Gomes e Lorenzoni: Travessia do Rubicão e militarização da segurança

No livro Rubicão, que conta a ascensão e a queda da República Romana, o clímax é alcançado com a passagem de Júlio César e de seus exércitos pelo rio de mesmo nome na Itália. Conta-se que, às vésperas do ato que mudaria a trajetória de Roma, César bradou a frase “a sorte está lançada”. Era uma tradição importante a de que os exércitos fossem desmobilizados antes de se atravessar a margem do rio. César rompeu com o preceito e se transformou em um tirano, entrando também para a história com a shakespeariana indagação: “até tu, Brutus?”, enquanto era emboscado e assassinado no Senado romano.

Mesmo antes de Roma, cerceamentos aos poderes totalizantes já haviam sido impostos. Nesse longo caminho, com o avançar da história, surgiram novas formas de o Estado ser organizado, embora, de acordo com o filósofo Walter Benjamin, certas parcelas das sociedades nunca tenham podido desfrutar do “progresso”.

Já na modernidade, preceitua-se que a Constituição deve nortear a atuação do poder manejado pelo Estado, desde os municípios ao Executivo federal. No Brasil, antes da Constituição de 1988, não havia um capítulo específico para a segurança pública nas cartas políticas brasileiras, como o é o atual capítulo III do Título V  Da defesa do Estado e das instituições democráticas. Nele, reside o artigo 144, que orienta a atuação das forças de segurança pública no país.

O dispositivo elenca taxativamente as organizações policiais que podem, em nome do Estado, exercer as atividades de segurança: polícias estaduais (civil e militar), corpos de bombeiros e polícias penais, rodoviária e ferroviária. Em seu parágrafo 8º, coloca-se a possibilidade de os municípios constituírem guardas municipais destinadas à proteção de seus bens, serviços e instalações, na forma da lei, não lhes conferindo o exercício de polícia ostensiva ou judiciária.

A propósito, o próprio Estatuto das Guardas Municipais (Lei Federal 13.022/2014), em seu artigo 5º, caput, deixa claro que sua função deverá respeitar “as competências dos órgãos federais e estaduais”, dentre as quais se encontra a de preservação da ordem pública, característica das polícias ostensivas (o que não é o caso das guardas), nos termos do caput do dispositivo 144 da CF/88. O inciso XII do mesmo artigo dispõe expressamente se tratarem as guardas de polícia administrativa, o que definitivamente não se confunde com polícia de segurança, mas se coaduna com o nobre papel de realizar a prevenção social à criminalidade nos municípios, atuando comunitariamente, próximo dos habitantes locais e de suas especiais demandas. E, é claro, abrange o poder de dar voz de prisão mediante flagrante delito, conforme o dispositivo 301 do Código de Processo Penal atribui, além das autoridades policiais, a “qualquer do povo”.

O simples fato de sua disposição constitucional localizar-se topograficamente no capítulo destinado à segurança pública não é suficiente para conferir às guardas natureza diversa. Nem mesmo uma suposta “escalada da criminalidade”, a “falta de pessoal” entre os profissionais responsáveis pela ordem pública e um hipotético “aumento da demanda por segurança” por parte da população autorizariam a transgressão à forma constitucional. Em se tratando de Administração Pública, o princípio da legalidade impõe que a atuação do Estado esteja devidamente calcada no que é normatização expressa  nesse caso, a salvaguarda de bens, serviços e instalações municipais é o que cabalmente se reserva às guardas.

As previsões constitucional e legal se justificam, ainda, na medida em que estamos tratando de limites ao poder de atuação do Estado no tocante ao instrumento mais brutal do Leviatã: a espada penal. Como sabemos, um dos principais vieses de um Estado Democrático de Direito é a garantia das liberdades individuais, o que se realiza primordialmente pela proteção à vida.

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Nesse passo, trajar guardas municipais com roupas militares, dar-lhes treinamento militar, armas de grosso calibre, funções de policiamento ostensivo e investigativo burlam a Constituição, violam direitos da população e não trazem mais segurança.

O Brasil está farto de exemplos recentes de atuações à margem da Constituição que tiveram resultados desastrosos, como a operação policial mais letal do Estado do Rio de Janeiro no morro do Jacarezinho (2021), com 28 pessoas executadas sumariamente e pouca ou nenhuma afetação relevante na dinâmica do tráfico de drogas daquela região. As marcas desse e de tantos outros massacres são indeléveis tanto para os diretamente envolvidos quanto para o projeto de país que queremos. É preciso urgentemente romper com a crença no aumento da militarização do cotidiano como resolução de todas as mazelas sociais, uma vez que, além de extremamente doloroso, tem se mostrado altamente ineficaz, violador de direitos e indutor da violência que pretende combater.

Nessa esteira, a política de segurança pública deve ser voltada ao controle da fúria do Leviatã, e não à sua conflagração, caminhando na direção de um novo horizonte capaz de superar o estrito paradigma punitivo que historicamente a orienta.

A história mostra que, depois de César, outros imperadores vieram, muitos dos quais tinham para si guardas pretorianas, que agiam conforme seus interesses. Na contemporaneidade, contudo, temos as raias constitucionais, que vedam a possibilidade de governantes constituírem milícias ao seu alvedrio, sem qualquer tipo de controle externo, com pequenos e grandes soberanos decidindo sobre o estado de exceção.

Em se tratado de segurança pública, há que se atuar com minimalismo e inteligência, isto é, com estratégia, planejamento, tratamento sistemático de informações, atividade investigativa e exercício prioritário de meios outros que não a força, que deve ser usada somente quando imprescindível (e na medida do necessário).

Há que se compreender que o agente de segurança pública, em primeiro lugar, não é nenhum entusiasta fantasiado de “super-herói” com a caricatural missão de “combater o crime”; é um profissional, essencial à sociedade e altamente respeitável, que passou por um processo seletivo rigoroso e um treinamento específico para a realização de suas funções  o que envolve, inclusive, lidar com condições de extremo estresse, situações-limite, sem perder a calma e a capacidade de raciocinar logicamente. Em segundo lugar, ele não está a tratar com inimigos de guerra, e sim, com cidadãos, que devem ser abordados como tais (o que, sublinha-se, não retira a possibilidade de manejo da força quando indispensável).

Por tudo isso, em matéria de segurança pública, o caráter preventivo e comunitário deve prevalecer sobre as ações repressivas. Esses são preceitos fundamentais para que se materialize a democracia, organização na qual a liberdade e a vida (de todos) devem ser a regra, jamais a exceção.

Quando César, insaciável, quis passar por cima do Senado romano a fim de garantir mais vitórias militares em seu nome, de maneira a aquistar mais glória e poder sem qualquer respaldo institucional, não imaginou estar cavando sua própria morte, que viria, dentre outras, pelas mãos daquele que um dia houvera protegido como um filho.

Jogar dados com a democracia, expô-la a uma guerra interna com uma legião cada vez maior de soldados armados contra seus cidadãos vistos sob o espectro do inimigo não é prezar por sua mantença. Conferir poder de polícia ostensiva  em última instância, de vida e morte  a quem a Constituição sabiamente optou por não fazê-lo é o perigoso atravessamento de uma fronteira que nos levará a um cenário macabro, tirânico e provavelmente irretornável.

Transpor esse rio de sangue custará não só conquistas civilizatórias mínimas como incontáveis vidas. O punhal de Brutus mais uma vez estará à espreita e, repetidamente, se voltará contra nós.

Raoni Vieira Gomes é advogada criminalista, mestre em Direitos e Garantias Fundamentais pela Faculdade de Direito de Vitória (FDV) e membro do Grupo de Pesquisa CNPq Teoria Crítica do Constitucionalismo.

Lara Ferreira Lorenzoni é advogada criminalista, doutoranda em Direitos e Garantias Fundamentais pela Faculdade de Direito de Vitória (FDV) e membro do Grupo de Pesquisa CNPq Teoria Crítica do Constitucionalismo.

Consultor Júridico

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