Fernandes e Bernardinello: Avaliação das medidas protetivas

Desde abril de 2023, a Lei nº 11.340/06 (Lei Maria da Penha) conta com novas e relevantes disposições para a concessão de medidas protetivas de urgência. Os recém inseridos parágrafos 4º e 5º do artigo 19 da Lei Maria da Penha ampliaram as condições para aplicação das medidas, especialmente ao trazerem para o texto legal a importância da palavra da vítima sobre os riscos à sua integridade física, psicológica, sexual, patrimonial ou moral ou de seus dependentes [1] e a independência das medidas protetivas em relação à “tipificação penal da violência, do ajuizamento de ação penal ou cível, da existência de inquérito policial ou de registro de boletim de ocorrência” [2].

O caráter temporal das protetivas também foi objeto de uma das novas inclusões no artigo 19, já que o novo parágrafo 6º estabelece que as medidas devem vigorar enquanto o risco persistir [3], positivando o entendimento majoritário dos tribunais sobre o assunto.

Trata-se de inovações importantes, tendo em vista que as medidas protetivas são instrumentos essenciais para garantir proteção às vítimas de violência doméstica, pois é extremamente necessário que as mulheres que estejam sob ameaça, de qualquer natureza, tenham maior facilidade para se proteger, tendo em vista o alarmante cenário nacional desse tipo de violência. Em pesquisa realizada em 2022 pela Rede de Observatórios da Segurança em sete estados brasileiros (Bahia, Ceará, Pernambuco, São Paulo, Rio de Janeiro, Maranhão e Piauí), estima-se que, a cada quatro horas, uma mulher sofre algum tipo de violência doméstica [4] e [5].

É importante notar que a concessão de medidas protetivas deve aumentar com a alteração legislativa implementada pela Lei nº 14.550/2023. Segundo dados de estudo feito em parceria pelo Consórcio Lei Maria da Penha, Instituto Avon e Conselho Nacional de Justiça (CNJ), entre janeiro de 2020 e maio de 2022, o Brasil registrou 572.159 medidas protetivas de urgência concedidas a mulheres em situação de violência doméstica. Além disso, o levantamento concluiu que nove em cada dez pedidos de medidas protetivas são deferidos [6].

No entanto, apesar de se mostrar cada vez mais indispensável, mormente em razão das novas disposições normativas, ainda não há previsão legal acerca da necessidade de avaliação periódica para a manutenção das protetivas impostas.

A decretação das medidas de proteção, assim como de qualquer outra medida cautelar de natureza penal, deve ser regida pelo binômio necessidade adequação, a fim de se evitar a limitação das liberdades individuais pela imposição leviana de restrições ou desproporcional às circunstâncias específicas de cada caso. Assim, “não se verificando urgência, atualidade e necessidade aptas a justificarem a manutenção das medidas protetivas, não há [que] falar em ilegalidade na sua revogação” (STJ, AgRg no AREsp nº 1.393.162/MG, ministro relator Nefi Cordeiro, 6ª Turma, j. 18.06.19).

Por isso, os tribunais têm considerado que a ausência de novos fatos que demonstrem que a vítima ainda se encontra em risco é fundamento suficiente para a revogação das medidas concedidas. O Superior Tribunal de Justiça já decidiu que “inexistindo notícia de outro ato que justificasse a manutenção das medidas (…) devem ser extintas, evitando-se a eternização de restrição a direitos individuais” (STJ, RHC nº 120.880/DF, ministro relator Reynaldo Soares da Fonseca, 5ª Turma, j. 22.09.20). No âmbito estadual, o Tribunal de Justiça de São Paulo segue a mesma linha.

Nos casos em que não há “notícia de novas condutas agressivas ou ameaçadoras” por parte do agressor, “não existe notícia de risco concreto à integridade física e psíquica (…) o que denota o perecimento do requisito de cautelaridade exigido pelas medidas protetivas de urgência previstas na Lei 11.340/06, sendo desarrazoada e desproporcional (…) a sua mantença” (TJSP, RESE nº 0017857-71.2020.8.26.0224, desembargador relator Freire Teotônio, 14ª Câmara de Direito Criminal, j. 07.03.22) [7].

Tais decisões reavaliaram a adequação de medidas protetivas, ou seja, analisaram se o risco à vítima ainda estaria presente no caso concreto. Essa avaliação é de extrema importância no devido processo legal, pois impede que as medidas se prolonguem no tempo de maneira permanente, eternizando restrições a direitos individuais do alvo da medida sem que haja necessidade. Importante registrar que, mesmo que haja revogação, a qualquer tempo, a vítima pode requerer novamente a concessão de medidas protetivas em seu favor, caso ressurja o risco à sua integridade.

Em recente posicionamento firmado pela 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do HC nº 605.113/SC, registrou-se que “não há como se esquivar do caráter provisório das medidas protetivas, ainda que essa provisoriedade não signifique, necessariamente, um prazo previamente definido no tempo (…) Ora, fixar uma providência por prazo indeterminado não se confunde, nem de longe, com tornar essa mesma providência permanente, eterna. É indeterminado aquilo que é impreciso, incerto, vago. Por outro lado, é permanente, eterno, aquilo que é definitivo, imutável” (j. 08.11.22), com a consequente aplicação, por analogia, da disposição do artigo 316, parágrafo único, do Código de Processo Penal para que Juízo de primeiro grau avalie a necessidade de preservação da protetiva aplicada a cada 90 dias, mediante prévia oitiva das partes.

O dispositivo legal aplicado analogicamente pelo STJ, que foi objeto das ADIs 6581 e 6582, julgadas em 2022, estabelece que “decretada a prisão preventiva, deverá o órgão emissor da decisão revisar a necessidade de sua manutenção a cada 90 (noventa) dias, mediante decisão fundamentada, de ofício, sob pena de tornar a prisão ilegal”. No julgamento das ADIs, o Supremo Tribunal Federal, por maioria, fixou a tese de que a inobservância da reavaliação da prisão preventiva em tal prazo não implica a revogação automática da custódia, devendo o juízo competente ser instado a se debruçar novamente sobre a medida para verificar se há fatos concretos e atuais que justifiquem a manutenção da prisão preventiva.

Assim, a solução encontrada pela 6ª Turma do STJ parece ser razoável enquanto não houver determinação legal específica sobre o período adequado para a revisão de ofício de protetivas de urgência, especialmente se impostas às medidas dos incisos I, II e III do artigo 22 da Lei nº 11.304/06 [8], que têm natureza penal, ou quando há filhos em comum que não se encontram em risco, tendo em vista que a proibição de aproximação e contato com a vítima e familiares tende a restringir severamente o acesso e comunicação do alvo da medida com os filhos, com potencial prejuízo ao melhor interesse do menor, e considerando-se ainda que “eventual renitência do acusado em descumprir as medidas impostas pelo juiz, especialmente aquelas que determinam seu afastamento da vítima e a proibição de com ela manter contato, podem fundamentar a decretação de prisão provisória do suposto agressor” (STJ, REsp nº 2.009.402/GO, ministro relator Joel Ilan Paciornik, 5ª turma, j. 08.11.22).

A fim de proporcionar maior segurança jurídica, tanto para a vítima quanto para o alvo da medida, mostra-se salutar que haja expressa previsão sobre a necessidade de revisão das protetivas, prazo para que a reavaliação ocorra e o devido procedimento para tanto.

Já tramita perante o Congresso Nacional o PL nº 869/23, que sugere a inserção de mais um parágrafo no artigo 19 da Lei Maria da Penha para estabelecer que “As medidas protetivas de urgência não comportam prazo determinado, devendo sua manutenção ser reavaliada, mediante decisão fundamentada, a cada seis meses” [9]. Proposto pelo deputado federal Maurício Carvalho em março deste ano, o projeto foi apensado ao PL nº 1890/22, apresentado pelas deputadas federais Tabata Amaral, Lídice da Mata, Rejane Dias, Tereza Nelma e Sâmia Bonfim que, entre as proposições, inclui um artigo ao final da Lei nº 11.304/06 para dispor que “Não é passível de revogação a medida protetiva concedida com prazo para término” [10].

Atualmente, os Projetos estão em discussão na Comissão de Defesa dos Direitos da Mulher e, em 14.07.23, foi apresentado parecer da relatora, deputada federal Silvye Alves, com texto substitutivo, que prevê a inclusão do novo artigo 41-B a estabelecer que “A medida protetiva de urgência vigorará por prazo indeterminado” [11].

De fato, não há razão para que seja concedida protetiva com prazo determinado, uma vez que a medida efetivamente precisa perdurar enquanto houver situação de risco para a mulher, conforme já estabelecido pelo novo artigo 19, §6º, da Lei Maria da Penha, devendo observar os princípios da proporcionalidade e adequação. Contudo, pelos motivos já expostos, se faz imprescindível a revisão periódica da necessidade da manutenção da medida, pois “sendo o deferimento de medidas protetivas à vítima uma medida de natureza cautelar, que impõe restrição à liberdade de ir e vir do indivíduo, a sua duração temporal deve ser pautada pelo princípio da razoabilidade” (STJ, AgRg no AREsp nº 1.650.947/MG, relator ministro Ribeiro Dantas, 5ª Turma, j. 02.06.20).

A fim de que não se protraiam indefinidamente no tempo, sem que a manutenção seja estritamente necessária à vítima, é preciso que as medidas protetivas de urgência sejam revisitadas com periodicidade, de maneira a garantir que não se tornem perpétuas.

 

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Referências

[1] “Artigo 19. (…) §4º As medidas protetivas de urgência serão concedidas em juízo de cognição sumária a partir do depoimento da ofendida perante a autoridade policial ou da apresentação de suas alegações escritas e poderão ser indeferidas no caso de avaliação pela autoridade de inexistência de risco à integridade física, psicológica, sexual, patrimonial ou moral da ofendida ou de seus dependentes”.

[2] “Artigo 19. (…) §5º As medidas protetivas de urgência serão concedidas independentemente da tipificação penal da violência, do ajuizamento de ação penal ou cível, da existência de inquérito policial ou do registro de boletim de ocorrência”.

[3] “Artigo 19. (…) §6º As medidas protetivas de urgência vigorarão enquanto persistir risco à integridade física, psicológica, sexual, patrimonial ou moral da ofendida ou de seus dependentes”.

[4] Dado divulgado em março de 2023 na terceira edição do boletim “Elas vivem: dados que não se calam”, elaborado pela Rede de Observatórios da Segurança. Disponível em https://cesecseguranca.com.br/wp-content/uploads/2023/03/Relatorio_Rede-Elas-Vivem-03_2003.pdf . Acesso em 14.07.23.

[4] A central de atendimento da Ouvidoria Nacional dos Direitos Humanos registrou, no primeiro semestre de 2022, 31.398 denúncias e 169.676 violações envolvendo a violência doméstica contra mulheres. Importante ressaltar que os casos de violência devem ser superiores aos números indicados, pois muitas acabam não denunciando as agressões sofridas e outras concentram todas as violações sofridas em uma única denúncia. Disponível em https://www.gov.br/mdh/pt-br/assuntos/noticias/2022/eleicoes-2022-periodo-eleitoral/brasil-tem-mais-de-31-mil-denuncias-violencia-contra-as-mulheres-no-contexto-de-violencia-domestica-ou-familiar.

[6] “Avaliação sobre a aplicação das Medidas Protetivas de Urgência da Lei Maria da Penha”. Disponível em https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2022/08/relatorio-avaliacao-medidas-protetivas-lei-maria-da-penha-23082022.pdf . Acesso em 14.07.23.

[7] Nesse mesmo sentido: “Impossibilidade de manutenção das restrições por tempo indeterminado. Inexistência de ação penal para a apuração do crime ou de notícias de outras condutas desabonadoras praticadas pelo suposto agressor” (TJSP, Apelação Criminal nº 1530749-86.2021.8.26.0228, desembargador relator  Erika Soares de Azevedo Mascarenhas, 15ª Câmara de Direito Criminal, j. 10.07.23); “Não havendo nos autos qualquer notícia recente de descumprimento das protetivas de urgência pelo paciente, tampouco algum relato de crime contra a ofendida, já havendo nos autos, inclusive, arquivamento quanto ao suposto delito cometido, razoável se afigura na espécie a extinção das medidas fixadas, uma vez que não mais perduram, no caso concreto, os motivos que lhes deram ensejo (rebus sic stantibus), sem prejuízo de nova aplicação pelo Juízo de origem, caso sobrevenham aos autos novos motivos que as demandem” (TJSP, Recurso em Sentido Estrito nº 0001832-26.2021.8.26.0457, desembargador relator Adilson Paukoski Simoni, 4ª Câmara de Direito Criminal, j. 02.06.22); “inexistência de notícias que as práticas atribuídas ao recorrente continuam, um ano após a imposição das medidas  circunstâncias que revelam que não mais imprescindíveis e, assim, inadequadas as restrições”. (TJSP, RESE nº 0020562-35.2021.8.26.0506, desembargador relator Vico Mañas, 12ª Câmara de Direito Criminal, j. 31.08.22). Ainda: TJSP, Apelação Criminal nº 1500718-66.2020.8.26.0536, Des. Rel. Jucimara Esther de Lima Bueno, 10ª Câmara de Direito Criminal, j. 12.02.22; TJSP, Apelação Criminal nº 1016724-03.2016.8.26.0002, desembargador relator Fernando Torres Garcia, 14ª Câmara de Direito Criminal, j. 13.12.21; TJSP, Agravo de Instrumento nº 2273783-46.2019.8.26.0000, Des. Rel. Cesar Mecchi Morales, 3ª Câmara de Direito Criminal; j. 26.05.20.

[8] “Artigo 22. Constatada a prática de violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos desta Lei, o juiz poderá aplicar, de imediato, ao agressor, em conjunto ou separadamente, as seguintes medidas protetivas de urgência, entre outras:

I – suspensão da posse ou restrição do porte de armas, com comunicação ao órgão competente, nos termos da Lei nº 10.826, de 22 de dezembro de 2003;

II – afastamento do lar, domicílio ou local de convivência com a ofendida;

III – proibição de determinadas condutas, entre as quais:

a) aproximação da ofendida, de seus familiares e das testemunhas, fixando o limite mínimo de distância entre estes e o agressor;

b) contato com a ofendida, seus familiares e testemunhas por qualquer meio de comunicação;

c) freqüentação de determinados lugares a fim de preservar a integridade física e psicológica da ofendida”.

[9] Disponível em: https://www.congressonacional.leg.br/materias/materias-bicamerais/-/ver/pl-869-2023?_gl=1*11at3vx*_ga*MTg3NTAyNjY1Ny4xNjg4NzU5Mjc4*_ga_2TJV0B8LD3*MTY4OTI1NzYxNi4xLjEuMTY4OTI1NzcwMi4wLjAuMA..  Acesso em 17.07.23.

[10] Disponível em: https://www.congressonacional.leg.br/materias/materias-bicamerais/-/ver/pl-1890-2022?_gl=1*1epbhuz*_ga*NDUyMzg4MzY4LjE2ODk2MDQxNTU.*_ga_2TJV0B8LD3*MTY4OTYwNDE1NC4xLjAuMTY4OTYwNDE1NC4wLjAuMA.. Acesso em 17.07.23.

[11] Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=2301377 Acesso em 17.07.23.

Jessica Fiorelli Fernandes é jornalista, advogada criminalista no Castelo Branco Advogados Associados e pós-graduanda em Direito Penal Econômico na Fundação Getúlio Vargas (FGV-SP).

Bruna Maffei Bernardinello é advogada criminalista no Castelo Branco Advogados Associados e mestranda em Direitos Difusos na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).

Consultor Júridico

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