Pereira e Casseb: Recordando Gláucio Veiga em seu centenário (página 1 de 3)

Para Gláucio Veiga, crítico e irmão intelectual de Gilberto Freyre” (dedicatória em BURKE, Perter; PALLARES BURKE, Maria Lucia G. Repensando os trópicos: um retrato intelectual de Gilberto Freyre. São Paulo: Editora UNESP, 2009).

“Muitos de minha geração (e dos segmentos de gerações onde me incluo) receberam dele, às vezes misturados à ironia e à irreverência, esse estímulo e essas sugestões que nos ajudaram a enfrentar a vida. (…) Aprendi com Gláucio que cultura é exigência, e só a exigência crescente mantém vivos os valores culturais” (SALDANHA, Nelson. Recordando Gláucio Veiga. Junho de 2010).

Gláucio Veiga: não é justo que marxismo e agora orteguismos sejam atuais obstáculos à nossa aproximação. Vai este com um abraço do companheiro de estudos e seu admirador – Gilberto Freyre”(dedicatória em Insurgências e Ressurgências Atuais)

Neste ano, em 28 de julho de 2023, completa-se o centenário de nascimento do professor, pesquisador, autor e advogado Gláucio Veiga.

Gláucio Veiga foi tudo menos um pensador monotemático, tendo enveredado por diversos campos do saber, desde o Direito até a História, Política, Filosofia, Sociologia, Economia e Antropologia; era um intelectual com formação humanística ampla e profunda.

Não escreveu uma autobiografia, mas, em notas introdutórias a alguns textos, ele deixou pistas, que permitem entrever suas influências. Em Mais Explicação que Introdução, Veiga relata haver conhecido muito cedo os estudos de Tristão de Ataíde, de Proust, Max Scheler e termina com uma frase que identificamos como uma tensão importante em sua análise da história da Faculdade de Direito do Recife: “pude avaliar o movimento modernista e recebi a primeira ducha de água fria sobre meu fervente fanatismo por Tobias Barreto” [1].

Desde os 13 anos, Gláucio Veiga lia em alemão e iniciara sob pseudônimo seus artigos em jornais no matutino A Imprensa, em João Pessoa. Gláucio ainda colaboraria em A União, também em João Pessoa, e no Jornal do Commercio do Recife. Depois dos seis anos de périplo pelo país, em razão da permanência no Exército, Gláucio Veiga foi colaborador nos suplementos culturais do Diário de Pernambuco. Ele mesmo fez referência à presença no Liceu Paraibano de Cleanto de Paiva Leite [2], já com leituras marxistas, além de Celso Furtado [3] e do filho de Pimentel Gomes [4].

Nesses suplementos culturais, Gláucio Veiga assume uma posição de crítica a Gilberto Freyre, reconhecendo que todos em Pernambuco, de certa forma, deviam a Gilberto Freyre, mas ele, Veiga, despontaria dizendo “jamais subi a escadaria dos Apipucos”, em clara referência à residência de Gilberto Freyre.

Freyre, no trecho citado no início deste texto, pontuou bem duas influências sobre Gláucio Veiga: Marx, e seu principais continuadores [5], e Ortega Y Gasset [6]. Veiga se dedicou por mais de dez anos, com acompanhamento em diário, à leitura marxista. Preservou o tom crítico, até certo ponto irônico, e dialético em boa parte de seus escritos. As sínteses e antíteses eram presentes em vários textos, além de aproximações tão inusitadas quanto polêmicas, como quando viu identidades entre Frei Caneca e Dom Vital ou quando claramente criticou D. Pedro I e o Poder Moderador em referência implícita ou, até mesmo explícita, ao período de exceção democrática e ao governo militar, em 1975 [7].

Gláucio Veiga foi um autor produtivo e polissêmico. Escreveu sobre temas históricos, filosóficos, políticos, sociológicos, jurídicos, elaborou, coordenou e publicou pesquisas pioneiras de sociologia eleitoral em Pernambuco, direito tributário, direito econômico, ciência política, economia política, teoria do estado e processo penal [8]. Em todos, o tom crítico e, pelo menos, intuições originais.

Ao contrário do que possa parecer, a sua erudição [9] e seu caráter polêmico não o afastaram do contato permanente com os mais jovens. Nelson Saldanha relembra que “ele jamais temeu ajudar os mais novos, nem trocar ideias” [10]. Testemunhamos esse perfil no final dos anos 1990, oportunidade em que um grupo de estudantes recebeu apoio de Gláucio Veiga nas ações de recuperação de uma Sala Museu e reorganização do periódico estudantil Estudantes-Caderno Acadêmico [11].

Gláucio Veiga tinha a compreensão de que era imprescindível para formação do professor o teste por meio de defesas de teses e de concursos públicos de provas e títulos [12].

Nessa linha, Veiga redigiu e defendeu várias teses e obteve sucessivos títulos. Tivemos acesso a diversas delas. Em 1952, ele obteve o título de doutor e livre-docente em teoria do estado pela Faculdade de Direito da Universidade do Recife com a tese “Estado, teologia política e existencialismo” [13]. Claramente Gláucio Veiga seguia a linha de uma teoria politizada do Estado, além de historicista, em oposição a uma formalista e puramente jurídica. Em 1954, participando de concurso para catedrático na Faculdade de Direito da USP, obtém o título de livre-docente em Economia Política com a tese “Revolução Keyneseana e Marxismo” [14]. Em 1955, desta vez de processo penal e na Faculdade de Direito do Recife, obtém o título de livre-docente em processo penal com a tese “Narcoanálise e processo penal” [15]. Nessa tese, entre as várias questões sobre os meios de obtenção da verdade, há páginas provocativas sobre verdade e processo, com muito referencial estrangeiro, inclusive alemão e soviético.

Gláucio Veiga, já doutor e detentor de três títulos de livre-docência, realizou mais dois concursos: o de Catedrático de Ciência Política da Universidade do Recife, hoje UFPE, devendo-se frisar que ele já detinha a condição de catedrático interino dessa cadeira, e de Economia Política da Faculdade de Direito do Recife. Para Ciência Política, preparou a tese “Da racionalidade da conduta religiosa como conduta política (uma interpretação do puritanismo)” [16]; para Economia Política apresentou a tese “Integração Econômica: Problemática histórica e atual” [17]. Palhares e Saldanha citam uma quarta livre-docência em Sociologia Educacional pelo Instituto de Educação de Pernambuco, além de técnico em administração pública e privada e organização pelo Dasp, também com defesa de tese [18].

Muitos desses livros tiveram forte repercussão local e mesmo nacional [19], pois Veiga, conhecido nacionalmente pelas publicações em periódicos e por ligações e contatos intelectuais variados que iam de Orlando de Carvalho em Minas Gerais a Miguel Reale em São Paulo, enviava exemplares para bibliotecas e amigos. Contudo, essa difusão foi muito aquém da que alcançaram as obras de Nelson Saldanha, Vamireh Chacon ou Clóvis Beviláqua, publicadas por editoras com melhor distribuição nacional, o que ainda hoje nos põe a missão de compreender e preservar a memória do professor Gláucio Veiga, de sua obra e de seu legado cultural.

André Melo Gomes Pereira é doutor em Direito pela Universidade de Brasília (UnB), professor adjunto da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e juiz de Direito do Rio Grande Norte.

Marcelo Casseb Continentino é doutor em Direito pela Universidade de Brasília (UnB)/Università degli Studi di Firenze, professor adjunto da Faculdade de Direito da Universidade de Pernambuco (FCAP/UPE) e do programa de pós-graduação em Direito da Universidade Federal Rural do Semi-Árido (Ufersa), procurador do Estado de Pernambuco e sócio efetivo do Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano (IAHGP).

Consultor Júridico

Facebook
Twitter
LinkedIn
plugins premium WordPress

Entraremos em Contato

Deixe seu seu assunto para explicar melhor