Recentemente, o ex-diretor da CVM (Comissão de Valores Imbobiliários) Alexandre Rangel, com aval do atual presidente João Pedro Nascimento, apoiou a elaboração pela autarquia de um parecer de orientação sobre conflito de interesse no exercício de direito de voto, o que gerou bastante expectativa no mercado e retorno das discussões sobre a temática.
O direito de voto é um dos direitos do acionista ordinário, mas esse direito não é absoluto. A Lei das SAs trouxe vedações ao exercício de direito de voto em algumas situações específicas como, por exemplo, aprovação de suas contas como administrador, bem como genericamente a situações que tragam benefício individual ao acionista ou situações em que tiver interesse conflitante com o da companhia. A finalidade da lei ao vedar certas situações seria garantir que o voto do acionista seja exercido no interesse da companhia, e não conforme interesses pessoais, conforme mencionado.
O tema parece simples, mas não é.
A doutrina e a Comissão de Valores Mobiliários vêm debatendo este tema há muitos anos, e os precedentes nem sempre trazem entendimentos uniformes sobre o tema. É o caso por exemplo do caso Tractebel Energia S.A., em que a autarquia proibiu o acionista controlador, GDF Suez Energy Latin America Participações Ltda., de votar na assembleia sobre a aquisição de ações da Suez Energia Renovável S.A. (PAS CVM nº RJ2009/13179), prevalecendo, portanto, a teoria formal [1] do conflito de interesse, até então aplicada na maioria dos precedentes. Anos depois houve mudança no posicionamento da autarquia, tendendo para uma posição mais flexível, a chamada teoria material do conflito de interesses [2], como vimos nos casos da Livraria Saraiva (PAS CVM SEI 19957.003175/2020-50) em que se alegou conflito de interesses no voto do acionista controlador e membros do conselho de administração sobre plano de recuperação judicial e da Springer (PAS CVM PAS CVM SEI 19957.004392/2020-67) em que se alegou conflito de interesses de acionista controlador e membros do conselho de administração na votação de alienação de participação societária de empresa relacionada.
Em suma, pela teoria formal, o acionista ficaria impedido de votar de antemão, já na teoria material, o acionista pode votar de boa-fé, porém caso se constate que o voto foi proferido em benefício próprio (ou de terceiros) ou com interesse conflitante ao da companhia este voto seria anulável a partir da análise do caso concreto.
Portanto, a teoria material é mais flexível ao permitir o exercício do direito de voto, sendo uma teoria mais “vigilante”. Ao passo que a teoria formal é mais rígida e menos tolerante, proibindo o acionista formalmente de votar.
Vale lembrar que apesar da recente alteração do entendimento da CVM (em alinhamento com a doutrina majoritária), tal flexibilização não se aplica a aprovação do laudo de avaliação de bens que o acionista concorrer para a formação do capital social e aprovação de contas pelo acionista que seja administrador da companhia, sendo uma vedação preventiva e impeditiva, não havendo margens para interpretação diversa, por se tratar de vedação expressa e objetiva da lei.
Entendemos que é impossível o ordenamento jurídico arrolar exaustivamente todas as possíveis situações em que haveria conflito de interesse no exercício do direito de voto e não parece razoável impedir de antemão o exercício do direito de voto em qualquer situação de aparente conflito de interesses. Assim, o conflito de interesses deve ser visto, de fato, com subjetividade e de forma abrangente, devendo ser tratado de maneira casuística.
A sua aplicação de vedação quando há potencial conflito (teoria formal) traz mais segurança e garantia de que não haverá votos em desacordo com o interesse da companhia. Todavia, ao ser aplicado de modo corretivo, somente quando prejuízos forem constatados, a companhia e os acionistas terão a garantia do direito de voto por seu impedimento só ocorrer quando há um conflito de interesses de fato, e não somente aparente ou potencial.
E qual será o entendimento que prevalecerá nesse parecer de orientação da CVM?
Se pudéssemos dar um palpite, analisando a doutrina majoritária e os últimos precedentes da CVM, estes indicam que a tendência da CVM é se manter numa linha mais flexível, em que ao conflito de interesses seria aplicada a teoria material, de modo que serão válidos os votos proferidos de boa-fé, sendo vedados e anulados somente os votos quando (e se) constatado o conflito de interesses.
[1] A teoria formal do conflito de interesses se baseia na ideia de que o conflito de interesses ocorre invariavelmente quando o acionista possui potenciais interesses pessoais, financeiros ou outros que possam desviar a finalidade de seu voto (que deve ser proferido sempre no melhor interesse da companhia) em uma deliberação societária. Assim, em qualquer potencial contraposição entre os interesses particulares e os interesses sociais deverá haver vedação e impedimento do exercício do direito de voto pelo acionista de modo preventivo para garantir que nenhum voto seja proferido com desvio de finalidade e abuso de direito.
[2] Diferentemente da teoria formal, a teoria material vai além da simples medida preventiva com proibição do exercício do direito anterior à análise do caso concreto. Essa teoria é uma medida corretiva, que considera válido o voto proferido de boa-fé sem visar benefício próprio, mas o bem da companhia. Assim, na teoria material há análise do caso concreto, das consequências práticas da decisão e da influência do conflito de interesses no desfeche da deliberação. Tão somente se constatado o conflito de interesses (e em para alguns constatado também o prejuízo) haveria anulação do voto proferido pelo acionista.
Patricia Catache Mancini é advogada associado da área de M&A e Societário do VBSO Advogados, formada na Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e pós-graduada em Direito Societário pela Fundação Getúlio Vargas.