Assim que o novo governo federal assumiu prometeu uma reforma tributária para o primeiro semestre de sua gestão; o modelo adotado foi o idealizada pelo Centro de Cidadania Fiscal (CCF), um think tank independente criado em 2015, localizado em São Paulo.
Bernard Appy, um dos seus diretores, é o secretário Especial de Reforma Tributária. A ideia criada no CCF foi convertida na Proposta de Emenda Constitucional 45, apresentada pelo deputado Baleia Rossi em 2019, e está hoje pronta para apreciação no Plenário da Câmara.
A PEC 45 não é, porém, a única sobre reforma tributária em trâmite, atualmente. Há também a PEC 110 no Senado, proposta inicialmente pelo senador Davi Alcolumbre e outros, que aguarda hoje a apreciação de substitutivo proposto pelo senador Roberto Rocha (16/03/22). O substitutivo mescla as duas e já foi encampado nos discursos do governo, pois aparentemente tem mais força política para aprovação.
É preciso explicar que as duas propostas fundirão tributos incidentes sobre o consumo em um novo imposto sobre bens e serviços — o IBS. A diferença entre elas é que na PEC 45, haverá dois impostos — o IBS, resultante da fusão do IPI, PIS, Cofins, ICMS e ISS, e o IS, imposto que incidirá sobre produtos e serviços prejudiciais à saúde e ao meio ambiente. No substitutivo da PEC 110, teremos três novos tributos — o IBS, resultante da fusão do ICMS e ISS; a CBS, resultante da fusão de PIS, Cofins e Cofins importação, e o IS que incorporará o IPI, sem perder a finalidade extrafiscal de incidir sobre supérfluos.
As propostas são bastante parecidas também naquilo que prometem: modernizar o sistema tributário brasileiro com a criação de um IVA semelhante ao já praticado em países desenvolvidos, que difere em muito, dizem, de nosso ICMS, e, ainda simplificar o sistema com manutenção da carga tributária. Os quatro pilares da proposta são acabar com a sonegação, com os benefícios fiscais estaduais, com os benefícios fiscais federais e aumentar o PIB em até 20%, no fim do período de transição de seis anos (substitutivo PEC 110).
A promessa está nos discursos e apresentações feitos Brasil afora, nas matérias de jornal, onde até a ministra do meio ambiente apareceu defendendo a reforma tributária “capaz de atrair investimentos em renováveis”. A narrativa construída se alinha com um anseio geral de melhoria no sistema tributário nacional, tendo em vista a carga tributária, a complexidade na apuração e no passivo de trilhões de reais.
Cabe-nos, entretanto, analisar o que está efetivamente proposto para positivação, ou seja, qual é a reforma tributária escrita na proposta de emenda, e não apenas o que está sendo dito sobre ela; e ao fazer isto à luz de nossa experiência trabalhando com o Fisco das três esferas — federal, estadual e municipal, diariamente há um quarto de século, vemos o enorme gap entre a idealização e a realidade proposta, entre a narrativa e o futuro caótico.
Por exemplo, se pegarmos o ideal de simplificação do sistema, as alíneas “a” e “b”, do inciso VII, do artigo 156-A do substitutivo da PEC 110, diz que a alíquota do IBS será a soma entre a alíquota definida pelo Estado de destino, mais a alíquota do município de destino. Temos 26 estados e o Distrito Federal, além de 5.568 municípios no Brasil.
Significa dizer que cada estado terá o número de alíquotas possíveis, igual ao número de municípios que possuir. Em Goiás, por exemplo, teremos 246 alíquotas.
Numa dessas apresentações Brasil afora, este questionamento foi feito por um industrial que faz a distribuição de seus produtos diretamente em todo o Brasil. A resposta dada foi que isto é muito simples — basta fazer uma lista, especialmente porque as alíquotas poderão ser alteradas anualmente e só passarão a valer no ano seguinte.
Com todo o respeito, esta afirmação mostra total e absoluto desconhecimento do dia a dia de uma empresa. Alguém que diz isto nunca visitou um departamento contábil, fiscal ou tributário, nunca viu o desespero deles frente à pressão do departamento comercial para bater as metas, não conhece a realidade dos municípios, fora as grandes capitais, ignora ainda que a possibilidade de se alterar alíquota de imposto anualmente para valer no próximo ano é um princípio constitucional — está no artigo 150 da Constituição desde 1988 — no capítulo, que limita o poder de tributar.
O exemplo é simplório frente a tantos outros que encontramos, mas é espantoso para uma proposta que promete simplificação.
Alardeiam que o IBS e a CBS, não incidirão sobre eles mesmos, nem um sobre o outro, como sinônimo de transparência, mas não dizem que o IS, o imposto de caráter extrafiscal, e, portanto, aquele que pode ter as alíquotas mais altas, comporá a base dos dois (artigo 153, §6º, II).
O IPTU só será atualizado uma vez a cada quatro anos, mas esqueceram de dizer que isto poderá ser feito sem lei (artigo 156, §5º).
Quanto à modernização que significaria o IVA, não informam que o novo Imposto tem as mesmas características do ICMS, quanto ao débito e ao crédito, e todas as inovações possíveis caem por terra quando se diz que o aproveitamento do crédito será possível com a comprovação do pagamento.
Além de não trazer a forma como o Fisco se tornará um banco e cada empresa terá uma conta corrente, a proposta desconsidera em absoluto a relação entre Fisco e contribuinte. Quem propõe isto, nunca lidou com um processo de compensação e restituição, e nem está a par das estatísticas de saldo acumulado nas empresas.
Poderíamos destrinchar artigo por artigo, mas optamos por pinçam exemplos aleatórios. Não adentraremos ao caos que serão os seis anos de transição, quando as empresas administrarão os dois sistemas, passarão a lidar com um Conselho Federativo do IBS, que fiscaliza, distribui, julga, bem como com o remanescente dos fiscos e seus conselhos julgadores.
Por fim, alertamos que na construção da narrativa há muita ênfase de que não haverá aumento de carga tributária. Porém, no texto, o que vemos é segurança de equilíbrio da alíquota para que não haja redução (artigo 10 ADCT).
Apesar disto, ansiamos por uma reforma tributária, mas uma que pode até não ser a ideal, mas que traga real resolução dos problemas existentes, e não novos.
Fernanda Terra é advogada tributarista, mestre em Direito Tributário pela Fundação Getúlio Vargas (FGV/SP) e sócia do Terra e Vecci Advogados.