Ao pesquisar por um livro na loja virtual da Amazon italiana, deparei-me com a obra procurada, em cuja página de venda aparece a informação de que “este item pode ser comprado com o Bônus Cultura e com o Bônus do Cartão do Professor”, dois programas de fomento ao consumo de bens e serviços culturais, que importa conhecê-los minimamente.
O Bônus Cultura é uma espécie de presente de € 500, dado pelo Estado italiano, através do Ministério da Cultura, para os jovens que completam 18 anos comprarem, no decorrer deste ciclo de ingresso na maioridade, bilhetes para cinemas, teatros, concertos, manifestações culturais, museus, monumentos e parques arqueológicos; música, livros, assinaturas de jornais e revistas, também em formato digital, produtos editoriais audiovisuais; cursos de teatro, música e línguas estrangeiras [1].
O Bônus do Cartão do Professor é semelhante em termos dos bens que podem ser adquiridos, mas envolve uma gama mais farta de itens, como o pagamento de matrículas em cursos, inclusive universitários; as outras diferenças estão nos beneficiários, que são os professores da rede pública; no período de usufruto, renovável anualmente; e no órgão responsável, o Ministério da Educação, fato que evidencia a transversalidade institucional das políticas culturais [2].
É claro que estes programas, sendo públicos e tendo finalidades formativas segundo os valores constitucionais, têm algumas limitações relativamente ao conteúdo das obras a serem adquiridas, pois com tais recursos, não se pode comprar, por exemplo, as “pornográficas ou que incitem à violência, ao ódio racial ou à discriminação de gênero”; por outro lado, exige-se observância da “legislação vigente sobre direitos autorais e destinadas ao público pelo titular dos direitos de uso, bem como comercializadas de acordo com a legislação vigente”.
Semelhante ao italiano, a Espanha também possui o seu Bônus Cultura, com a diferença de que são disponibilizados € 400 aos jovens, assim distribuídos: € 100 para produtos físicos, por exemplo, livros, imprensa ou discos; € 100 para produtos digitais, como imprensa digital, podcasts, videojogos online e plataformas virtuais; € 200 para artes ao vivo: teatro, ópera, cinema, dança, museus ou espetáculos taurinos, sendo estes últimos muito peculiares ao país, dadas as polêmicas em que estão envoltos [3].
A rigor, essa não é uma inovação em termos de política cultural; de fato, Françoise Benhamou, fazendo referência a diversos países, inclusive Canadá e Estados Unidos, a ela se refere como “uma volta ao sistema antigo, o voucher ou cheque-cultura”, que “subvenciona o consumidor e não mais o produtor” [4], algo também já experimentado no Brasil, sob a denominação de vale-cultura, disciplinado pela Lei nº 12.761, de 27 de dezembro de 2012.
O vale-cultura brasileiro está previsto para fomentar o acesso aos seguintes segmentos culturais: artes visuais; artes cênicas; audiovisual; literatura, humanidades e informação; música; e patrimônio cultural, sendo essa a maior semelhança com os congêneres mencionados.
No mais, difere muito: os destinatários são os trabalhadores formais (os que têm carteira assinada), que devem arcar com uma parte dos custos, com a possibilidade de variar entre 2% e 90%, conforme o nível salarial, ou seja, para obter o vale-cultura no valor mensal de R$ 50, o trabalhador deve pagar entre R$ 1 a R$ 45, conforme o caso.
Mesmo assim, parece ser uma legislação em desuso, o que se infere pelo fato de que no sítio eletrônico do Ministério da Cultura até existe uma aba específica para o vale-cultura que, porém, quando acionada, remete a um pedido de “desculpas pelo inconveniente, mas a página que você estava tentando acessar não existe neste endereço” [5].
É bem provável que a concepção tupiniquim não tenha atingido os objetivos desejados, seja pela falta de foco também em destinatários com alto potencial e propensão ao consumo cultural, como são os jovens em fase de formação e os professores, bem como pela exigência de contrapartida, o que é bem estranho para um país que institui um bônus para aquisição de carros zero quilômetro no valor de R$ 10 mil.
As leis Paulo Gustavo e Aldir Blanc, baseadas na ideia de distribuição de recursos, são oportunidades para que estados e municípios, dentre os editais que vierem a publicar, instituam seus vale-cultura, com cautela na eleição dos beneficiários.
Esse tipo de fomento empodera a sociedade e a coloca na cena das políticas culturais, atualmente ocupada apenas por aqueles designados a partir de uma estrutura anglicista muito em voga, os fazedores de cultura (cultural makers). Ademais, obriga os criadores a levarem em consideração o público, evitando as frequentes e melancólicas experiências de lives sem espectadores, espetáculos, filmes e exposições sem público, publicações sem leitores e coisas como tais.
Notas
[1] ITÁLIA. Ministerro della Cultura. Bonus Cultura “18app” – edizione nati nel 2004 (online). Acesso em 15 jul 2023: CONDIZIONI_GENERALI_diciottenni-2004-pdf.pdf (italia.it)
[2] ITÁLIA. Ministero dell’Istruzione (online). Acesso em 15 jul 2023: Carta del Docente (istruzione.it)
[3] ESPANHA. Ministerio de la Cultura y Deporte (online). Acesso em 15 jul 2023: Los jóvenes beneficiarios del Bono Cultural Joven 2022 han realizado, hasta junio, 1,2 millones de operaciones en establecimientos del sector cultural, por valor de 42,5 millones de euros | Ministerio de Cultura y Deporte
[4] BENHAMOU, Françoise. Economia da cultura, tradução de Geraldo Gerson de Souza. Cotia – São Paulo: Ateliê Editorial, 2007, p. 179.
[5] BRASIL. Ministério da Cultura (online). Acesso em 16 jul 2023: Página Inicial — Ministério da Cultura (www.gov.br).
Humberto Cunha Filho é professor de Direitos Culturais nos programas de graduação, mestrado e doutorado da Universidade de Fortaleza (Unifor), presidente de honra do IBDCult (Instituto Brasileiro de Direitos Culturais), comentarista do Instituto Observatório do Direito Autoral (Ioda) e autor, dentre outros, dos livros “Teoria dos Direitos Culturais” (Edições Sesc-SP) e “(F)Atos, Política(s) e Direitos Culturais” (Dialética-SP).