*trecho do livro “Gilmar Mendes, 20 anos de STF: o acadêmico, o gestor, o juiz”
“Costuma-se dizer que ninguém conhece verdadeiramente uma nação até que tenha estado dentro de suas prisões. Uma nação não deve ser julgada pelo modo como trata seus cidadãos mais elevados, mas sim pelo modo como trata seus cidadãos mais baixos”
(Nelson Mandela, 1994).
O CNJ (Conselho Nacional de Justiça) foi instalado em 2005, estava se estruturando ainda e já recebia demandas relativas ao sistema carcerário, a exemplo da proposta vinda da Câmara dos Deputados no sentido de promover fiscalização mais efetiva sobre a execução penal.[1]
A importância do tema e as deficiências de gestão do sistema justificaram o lançamento em março de 2007, pelo CNJ, do Banco de Dados Sobre a População Carcerária, com o objetivo de:
“[…] conhecer detalhadamente a situação de cada apenado e acompanhar de perto o cumprimento das penas, evitando que os detentos fiquem nas prisões por tempo maior que as penas que devem cumprir. O acompanhamento por meio do Sistema também permitirá fazer com mais facilidade a progressão de pena”[2]
Em 22/8/07, a Câmara dos Deputados instalou CPI para apurar o padrão das prisões brasileiras e o nosso modo de encarcerar pessoas, e entre a instalação e o relatório final, em 09/6/2008, o noticiário foi repleto de informações e relatos das graves violações verificadas no cárcere, retratadas em publicação da Câmara. [3]
É nesse contexto que tem início a gestão do ministro Gilmar Mendes na presidência do CNJ, em 26/3/2008, que dentre as suas prioridades elegeu muito claramente o cárcere brasileiro, trazendo ao debate todos os responsáveis pelo sistema de justiça.
Mais tarde, ao final da gestão, pudemos melhor compreender o quanto esse tema do cárcere no Brasil era caro ao ministro e o incomodava.
Os mutirões carcerários, com início em 2008, foram instrumentos que possibilitaram ao CNJ conhecer o sistema, compreender a sua complexidade e propor importantes encaminhamentos.
Nos Estados percorridos, diversas irregularidades foram encontradas.
Para ilustrar, relato a situação de um detento que ocupava uma vaga em um hospital de custódia desde 2007, sob a acusação de que, reiteradamente, utilizava-se de telefone público para fazer falsas comunicações de crimes à Polícia Militar, e, por esse delito, cuja pena em tese estaria prescrita, estava custodiado há dois anos. Fora preso em flagrante em 2007 e teve sua prisão mantida, e mais adiante teve contra si instaurado incidente de insanidade mental, depois houve uma declinação de competência, e, por fim uma redistribuição do feito. Nesses quatro momentos processuais a prisão poderia ser revista, mas cumpriram-se apenas formalidades legais, cujo foco não era a pessoa custodiada.
Alguns aguardavam meses para serem libertados após a extinção da pena, aprisionados ainda à burocracia da Justiça; outros, mesmo já libertados, continuavam com seus processos ativos, mesmo com a pena extinta, correndo o risco de novamente serem presos sem título judicial válido, como de fato aconteceu, segundo relatos.
Um homem foi encontrado preso provisoriamente há 11 anos; e uma mulher em estado terminal em decorrência de um câncer ainda estava presa, sem um olhar humanitário que a colocasse em condições dignas.
Dezenas pessoas foram libertadas, com pendências processuais das mais diversas, desde o longo tempo para instrução, alguns aguardando há vários anos, até ausência de citação ou falta de alguma intimação, estando, pois, praticamente sem defesa.
Um homem estava preso, mas com alvará de soltura expedido em setembro de 2007, e só libertado no mutirão carcerário do CNJ em agosto de 2009.
Uma mulher condenada à pena de dois anos e oito meses no regime aberto estava presa desde em 2007, condenada em 2008, tendo cumprido a pena integralmente no regime fechado.
Realmente, não se imaginava fossem tantos os casos de flagrante desrespeito das regras constitucionais que autorizam a prisão de pessoas.
Em quase dois anos de revisão das prisões no Brasil, de agosto de 2008 a abril de 2010, foram analisados 111 mil processos; expedidos mais de 20 mil alvarás de soltura; e concedidos cerca de 34 mil benefícios previstos na Lei de Execução Penal, nos Estados do Amapá, Tocantins, Mato Grosso, Pará, Maranhão, Alagoas, Piauí, Amazonas, Espírito Santo, Paraíba, Sergipe, Mato Grosso do Sul, Rio de Janeiro, Pernambuco, Goiás, Ceará e Bahia.
Registre-se que o ministro Gilmar Mendes procurou acompanhar pessoalmente as inspeções em diversos desses presídios.
Esteve no Talavera Bruce (Bangu-RJ), no Santa Luiza (Maceió-AL), no Complexo Penitenciário Anísio Jobim (Manaus-AM), no Presídio de Pedrinhas (São Luís-MA), na penitenciária de Segurança Média 2 (Viana-ES), dentre muitos outros.
Havia a preocupação não só de enfrentar o grave problema do encarceramento abusivo, mas também de adotar medidas que dificultassem a continuidade daquele estado de coisas desumano, que o STF em 2015 veio reconhecer inconstitucional na ADPF 347.[4]
Nesse sentido, também importa verificar como legado dos mutirões os diversos normativos sobre o tema, com forma de assegurar a fiscalização e a regularidade das prisões. Vejamos:
- Resolução Conjunta nº 1/09 CNJ-CNMP, que institucionaliza mecanismos de revisão periódica das prisões provisórias e definitivas, das medidas de segurança e das internações de adolescentes.
- Resolução nº 112, de 06 de abril de 2010, que institui mecanismo para controle dos prazos de prescrição nos tribunais e juízos dotados de competência criminal.
- Resolução nº 108, de 06 de abril de 2010, que dispõe sobre o cumprimento de alvarás de soltura e sobre a movimentação de presos do sistema carcerário, e dá outras providências.
- Resolução nº 96, de 27 de outubro de 2009, que institui o Projeto Começar de Novo no âmbito do Poder Judiciário, com o objetivo de promover ações de reinserção social de presos, egressos do sistema carcerário e de cumpridores de medidas e penas alternativas.
- Resolução nº 66, de 27 de janeiro de 2009, que cria mecanismo de controle estatístico e disciplina o acompanhamento, pelos juízes e Tribunais, dos procedimentos relacionados à decretação e ao controle dos casos de prisão provisória.
- Resolução nº 62, de 10 de fevereiro de 2009, que disciplina, no âmbito do Poder Judiciário, os procedimentos relativos ao cadastramento e à estruturação de serviços de assistência jurídica voluntária.
- Resolução Nº 56, de 28 de maio de 2008, alterando o artigo 1º da Resolução nº. 19, de 29 de agosto de 2006, que dispõe sobre a execução penal provisória.
Com o mesmo escopo, em abril de 2009, no contexto do “II Pacto Republicano de Estado por um sistema de Justiça mais acessível, ágil e efetivo”, fixou-se, como metas prioritárias, a “Sistematização da legislação processual penal, conferindo-se especial atenção à investigação criminal, recursos, prisão processual, fiança, liberdade provisória e demais medidas cautelares” (item 1.6 do anexo do Pacto), na tentativa de inverter a lógica da automaticidade da manutenção indefinida do cárcere em caso de prisão em flagrante, passando a obrigar os magistrados a analisarem a possibilidade de implementar liberdade provisória, com ou sem fiança, ou a fixação de medidas cautelares diversas da prisão, contribuindo para a aprovação do Projeto de Lei 4208/2001, de autoria do presidente Fernando Henrique Cardoso, que atualizava o Código de Processo Penal (alterações nos artigos 282 e 319 do CPP, entre outros).
E, por fim, ainda como legado dos mutirões carcerários, com o objetivo de institucionalizar as atividades correlatas, em agosto de 2009 o Ministro Gilmar Mendes apresentou proposta ao Congresso que restou aprovada e transformada na Lei 12.106/09, a qual criou o Departamento de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário e do Sistema de Execução de Medidas Socioeducativas (DMF), integrado ao CNJ, com atuação na fiscalização e o controle do cumprimento das penas no sistema carcerário, além de proposição de medidas para sanar eventuais irregularidades encontradas no mesmo.
Registre-se também a importância do Projeto “Começar de Novo”, instituído em novembro de 2009. Esse projeto visava sensibilizar os órgãos públicos e da sociedade civil para que forneçam postos de trabalho e cursos de capacitação profissional para presos e egressos do sistema carcerário, promovendo a cidadania e consequentemente a redução da reincidência de crimes.
É impossível falar hoje na necessidade de melhoria do sistema prisional sem que se faça referência aos mutirões carcerários, da experiência neles colhida e dos resultados reveladores.
As irregularidades constatadas foram tantas que o discurso fácil de atribuir ao Poder Executivo toda a responsabilidade pelas mazelas do sistema carcerário ficou superado, pois a falha aqui é generalizada e pode ser atribuída a todos os órgãos do sistema de justiça, e não apenas aos departamentos do Poder Executivo, conforme apontou o Conselho Nacional de Justiça que, a partir dessa experiência enriqueceu o seu discurso e passou a exigir parâmetros de legalidade para as prisões, e um outro patamar para as inspeções judiciais em presídios e manutenção da custódia.
Para além daquela gestão iniciada 26/3/2008, ouso dizer que os mutirões carcerários marcam no Brasil um trabalho de vigilância e de revisão das prisões, que deve ser permanente e interinstitucional, para que os casos emblemáticos trazidos à lume passem cada vez mais a ser exceção, e não regra.
Como testemunhas desse momento histórico, e indicado pelo Ministro Gilmar Mendes para coordenar os mutirões nacionalmente, aos poucos fomos compreendendo o alcance de algo que o Ministro já vinha falando há algum tempo: “precisamos de advogados e defensoria para os pobres, repensar esse modelo de prisões, e acabar com a eternidade das prisões provisórias”.
A cada relato, a cada registro fotográfico que vinham das prisões, inconformado e incansável, ele imediatamente falava com o Governador do estado, falava com o Secretário de Estado, falava com quem tinha responsabilidades, e com quem pudesse de alguma forma agir, e as coisas aconteciam, compromissos eram firmados, alguns passos eram dados.
Falava ao telefone, agendava no seu gabinete, com um e com outro e também viajava aos estados para estar com os governadores, para visitar presídios, numa agenda que tinha o encarceramento de pessoas como prioridade.
Fica esse registro como reconhecimento da equipe dos mutirões carcerários, ao ministro Gilmar Mendes, um homem sensível à causa da liberdade, gestor de excelência e contundente nas suas convicções humanistas.
Obrigado Ministro.
** “Gilmar Mendes, 20 anos de STF: o acadêmico, o gestor, o juiz” será lançado nesta semana em Lisboa, e em agosto no Brasil