um total de R$ 126,4 milhões previstos com políticas para mulheres. Câmara dos Deputados. Disponível em https://www.camara.leg.br/noticias/668512-governo-gastou-apenas-r-56-milhoes-de-um-total-de-r-1264-milhoes-previstos-com-politicas-para-mulheres/
CONTI, José Maurício. O planejamento orçamentário da administração pública no Brasil. Editora Blucher Open. São Paulo/SP: 2020.
Lei Maria da Penha foi criada a partir de uma solicitação da OEA. Disponível em https://jornal.usp.br/atualidades/lei-maria-da-penha-foi-criada-a-partir-de-uma-solicitacao-da-oea
SCAFF, Fernando Facury. Orçamento republicano e liberdade igual. Ensaio sobre direito financeiro, república e direitos fundamentais. Editora Fórum. São Paulo/SP: 2018
UNICEF, Declaração universal dos direitos humanos. Disponível em https://www.unicef.org/brazil/declaracao-universal-dos-direitos-humanos
Mário Augusto Silva Araújo é advogado, mestre em Constituição e Garantia de Direitos e especialista em Direito Constitucional pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte e professor de Direito Administrativo e Financeiro.