A sobrecarga que as ocorrências de apreensão de contrabando de até mil maços de cigarro causa sobre a Polícia Federal, o Ministério Público Federal, a Justiça Federal e o sistema prisional brasileiro pode levar o Superior Tribunal de Justiça a admitir a aplicação do princípio da insignificância nesses casos.
A proposta foi feita à 3ª Seção nesta quarta-feira (14/6), em voto-vista do ministro Sebastião Reis Júnior. O tema está em julgamento sob o rito dos repetitivos. Uma tese será definida, a qual vinculará as decisões de todos os tribunais e juízes do país nas instâncias ordinárias.
Relator, o ministro Joel Paciornik votou em abril para recusar a aplicação do princípio da insignificância. Para ele, há inequívoca ofensa à saúde publica e também à segurança pública, motivo suficiente para afastar a ausência de tipicidade da conduta.
Abriu a divergência o ministro Sebastião, que encampou a proposta do próprio Ministério Público Federal. A ideia é considerar a conduta insignificante quando a apreensão for de até mil maços de cigarro, exceto se o acusado for reincidente nessa conduta.
O julgamento gerou debate e foi interrompido por pedido de vista do ministro Reynaldo Soares da Fonseca. Até o momento, o placar está em 3 a 2 pela aplicação da insignificância. Restam ainda três ministros para votar. Se houver empate, o presidente da Seção definirá o caso.
Política criminal
O voto do ministro Sebastião Reis Júnior reconhece, na linha da jurisprudência do STJ apresentada pelo relator, que o contrabando de cigarros, em regra, não comporta aplicação da insignificância ante os bens jurídicos tutelados pelo artigo 334-A, inciso II, do Código Penal.
Mas pontua a necessidade prática de mitigar essa posição. Conforme defendeu o MPF, processar as apreensões de menos de mil maços de cigarro é medida ineficaz para proteger esses bens jurídicos, além de não ser razoável do ponto de vista de política criminal e gestão de recursos.
“Isso sobrecarrega a Justiça Federal e os demais órgãos da persecução penal, sobretudo em região de fronteira, com inúmeros inquéritos e feitos derivados de apreensões inexpressivas, drenando tempo e recursos indispensáveis para punir crimes de vulto”, justificou.
Acompanharam a divergência, até agora, o ministro Rogerio Schietti e o desembargador convocado Jesuíno Rissato. A tese proposta foi:
O principio da insignificância é aplicável ao crime de contrabando de cigarros quando a quantidade apreendida não ultrapassar mil maços, seja pela diminuta reprovabilidade da conduta, seja pela necessidade de se dar efetividade à repressão ao contrabando de vulto, excetuada a hipótese de reiteração da conduta, circunstância apta a indicar maior reprovabilidade e periculosidade social da ação.
Já o relator foi acompanhado pelo desembargador convocado João Moreira Batista. A tese proposta por ele foi:
O princípio da insignificância não se aplica aos crimes de contrabando de cigarro, por menor que possa ter sido resultado da lesão patrimonial, pois a conduta atinge outros bens jurídicos como a saúde, a segurança e moralidade públicas.
Falência do Estado
Com o pedido de vista do ministro Reynaldo Soares da Fonseca, abre-se a possibilidade de a ministra Laurita Vaz votar no caso — ela estava ausente justificadamente nesta quarta-feira, mas poderá se manifestar. Além deles, votará ainda o ministro Antonio Saldanha Palheiro.
O ministro Messod Azulay, que não tem direito a voto porque estava ausente no dia das sustentações orais sobre o tema, chamou a atenção para a importância da tese a ser definida e criticou a posição manifestada pelo MPF, a qual classificou como “a falência do Estado”.
“Então basta passar pela fronteira com mil maços de cigarro de hora em hora? Se passa uma, duas, dez vezes e não é pego, então tudo bem. É a decadência total do Estado. E o próprio Ministério Público pedindo? Estamos falando de contrabando. O MPF está dizendo que não é relevante. Então acabou o Estado”, criticou.
O ministro Sebastião Reis Júnior pontuou que a hipótese da insignificância observa a realidade brasileira. “O Estado não aguenta. Ele não tem estrutura suficiente para atuar em todos ilícitos que são praticados. Não adianta tapar o sol com peneira. É a falência do Estado? É o nosso dia a dia”, disse. “O próprio MP está dizendo: eu não tenho condições de atuar em todos esses ilícitos; prefiro concentrar esforços no que tem repercussão maior.”
Para o ministro Messod Azulay, o erro é exatamente esse: reconhecer que a realidade é irreversível. Em sua visão, quanto mais isso acontece, mais o crime organizado avança e mais o Estado brasileiro se retrai.
“Dizer que não posso mais combater a violência? Então acabou o Estado. Por isso na 5ª Turma estou extraindo peças contra policiais. Não me conformo com o despreparo da polícia. Está despreparada? Vai se preparar. Tem dinheiro pra tudo, mas não tem dinheiro para o MPF se estruturar melhor? Para botar gente na fronteira? Que tenha”, criticou.
Combate ao crime organizado
O debate foi encerrado após o esclarecimento feito pela subprocuradora da República em atuação na 3ª Seção, Raquel Dodge. Ela explicou que há muito tempo o MPF discute a conveniência de concentrar os esforços em uma infinidade de crimes praticados com pequena quantidade de produto contrabandeado, enquanto grandes criminosos passam ao largo.
“Fato é que o Ministério Público Federal quer não é a impunidade: é, diante de uma dificuldade de pessoal, concentrar a atuação criminal na descoberta de quem são os mandantes e financiadores desse tipo de organização criminal”, afirmou.
Ela ainda apontou que o reconhecimento da insignificância do contrabando de cigarros não vai afetar a atuação da Receita Federal, que continuará a apreender tais produtos nas zonas de fronteira e declarar seu perdimento. “Haverá apenas a dispensa de persecução penal desses casos”, complementou.
REsp 1.971.993
REsp 1.977.652