Não é de hoje que existe uma reflexão entre a necessidade de oferecimento de políticas públicas por parte do Estado e a disponibilidade de recursos para isso, o que leva o ordenador de despesas a fazer uma análise entre a relação de custo e benefício.
Diariamente se vê que o gestor público, além de planejar a gestão das políticas que estão sob ao seu encargo, também deve fazer um juízo de ponderação, quase um malabarismo fiscal, no sentido de encontrar lastro financeiro à permissibilidade orçamentária que possui no sentido de custear a promoção de direitos.
Para isso precisa fazer inúmeras ponderações na perspectiva de proporcionar eficiência à condução da sua escolha alocativa, o que não é uma atividade fácil devido à ampla carga de direitos que gravitam sob o seu poder decisório.
Entretanto, como necessita resolver essa questão que lhe é tão característica, deve fazer uma análise de custo-benefício e sobre o tema, pontua Heleno Taveira Torres que “A análise de custo-benefício (cost-benefit analysis) é o método por excelência das decisões políticas ou escolhas públicas, ao lado de tantos outros sugeridos pela Ciência das Finanças. Parte do pressuposto basilar da escassez dos recursos disponíveis para determinar a máxima eficiência na eleição dos critérios de aprovação das despesas. E a Ciência das Finanças, por sua vez, coloca à disposição dos agentes públicos diversos parâmetros que, se conjugados, podem ser úteis para racionalizar o procedimento, como custo de oportunidade etc.” [1].
Nesse campo decisório que envolve uma sinergia de esforços entre decisão política e tecnicidade orçamentária, a gestão pública possui como parâmetro legal de moldura de comportamento a lei de responsabilidade fiscal (LRF), que assevera normas de planejamento, controle e parâmetros para responsabilização.
Porém, o tempo demonstrou que as diretrizes estabelecidas pela LRF não são suficientes para proporcionar um crescimento racional do gasto público, e, em 2016, o legislador constituinte derivado trouxe um novo paradigma: o teto de gastos, por intermédio da emenda constitucional nº 95/2016, que instituiu um novo regime fiscal à época por vigência de 20 anos e trouxe como indexador ao crescimento da despesa a correção anual pela variação do Índice Nacional de Preços ao Consumidor (IPCA) [2].
O teto de gastos é um limite para a despesa primária, que se divide em obrigatória (constitucional e/ou legal) e discricionária (liberdade alocativa).
As despesas primárias são aquelas em que o Estado garante insumos às políticas públicas estruturantes, como são o direito à saúde, educação e construção de rodovias, por exemplo [3].
Dessa maneira, se há um aumento na despesa primária obrigatória, em um pensamento inverso, necessariamente o gestor público deve diminuir o gasto primário discricionário em uma relação diametralmente oposta, e como o lençol é sempre curto, é preciso uma acrobacia performática para a prestação de serviços públicos adequados dentro do limite do teto de gastos.
Dessa maneira, aquele limite reforça ao gestor público a obrigação de planejar as suas despesas e ao estabelecer correção anual pelo IPCA das despesas primárias, a intenção do legislador é garantir o crescimento sustentável da dívida, de modo a evitar um estado de insolvência fiscal.
Ocorre que diferente do que aparentou ser no plano das ideias em relação a um parâmetro de controle do gasto, o estabelecimento daquele teto não surtiu os efeitos esperados e a inconsistência fiscal de toda a gestão pública em comparação à prescrição normativa que orienta a higidez do Erário resultou em uma outra estratégia: a criação de exceções, cada vez mais constantes, das despesas do teto de gastos, que desagua na dialética entre “despesas fora do teto” e “despesas dentro do teto”.
Previstas pelo artigo 107, §6º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), as “despesas fora do teto” são exceções cada vez mais crescentes. Dessa forma, o que se vê é um ajuste constitucional à realidade da gestão pública: a de que o IPCA aparentemente não é um indexador que sustente as demandas de crescimento de gasto público em relação à despesa primária.
Assim, a jurisdição constitucional se depara com um ativismo fiscal pela constitucionalização de exceções mediante os problemas encontrados pela asfixia orçamentária no que diz respeito ao crescimento da despesa primária.
Fica evidente, portanto, a necessidade de criar uma política pública que realmente dê vazão a esse conflito entre controle de gasto e prestação de direitos fundamentais sociais. É preciso de algo estruturante, como se fosse um programa de Estado [4], apto a sanear essa problemática.
E é para isso que se propõe o novo arcabouço fiscal, o qual se propõe a ser um equilíbrio entre o planejamento em relação ao crescimento da despesa, e a margem fiscal para adimplemento de direitos fundamentais por intermédio da disponibilidade financeira.
Oriundo da então PEC da transição, que se transformou na emenda constitucional nº 126/2022, aquela reforma constitucional determinou expressamente, nos termos do seu art. 6º, que a Presidência da República deveria encaminhar ao Congresso Nacional até 31 de agosto de 2023 projeto de lei complementar “com o objetivo de instituir regime fiscal sustentável para garantir a estabilidade macroeconômica do País e criar as condições adequadas ao crescimento socioeconômico, inclusive quanto à regra estabelecida no inciso III do artigo 167 da Constituição Federal”.
O legislador constituinte derivado outorgou competência legislativa à União para criar um regime fiscal sustentável com o objetivo de garantir a estabilidade macroeconômica do país, bem como instituir condições adequadas ao crescimento socioeconômico.
Acontece que embora o projeto de lei tenha encaminhado uma minuta de texto, a relatoria na Câmara dos Deputados fez algumas alterações e incluiu na moldura do texto de gastos a lógica da correção anual do fundo constitucional do Distrito Federal.
Tramitada inicialmente na Câmara dos Deputados, a proposta da presidência da república também foi aprovada pelo Senado que, entre as mudanças feitas, dissentiu da casa do povo no sentido de excluir da sistemática do regime de controle do teto de gastos o fundo constitucional do DF.
E para que serve e como funciona esse fundo?
Quando organizou politicamente a nova ordem jurídica nacional, o constituinte de 1988, reconhecendo a natureza jurídica sui generis do Distrito Federal, optou por garantir o custeio de algumas políticas públicas setoriais desse ente político.
Dessa forma, por força do então artigo 21, inciso XIV da Constituição Federal, outorgou competência à União para “organizar e manter a polícia federal, a polícia rodoviária e ferroviária federais, bem como a polícia civil, a polícia militar e o corpo de bombeiros do Distrito Federal e Territórios“.
Depois, pela emenda constitucional nº 19/1998, o legislador constituinte derivado optou por aumentar a garantia de custeio pela União da Capital Federal e a partir de então dispôs que caberia à União “organizar e manter a polícia civil, a polícia militar e o corpo de bombeiros militar do Distrito Federal, bem como prestar assistência financeira ao Distrito Federal para a execução de serviços públicos, por meio de fundo próprio“.
Contudo, ao perceber que o Distrito Federal precisa de um suporte financeiro qualificado para lastrear o seu funcionamento, a União aumentou o rol de custeio das políticas públicas do Distrito Federal e em 2019, pela Emenda Constitucional nº 104/2019, incluiu outra política pública setorial no rol de financiamento: a polícia penal.
A suplementação financeira da União se deve ao fato que em decorrência da conurbação que pressionou demograficamente o Distrito Federal, população de inúmeras regiões do Brasil migrou para a capital federal e, além disso, os Estados que lhes são circunvizinhos, como são Goiás e Minas Gerais, também, por intermédio de um fenômeno migratório natural, pressionam o Distrito Federal em relação à prestação de serviços públicos.
Ciente disso, o legislador nacional, estabeleceu um mapeamento urbano, econômico, social e de densidade demográfica por intermédio da criação de uma Região Integrada de Desenvolvimento do Distrito Federal e Entorno (Ride), que atualmente engloba 33 municípios, além do Distrito Federal [5].
Entre aquelas cidades, Brasília possui destaque e se apresenta como a principal referência, razão pela qual serve de ímã em relação à demanda de serviços públicos, o que acaba por sobrecarregar a demanda orçamentária do Distrito Federal para dar vazão à interligação socioeconômica do seu entorno.
Há, portanto, a construção de um conceito de interesse público pelo legislador federal no sentido de atribuir ao Distrito Federal responsabilidade política e também civil para prestar serviços públicos também para as cidades que compõem a Ride em uma perspectiva de asseverar o bem comum de toda aquela população.
Essa construção a respeito de bem comum objetiva estabelecer uma busca de interesses recíprocos da sociedade envolvida no entorno do Distrito Federal e como anota Fernando Facury Scaff “A ideia por detrás da expressão bem comum é a da busca de interesses de toda a sociedade, ou de uma comunidade mais restrita, seja ou não esse bem comum veiculado ou buscado através de atos governamentais. Interesse público demonstra o interesse do Estado, enquanto representante da sociedade. Para quem acredita que o Estado e a sociedade politicamente organizada, estas duas noções serão equivalentes, pois haverá uma pausterização dos conflitos decorrentes de pluralidade de interesses existentes na sociedade” [6].
Ciente da importância do Distrito Federal em relação à população que atrai, além de determinar o custeio de algumas políticas públicas pela União, o legislador nacional também criou um fundo específico para suplementar o orçamento desse ente político: O fundo constitucional do Distrito Federal, instituído pela Lei nº 10.633/20222 [7].
Pela sua previsão original, aquela fonte de recursos possuía, a partir de 2003, o aporte anual de R$ 2,9 bilhões, corrigidos anualmente pela variação da receita corrente líquida da União [8].
Acontece que aquele índice que até então tinha previsibilidade, agora, com a tramitação no Congresso, pode ter uma mudança abrupta se entrar no regime de controle de teto de gastos por intermédio da correção do IPCA.
A proposta inicial da Câmara foi revista pelo Senado no sentido de excluir o reajuste do fundo constitucional do DF do teto de gastos.
Resta agora, enquanto responsável pelo veredito, aguardar a decisão da Câmara dos Deputados com a seguinte reflexão: como a despesa com pessoal do Distrito Federal historicamente foi planejada com o aporte de recursos até então vigente em relação ao índice de reajuste do seu fundo constitucional, inserir o critério de reajuste à ótica do teto de gastos pode levar aquele ente federado ao colapso fiscal porque há uma estimativa do Governo do Distrito Federal no sentido de que se isso acontecer haverá uma perda de R$ 80 bilhões em dez anos.
Por fim, registre-se que se for para rever o critério de correção, que seja uma discussão mais específica. Até porque fundo, criado por lei específica [9], só pode ser modificado por lei específica, sob pena de desvio de finalidade legislativa.
Referências bibliográficas
BRASIL. ENAP. Escola Nacional de Administração Pública. Introdução ao orçamento público. Módulo 2. Receita e Despesas Públicas. Brasília/DF: 2017
FREITAZ, Juarez. Malheiros Editores. 3ª edição. São Paulo/SP: 2014
SCAFF, Fenando Facury. Orçamento republicano e liberdade igual – ensaio sobre direito financeiro, república e direitos fundamentais no Brasil. Editora Fórum. Belo Horizonte/MG
TORRES, Heleno Taveira. Direito Constitucional Financeiro. Teoria da Constituição Financeira. Editora Revista dos Tribunais. São Paulo/SP: 2014
[4] Segundo Juarez Freitas políticas públicas “são programas que o Poder Público, nas relações administrativas, deve enunciar e implementar de acordo com prioridades constitucionais cogentes, sob pena de omissão específica lesiva. Ou seja, as políticas públicas são assimiladas como autênticos programas de Estado (mais do que de governo), que intentam, por meio de articulação eficiente e eficaz dos atores governamentais e sociais cumprir as prioridades vinculantes da Carta, de ordem a assegurar, com hierarquizações fundamentadas, a efetividade do plexo de direitos fundamentais das gerações presentes e futuras. FREITAZ, Juarez. Malheiros Editores. 3ª edição. São Paulo/SP: 2014, p. 32
Mário Augusto Silva Araújo é advogado, mestre em Constituição e Garantia de Direitos e Especialista em Direito Constitucional pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte e professor de Direito Administrativo e Financeiro.