No último dia 17, foi publicada no Diário Oficial da União a Lei 14.583, que determina a difusão, por parte dos órgãos públicos em suas respectivas esferas de atuação, dos direitos fundamentais e dos direitos humanos. Na prática, a norma estabelece a disseminação de trechos de instrumentos legais nacionais e internacionais para a divulgação e publicização dos direitos humanos para a população brasileira.
A lei tem origem no Projeto de Lei 2941/2008 (que, por sua vez, tem origem no Projeto de Lei do Senado 490/2003). A redação final da Lei 14.583 dispõe que a divulgação de normas de direitos fundamentais e direitos humanos deverá ser realizada especialmente em relação aos direitos que tratam de mulheres, crianças, adolescentes e idosos.
Apesar da delimitação de quatro grupos vulneráveis específicos, a redação do artigo 1° da Lei deixa claro que seu escopo não se limita a um rol taxativo de instrumentos jurídicos ao postular que deverão ser divulgados os direitos fundamentais e humanos “tais como os previstos na Constituição Federal; no Estatuto da Criança e do Adolescente; na Convenção Americana sobre Direitos Humanos; nos Pactos Internacionais dos Direitos Civis e Políticos e dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais; na Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra a Mulher; na Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher; na Convenção sobre os Direitos das Crianças e nos seus Protocolos Adicionais; e no Estatuto da Pessoa Idosa”.
A lei define três meios de divulgação para a execução da lei: 1) a inclusão de trechos de instrumentos que consagram direitos fundamentais e humanos nos contracheques mensais dos servidores públicos federais (artigo 2°); 2) a inclusão de material alusivo aos direitos fundamentais e humanos nas programações de emissoras públicas de rádio e televisão (artigo 3°); e 3) a inclusão de trechos de instrumentos que consagram direitos humanos e fundamentais na publicidade de atos, programas, obras, serviços e campanhas dos órgãos públicos (artigo 4°).
Esses meios de divulgação refletem a preocupação da autora do PL, a então senadora Patrícia Saboya, que reforçou a importância da consciência popular da existência de normas protetivas de direitos humanos e fundamentais na justificação do projeto.
Ao expressamente prever a difusão de trechos de tratados internacionais de direitos humanos dos quais o Brasil é Estado Parte, a Lei consagra e fortalece uma noção eficiente de constitucionalismo multinível. Nesse cenário, a pluralidade de ordens jurídicas em nível internacional, regional e nacional [1] leva à abertura do Direito Brasileiro ao Direito Internacional dos Direitos Humanos, com vistas à proteção da pessoa humano do princípio pro persona [2].
A promulgação da Lei 14.583 corrobora uma aproximação entre o Estado brasileiro e a Corte Interamericana de Direitos Humanos, órgão jurisdicional internacional de caráter permanente cuja competência é aceita pelo Brasil e que já ordenou, em sede de medidas para reparação de violação de direitos humanos, a implementação de ações de formação e capacitação em direitos humanos com ênfase em igualdade (casos González e Outras (Campo Algodoeiro) vs. México e López Soto e outros vs. Venezuela); a realização de campanhas sobre direitos de populações marginalizadas (caso Nadege Dorzema e outros vs. República Dominicana) e a elaboração e implementação de políticas públicas relacionadas à proteção de grupos vulneráveis (casos Campo Algodoeiro vs. México e López Soto e outros vs. Venezuela).
Outro aspecto relevante da lei é que ela contribui para o acervo legislativo antidiscriminatório do ordenamento jurídico brasileiro. O Direito da Antidiscriminação é um campo de conhecimento jurídico próprio que compreende o princípio da igualdade como proibição de discriminação, desvelando, por um lado, dinâmicas e modalidades de discriminação e, por outro, formulando respostas jurídicas concretas [3]. Para além de uma noção formal de igualdade, em que a toda pessoa corresponde igual proteção da lei, o Direito da Antidiscriminação se lastreia na igualdade material, materializada na máxima “tratar os desiguais de maneira desigual”, e no (direito à) diferença. Preocupa-se, portanto, não apenas com a mera vedação da valoração negativa atribuída a certas identidades, mas também (e principalmente) com a promoção de indivíduos e grupos vulneráveis enquanto plenos sujeitos de direitos, fomentando valores como a autonomia, o empoderamento jurídico, político e social e a cidadania inclusiva [4].
Mais especificamente, a Lei 14.583 se demonstra uma importante ação afirmativa. Ações afirmativas são políticas, sejam elas governamentais ou não, gerais ou específicas, geralmente de cunho econômico, político, social, cultural ou educacional, voltadas para a afirmação e a promoção de pessoas e grupos vulneráveis marcados por critérios de proteção especial. Esses critérios de proteção especial ou tratamento diferenciado são características utilizadas para a classificação de pessoas em grupos sistemática e usualmente inseridos em contexto de tratamento desvantajoso e discriminatório em virtude de processos de marginalização e subjugação social e política [5].
Uma breve mirada aos dispositivos da Lei 14.583 revela a intenção antidiscriminatória do legislador. Ao definir que a difusão do arcabouço de normas de direitos humanos e direitos fundamentais se desse sobretudo em relação às mulheres, às crianças, aos adolescentes e aos idosos, o Legislativo expressamente reconhece, ainda que indiretamente, a posição de desvantagem estrutural enfrentada por indivíduos que compõem os grupos ora elencados. Em outras palavras, especifica-se o sujeito de direitos, interpretado a partir de suas particularidades, que demanda para a resolução de seus desafios e obstáculos uma resposta diferenciada e embasada na sua realidade.
A legislação sob análise constitui, dessa maneira, um remédio previsto em lei para o empoderamento desses indivíduos, já que fomenta a formação de uma consciência cidadã a partir de práticas sociais que informam sobre a promoção, proteção e defesa dos direitos humanos e fundamentais, bem como sobre a reparação de eventuais violações. Sendo o Estado brasileiro o ator com a “obrigação primordial de difundir os direitos fundamentais e os direitos humanos das vítimas reais e potenciais desse tipo de violência”, nas palavras da senadora autora do Projeto de Lei, a Lei 14.583 surge como estratégia promocional e política compensatória que acelera a igualdade enquanto processo, estimulando “a inserção e inclusão de grupos socialmente vulneráveis nos espaços sociais” [6] a partir de uma estratégia juridicamente definida de empoderamento social e de fortalecimento do acesso à justiça de populações marginalizadas.
Na realidade, a Lei nada mais faz do que aprofundar e conferir efetividade aos termos da Constituição. Por exemplo, o artigo 5° determina que “[t]odos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza” (caput) e que “homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações” (inciso I), bem como que “a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais” (inciso XLI). Em relação à proteção de gênero, a Constituição estabelece certas garantias visando a proteção diferenciada de mulheres, como, por exemplo, a proteção do mercado de trabalho da mulher (artigo 7°, XX) e o igual exercício dos direitos e deveres referentes à sociedade conjugal entre homens e mulheres (artigo 226, §5°). Provisões similares podem ser identificadas para a proteção de crianças e adolescentes (artigo 227, caput e §§1° e 4°) e pessoas idosas (artigo 230).
É justamente essa adequação aos objetivos postos pela Constituição de “construir uma sociedade livre, justa e solidária”, “erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais” e “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação” (artigo 3°, I, III e IV da CF) que assegura a validade dessa norma a partir da lente do Direito da Antidiscriminação. Afinal, a Constituição adota a teoria da desigualdade justificada, em que deverá se configurar 1) vínculo de pertinência lógica entre o elemento de diferenciação escolhido pela lei e a situação objetiva analisada; 2) atendimento aos objetivos do Estado Democrático de Direito; e 3) adequação ao princípio da proporcionalidade [7]. Promover o fortalecimento da cultura de direitos humanos e o acesso à justiça por grupos vulneráveis é um objetivo em consonância com o ordenamento jurídico-constitucional brasileiro e é, portanto, um caminho adequado para a consecução dos objetivos da eliminação da desigualdade no Brasil.
A Lei 14.583 representa uma importante contribuição ao arcabouço antidiscriminatório no país. Enquanto ação afirmativa, ela integra normas de direitos humanos e fundamentais a nível nacional e internacional em prol do empoderamento social, político e jurídico de mulheres, crianças, adolescentes e pessoas idosas, ao mesmo tempo que não resulta em dispêndio público adicional e corresponde, portanto, aos princípios da Administração Pública. Incentiva-se que iniciativas similares, quiçá voltadas a outros grupos vulneráveis, como povos indígenas, minorias religiosas e pessoas LGBTQIA+, possam ser elaboradas e promulgadas no futuro. No momento, cabe averiguar e avaliar como e se os comandos da Lei serão devidamente executados pelos órgãos públicos, assim como se a população brasileira se mostrará aberta e receptiva à relevante inovação introduzida pela Lei 14.583/2023.
Derek Assenço Creuz é mestrando em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) com bolsa Capes/Proex, especialista em Direitos Humanos pelo Curso CEI e pesquisador em Direito da Antidiscriminação, Direito Internacional e Direitos Humanos.