Promulgada em 1943, a CLT (Consolidação das Leis do Trabalho), além das regras gerais do trabalho no Brasil, regulamentava em seu Título III, específica e detalhadamente, algumas categorias profissionais mais destacadas e organizadas.
Fotografia da sociedade brasileira da década de 1940, a lei tratou de pormenorizar o trabalho em ferrovias e na marinha mercante, passando ao largo de se imiscuir no trabalho rodoviário de carga — o que, compreensível, visto que à época havia apenas uma rodovia interestadual pavimentada no país [1].
Sob a mudança estrutural do modal de transporte nas décadas de 1950 a 1970, houve um boom no segmento de mercado de transporte rodoviário de cargas, que hoje representa 75% da movimentação nacional [2]. A reboque, ocorreria, então, uma dicotomia no segmento; por um lado grandes e médias empresas respeitando parâmetros legais de jornada e remuneração e, noutro bordo, uma miríade de pequenas transportadoras, motoristas autônomos e agregados que, em sua maioria, passavam ao largo das regras trabalhistas e de trânsito [3].
Prática possível sob o artigo 62, I da CLT, vez que o labor do motorista profissional foi regulado sob a premissa de trabalho externo sem controle de jornada — preceito que, com a evolução tecnológica no começo do século 21, tornou-se paulatinamente obsoleto.
Grupos de estudos, com ampla participação de confederações patronais e profissionais (e outros órgãos estatais interessados, como Ministério Público do Trabalho e Polícia Rodoviária Federal) culminaram, após quatro anos de debates, na Lei nº 12.619/2012.
A legislação, no entanto, não atendia integralmente à realidade do setor, posto que terminou gerando viagens mais demoradas, com motoristas passando tempo longe de suas famílias, encarecendo sobremaneira o custo do frete. Tais excessos foram sanados em 2015, dando aos atores sociais maior flexibilidade, chegando a sua forma atual [4].
Regrando as características ímpares da realidade profissional dos motoristas profissionais, o arcabouço legal trouxe importantes avanços como a 1) distinção entre motoristas de cargas e passageiros, 2) regulamentação da jornada, em suas diferentes vertentes de direção e espera, 3) intervalos intra/interjornadas flexíveis, 4) cumulatividade de DSRs, 5) critérios para premiações, dentre outros institutos.
No dizer do procurador do trabalho Paulo Almeida de Moraes; “a lei não é perfeita” [5], porém é fruto de discussões de alto nível de interesses contrapostos, com mediação de órgãos estatais. Inobstante, ela traduz, após extensos debates, relevante comunhão entre capital e trabalho para um setor que representa a circulação arterial econômica pátria.
Lamentavelmente, ainda em maio de 2015, um dos atores sociais já citados, desprezou todo o devido processo legislativo e discussões setoriais, ingressando com ADI (Ação Direta de Inconstitucionalidade) que receberia o número 5.322, sob o argumento de não ter participado dos debates legislativos — o que inverídico e rechaçado na ação constitucional, tendo o resultado sido pronunciado agora em junho de 2023.
De se destacar que, neste interregno, aspectos da lei foram analisados e julgados pelos Tribunais Regionais da Justiça Especializada do Trabalho como, à guisa de exemplo; 1) IUJ do TRT-23 (0000469-94.2014.5.23.0000) que deu ao prêmio por km/rodado natureza jurídica de comissão ou aos 2) ArgInc do TRT-15 (0008255-12.2017.5.15.0000) que entendeu constitucional a possibilidade de redução ou fracionamento do intervalo intrajornada, aos limites de jornada, ao tempo de serviço e ao intervalo interjornadas e o 3) 0008010-98.2017.5.15.0000, também da 15ª Região, que entendeu legítima, sob a ordem vigente, a remuneração do tempo de espera à razão de 30% do salário-base [6].
Indo de encontro à assentada jurisprudência da justiça especializada, o julgamento pelo STF (Supremo Tribunal Federal) decretou a inconstitucionalidade de vários institutos trazidos pela progressista legislação em relação a 1) tempo de espera, 2) cumulação de DSRs, 3) vedação do descanso embarcado e 4) fracionamento de interjornada.
O resultado não poderia ser pior para empregados, empregadores e ao país como um todo.
À guisa de exemplo, com a supressão do elemento distintivo do tempo de espera em relação ao “tempo de direção”, haverá perda de produtividade geral, pois todo o tempo do motorista será considerado jornada, terminando por limitá-la. Além de viagens mais longas, morosidade na movimentação de mercadorias, os motoristas perderão importante parcela de sua renda, consistente nos “prêmio quilometragem” que consideram, ao final do mês, a quantidade de quilômetros rodados.
O fim da autorização de cumulação de DSRs em viagens longas traz três problemas imediatos; 1) às transportadoras notório encarecimento da viagem (a repercutir no preço do frete), vez que precisará providenciar hotel ou pousada para o motorista nos mais distantes rincões do país, acrescendo dias à movimentação da mercadoria, além da problemática da guarda do caminhão e sua carga que ficarão parados (e vulneráveis) por 35 horas, 2) aos embarcadores e contratantes do frete, encarecimento significativo do seguro pela parada forçada em meio ao deslocamento e 3) aos motoristas perda de qualidade de vida, ante a ociosidade forçada, longe da família, em local desconhecido e com reduzidas opções de lazer.
De igual sorte, a proibição de fracionamento do interjornada, aumenta o ciclo de transporte, ante a obrigatória inatividade de 11 horas em algum posto ou pátio. Atualmente, a maioria dos motoristas goza de 8 horas de interjornada e “desconta” as 3 horas faltantes durante o dia seguinte. É cediço que pessoa adulta não dorme por 11 horas seguidas. Deve-se ter em mente que gozar de 11 horas de descanso em uma residência é completamente diferente de passar o mesmo período de tempo em parada à beira de estrada. Vale a pergunta; as 3 horas a mais parado em viagem é um benefício ou uma punição ao motorista longe de sua casa?
Considerando-se a natureza intrínseca da atividade (externa, com longas rotas), soa mais conveniente dar-se fluidez ao motorista na escolha dos descansos e, por corolário, do convívio familiar e social
De se frisar que alguns dos institutos analisados pelo STF não foram criações exclusivas da Lei dos Motoristas, mas inspirados em regulamentações análogas de outras categorias profissionais;
— O tempo de espera, durante carregamento/descarregamento ou em fila em barreiras sanitárias e fiscais, é análogo ao sobreaviso ferroviário (artigo 244, §2º da CLT) e aeronáutico — artigo 43 da Lei nº. 11.345/17,
— A cumulação de DSRs já ocorre em outras atividades, como os embarcados em plataformas petrolíferas que trabalham 15 dias ininterruptamente — artigo 8º da Lei nº 5.811/72,
— O descanso embarcado encontra correlação no artigo 29 da Lei 11.345/17 que regula o trabalho aeronáutico,
— Há profissões com intervalos interjornadas inferiores a 11 horas, como os jornalistas (artigo 308 da CLT), além de não se tratar de matéria prevista no rol do artigo 7º da Constituição, pelo que, seu fracionamento, não fere a carta.
Em uma repercussão não prevista, os institutos acima poderão, agora, ser questionados em sua constitucionalidade.
Também o direito comparado nos oferece uma visão de quão moderna era a legislação agora tida por inconstitucional [7]:
Regramento |
EUA |
União Europeia |
Brasil |
Tempo de espera separado da jornada normal (tempo de direção) |
SIM |
NÃO, mas a jornada semanal pode chegar a 56 h 0 (90 h para cada duas semanas) |
NÃO, a partir do julgamento da ADI 5.322 |
Cumulação de DSR |
SIM, mediante negociação |
SIM, até três semanas |
NÃO, a partir do julgamento da ADI 5.322 |
Fracionamento do interjornada |
SIM, interjornada de 10 h, podendo fracionar a partir de 7 h |
SIM, interjornada de 11 h, podendo fracionar a partir de 9 h |
NÃO, a partir do julgamento da ADI 5.322 |
Descanso embarcado – segundo motorista |
SIM |
SIM, em viagens internacionais no âmbito do Espaço de Schengen |
NÃO, a partir do julgamento da ADI 5.322 |
Assim como o aeroviário, o ferroviário e o marinheiro mercante, o motorista rodoviário também precisa ter uma legislação especial diversa do trabalho geral, posto que o próprio TST já havia declarado categoria diferenciada [8].
Nesses oito longos anos, os atores sociais se adaptaram à nova lei. Enquanto a categoria patronal planejou, precificou e investiu em suas operações sob a égide do marco legal, a categoria profissional experimentou aumento em sua qualidade de vida, mormente com a queda do uso de drogas psicotrópicas, com consequente redução no número de acidentes e tempo para lazer e cuidados com a saúde, além de aumentar o convívio familiar [9].
A lei se mostrou um divisor de águas no segmento, forte para trazer segurança a todos e à sociedade durante os tempos incertos da Covid-19, alcançando, pois, seu objetivo primário, inclusive aos motoristas.
Algumas das externalidades que a lei trará ao país como um todo já são possíveis de projetar; 1) necessidade de aumento de frota (com aumento de trânsito e, por corolário lógico, de acidentes), o que acarretará em maior importação de diesel e emissão de CO² na atmosfera (frota que não está disponível e que as pequenas e médias empresas não têm capital para adquirir sob a regulação Euro-6 que encarece em até 30% o custo [10]), 2) diminuição na capacidade de escoamento da produção, com redução do PIB e aumento do desemprego em vários setores com consequente impacto na balança comercial — já pressionada pelo acréscimo da importação de combustível. 3) desperdício de mercadorias perecíveis e demora na logística, em movimento contrário ao e-commerce.
Combinando-se o aumento de custo e diminuição da oferta, ante o menor escoamento de mercadorias, haverá um movimento inflacionário tanto de custo quanto de demanda, com prejuízo a todos, especialmente às camadas menos favorecidas da população.
Ainda, com tamanha restrição de trabalho dos motoristas celetistas, já escassos e em pleno emprego, vez que as grandes transportadoras operam com vagas em aberto, haverá forte migração para a contratação de autônomos, o que combinado com os efeitos da ADC 48/STF, levará à precarização do setor como um todo, em movimento contrário à própria mens legis da legislação trabalhista [11].
Em suma, em face dos singelos exemplos aqui colocados, torna-se imperioso reiterar, neste momento decisivo, que a lei já estava vigendo há mais de oito anos, sendo recepcionada pela jurisprudência majoritária da Justiça do Trabalho, com efeitos positivos já experimentados pela sociedade como um todo. Traz apreensão a todo segmento o STF, após solidificada realidade, afastar dispositivos legais, inobservando os impactos econômicos sobre o mercado, com real possibilidade de agudo encarecimento do custo de frete e diminuição da atividade econômica com reflexos a espraiar por toda a economia nacional.
Urge, no momento, além de uma modulação acertada, afastando eventual efeito ex-tunc que traria a completa ruína do setor de transportes, um novo arcabouço legal que entenda a realidade do segmento e incentive a formalização do trabalho em consonância com as necessidades econômicas do país.