A sentença condenatória, desde as fontes romanas do processo arcaico, sempre foi o título executivo judicial por excelência. E assim, igualmente na dogmática moderna, é ela que representa, de forma marcante, o exemplo mais significativo desta espécie de título, a viabilizar o início dos atos de execução forçada.
Não é de hoje que um segmento significativo da doutrina processual brasileira sustenta que a tripartição das eficácias das sentenças não encerra todas as situações enfrentadas no plano prático. Assim, ao lado da tradicional classificação dogmática dos provimentos finais nas sentenças declaratória, constitutiva e condenatória, acrescentam-se as sentenças mandamental e executiva.
Seja como for, é curial que toda e qualquer ação e, pois, todas as sentenças proferidas em processo de conhecimento contenham eficácia declaratória, em grau de intensidade mais ou menos acentuado.
No que ora interessa, devo registrar, de início, que as ações de cognição, objetivamente simples, são, sempre e apenas, declaratórias, porque têm como primordial escopo estabelecer a certeza objetiva acerca de uma determinada relação jurídica.
A literatura especializada, de um modo geral, muito debateu acerca da natureza da ação declaratória, procurando justificar a sua existência ao lado das demais.
A celeuma restou minimizada quando se deu conta de que a certeza jurídica é, em si mesma, um bem da vida, alcançável, como qualquer outro bem juridicamente relevante, por meio do processo.
Como, com acuidade, pontuou Chiovenda, a dificuldade que a doutrina anterior encontrava em arrolar a ação declaratória com as demais resultava de não se perceber que há bens que apenas o processo judicial pode atribuir, sendo um deles a certeza jurídica: até mesmo o reconhecimento pelo adversário jamais poderia produzi-la em igual grau, desde que nenhuma segurança se equipara à da coisa julgada (cf. Giuseppe Chiovenda, Instituições de direito processual civil, vol. 1, 2ª ed., trad. port. J. Guimarães Menegale, São Paulo, Saraiva, 1965, pág. 222. V., seguindo esse posicionamento, Adroaldo Furtado Fabrício, A ação declaratória incidental, 2ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 1995, pág. 30; Celso Agrícola Barbi, Ação declaratória principal e incidente, 4ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 1977, pág. 70).
Importa frisar que, diante do princípio dispositivo, contemplado no artigo 141 do Código de Processo Civil, não se pode negar ao autor a pretensão à simples declaração, mesmo quando já consumado o inadimplemento pelo réu, sendo, por via de consequência, também possível a propositura da ação condenatória. É a regra do artigo 20: “É admissível a ação meramente declaratória, ainda que tenha ocorrido a violação do direito”.
Interpretando o nosso tradicional sistema, esclarece Alfredo Buzaid, com lastro na lição de Liebman, que: “Certamente não se pode negar ao autor uma liberdade de escolha que a lei lhe conferiu. Naturalmente, se ele preferiu a ação declaratória, a sentença não lhe permitirá pedir a execução, para a qual será necessário que proponha uma nova ação e obtenha uma sentença condenatória”. (Buzaid, A ação declaratória no direito brasileiro, 2ª ed., São Paulo, Saraiva, 1986, pág. 136).
Se por acaso o pedido do autor se restringe exclusivamente à tutela declaratória e o juiz “avança o sinal”, em desrespeito à congruência, concede mais, impondo condenação ao réu, a decisão estará contaminada por vício de ultrapetição. Neste caso, a sentença é considerada ultra petita.
Assim, para a devida interpretação do ato decisório de mérito é necessário diagnosticar qual a real pretensão do autor, ou seja, o alcance do pedido, independentemente do sentido semântico das palavras deduzidas na petição inicial.
Exatamente por esta razão, o saudoso processualista ministro Teori Albino Zavaski, ao relatar o julgamento do Recurso Especial nº 588.202-PR, perante a 1ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, desenvolveu interessante tese, ao admitir que a sentença declaratória encerra igualmente a potencialidade de ser exequível, quando contiver:
“definição de certeza a respeito do débito, não apenas da existência da relação jurídica, mas também da exigibilidade da prestação devida, não há como negar-lhe, categoricamente, eficácia executiva. Conforme assinalado anteriormente, ao legislador ordinário não é dado negar executividade a norma jurídica concreta, certificada por sentença, se nela estiverem presentes todos os elementos identificadores da obrigação (sujeitos, prestação, liquidez, exigibilidade), pois isso representaria atentado ao direito constitucional à tutela executiva, que é inerente e complemento necessário do direito de ação”.
É certo que esta original construção influenciou o legislador. Com efeito, a Lei nº 11.232/2005, que alterou a clássica sistemática da execução de título judicial adotada pelo estatuto processual revogado, substituiu a sentença condenatória, constante do rol dos títulos executivos judiciais, pela “sentença proferida no processo civil que reconheça a existência de obrigação de fazer, não fazer, entregar coisa ou pagar quantia” (artigo 475-N, I, CPC/1973).
Note-se bem, a lei impõe que, para revestir-se de eficácia executiva, a sentença deve necessariamente reconhecer a existência da obrigação.
O vigente Código de Processo Civil, seguindo a mesma orientação, prevê, no artigo 515, inciso I, entre os títulos executivos judiciais, “as decisões proferidas no processo civil que reconheçam a exigibilidade de obrigação…”.
Seja sob a égide da Lei nº 11.232/2005, que introduziu o artigo 475-N, I, no velho estatuto processual, seja na vigência do Código de Processo Civil de 2015 (artigo 515, inciso I), não foi, na verdade, criado qualquer título judicial novo, visto que, a despeito da respectiva redação, antiga e atual, é sempre o provimento de natureza condenatória que é passível de execução; jamais a sentença meramente declaratória (v., a propósito, Eduardo Talamini, “Sentença que reconhece obrigação” como título executivo (CPC, art. 475-N, I, acrescido pela Lei 11.232/2005), Execução civil e cumprimento de sentença (obra coletiva), São Paulo, Método, 2006, pág. 159).
Impõe-se aqui importante observação, qual seja, a de que o diploma processual em vigor alude à “exigibilidade da obrigação” e não mais à “existência da obrigação”, para evidenciar que não basta apenas o reconhecimento do débito, mas, para alcançar a via executiva, torna-se necessário que seja ele exigível.
Não basta, pois, que o pronunciamento do tribunal faça menção ao crédito ou obrigação; é imprescindível que certifique os atributos que revestem o título executivo judicial, quais sejam, a liquidez, a certeza e a exigibilidade, como se infere de importante precedente formado sob o rito dos recursos repetitivos — Tema 509, pela 1ª Seção do Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do Recurso Especial nº 1.261.888/RS, com voto condutor do ministro Mauro Campbell Marques, textual:
“… Desta forma, fácil visualizar que, aqui, houve, quanto ao capítulo principal, reconhecimento de obrigação em face da parte recorrida (o consumidor).
Na espécie, ao contrário de outros casos, a sentença é expressa no seu dispositivo em reconhecer a legalidade do débito discutido pela parte consumidora nos autos, de modo que há plena incidência do artigo 475-N, inciso I [atual artigo 515, inciso I], do Código de Processo Civil, na parte em que o provimento reconhece a existência de obrigação de pagar quantia – embora com o desconto de custo administrativo de 30% do cálculo de recuperação de consumo elaborado pela concessionária recorrente.
O teor do dispositivo da sentença que se pretende executar é claro: na hipótese em análise, o magistrado não se limitou a reconhecer a fraude no medidor, mas a validar, no dispositivo do provimento judicial exequendo, parcela da própria cobrança extrajudicial levada a cabo pela concessionária recorrente…”.
José Rogério Cruz e Tucci é sócio do Tucci Advogados Associados. Ex-presidente da AASP (Associação dos Advogados de São Paulo). Professor titular sênior da Faculdade de Direito da USP (Universidade de São Paulo). Membro da Academia Brasileira de Letras Jurídicas. Conselheiro do MDA.