Rosalina Moitta Costa: Defesas heterotópicas na execução

Além das defesas típicas na execução — exceção de pré-executividade, embargos do devedor e impugnação à execução —, existem outras formas de defesa que podem ser utilizadas fora do procedimento executivo — seja no processo de execução, seja na fase de cumprimento de sentença —, mas que, pelos seus resultados, acabam atingindo a execução. São as chamadas defesas heterotópicas.

Tema pouco explorado pela doutrina, as ações heterotópicas ainda provocam grande dissenso por causa das matérias que veiculam ou até mesmo do seu conceito.

“Heterotópico”, junção das palavras “hetero” e “tópico”, significa lugar diferente. Defesa heterotópica é a defesa que está fora do tópico, do lugar comum. Trata-se da defesa manejada pelo executado fora do “tópico” próprio das defesas previstas no Código de Processo Civil (CPC), chamadas homotópicas [1].

As defesas homotópicas ou defesas típicas, no nosso sistema processual, são os embargos à execução, a impugnação ao cumprimento de sentença e a exceção de pré-executividade. Esta última é um incidente, as demais (embargos à execução e impugnação ao cumprimento de sentença) são defesas incidentais, que podem atingir a pretensão executiva ou os atos executivos — como, por exemplo, as condições da pretensão executiva, a inexistência ou a invalidade dos pressupostos processuais, a penhora ou o direito material consubstanciado no título como a existência de pagamento, a prescrição etc.

No sistema pátrio, a defesa do título extrajudicial (embargos à execução) e a defesa de título judicial (impugnação ao cumprimento da sentença) veiculam tanto as matérias de mérito quanto aquelas atinentes à pretensão executiva e aos atos executivos. Portanto, todas as matérias arguíveis pelo executado confundem-se no mesmo remédio de defesa típica prevista no CPC.

Diferentemente, no sistema europeu [2], as formas de defesa classificam-se em oposição de forma e de fundo, conforme visem atingir, respectivamente, os atos ou a pretensão executiva, ou o próprio direito material consubstanciado no título. A oposição de forma visa atingir a pretensão executiva ou os atos executivos — como, por exemplo, as condições da pretensão executiva, a inexistência ou a invalidade dos pressupostos processuais, a penhora e a de fundo, o direito material consubstanciado no título como a existência de pagamento, a prescrição etc.

Essa classificação, por nós adotada, é substancial para o entendimento das chamadas defesas heterotópicas.

Assim, partindo da classificação das formas de oposição, conforme a matéria veiculada — embargos ou impugnação de fundo, manejados quando visam atingir a obrigação estampada no título, isto é, o direito material consubstanciado no título, e embargos ou impugnação de forma, cujo objeto litigioso é a pretensão executiva ou os atos executivos , as defesas heterotópicas são ações impugnativas autônomas que veiculam o mesmo conteúdo da oposição (embargos ou impugnação) de fundo. Logo, as ações ou defesas heterotópicas são ações de conhecimento que visam atingir o direito material consubstanciado no título [3].

Trata-se de ações autônomas de conhecimento que têm como objeto litigioso matérias capazes de atingir a execução, podendo até mesmo levar a sua extinção. Embora se nomine “defesa heterotópica”, não se trata do mero exercício do direito de defesa, trata-se, antes, de garantia constitucional do direito de agir, prevista no artigo 5º, inciso XXXV, da Constituição [4].

As defesas heterotópicas têm, portanto, a mesma finalidade da defesa homotópica (oposição de fundo), mas podem ser ajuizadas fora da oportunidade ou do momento procedimental das homotópicas.

Note-se que as matérias eminentemente processuais, a princípio, não podem ser arguidas por meio da ação autônoma, logo, a defesa heterotópica deve ficar restrita às matérias que visam atingir o direito consubstanciado no título.

As matérias atinentes à oposição de forma, que visam atingir a própria demanda executiva, porque dizem respeito à falta das condições da pretensão executiva, à inexistência ou invalidade dos pressupostos processuais, ou seja, as matérias eminentemente processuais, a princípio, não podem ser arguidas por meio da ação autônoma, seja porque podem ser arguidas, a qualquer tempo, na própria execução, independentemente de embargos do devedor ou de impugnação ao cumprimento da sentença, seja porque, após o término da ação executiva, opera-se sobre elas o fenômeno da preclusão endoprocessual.

Desse modo, as irregularidades processuais que ficaram para trás, em razão da não oposição das formas de defesa típicas da execução ou da sua não arguição durante o curso da demanda executiva, não poderão mais ser suscitadas, sendo sanadas com o término da execução, inviabilizando, portanto, o uso da defesa heterotópica.

No entanto, tal regra não é absoluta. Se na execução houver a falta de um pressuposto processual de existência da relação processual, como, por exemplo, a falta de capacidade postulatória ou de jurisdição, sendo a pretensão executiva comandada por quem não é juiz, em tese, é cabível a ação declaratória autônoma (defesa heterotópica) porque o sistema processual entende que tais vícios jamais se sanam.

De qualquer modo, com exceção de raríssimas situações, em que se poderia vislumbrar um interesse público, à falta de pressuposto processual e/ou de condição da ação, esses vícios são sanados ao término da execução.

Assim, por meio das defesas heterotópicas, que são ações de conhecimento paralelas à execução, pode-se discutir o débito constante no título, alegando-se qualquer matéria que poderia ter sido deduzida na oposição de mérito — matérias que visam atingir o direito consubstanciado no título [5].

Embora as defesas heterotópicas sejam defesas que atinjam a execução, podendo levar à sua extinção, não se pode afirmar que toda defesa heterotópica é uma ação prejudicial à execução.

Questão prejudicial é aquela que deve ser, lógica e necessariamente, decidida antes da questão chamada principal (prejudicada), porque predetermina o seu conteúdo. A prejudicialidade jurídica dá-se toda vez que a questão prejudicada influi na solução da questão final, ou seja, toda vez que a questão prejudicada influi no desate da controvérsia, condicionando-lhe o resultado final [6].

O que caracteriza a questão prejudicial é a subordinação lógica e necessária da questão prejudicada à questão prejudicial, “ou, em outras palavras, não é possível resolver uma questão prejudicada sem que se solucione antes a questão prejudicial” [7].

Mas, além dessa subordinação lógica e necessária, é preciso que a questão prejudicial tenha aptidão para ser objeto de um juízo autônomo. Não é necessário que a questão autônoma seja decidida em separado, basta a aptidão em abstrato para ser objeto principal em outro processo.

Logo, a prejudicial caracteriza-se pela autonomia, ao lado da anterioridade lógica e da necessariedade [8].

O que se deve ter em conta para a conceituação de prejudicialidade jurídica é a possibilidade de a questão prejudicial constituir objeto de processo autônomo e, portanto, fazer coisa julgada, porque assim poderá influir na decisão da questão final da lide prejudicada, a qual pode ou não ser objeto de coisa julgada.

A defesa heterotópica é veiculada por meio de ações autônomas de conhecimento, essencialmente de cunho declaratório ou (des)constitutivo, por exemplo: ação anulatória de título, anulatória de relação cambial, declaratória de falsidade, declaratória de inexigibilidade da obrigação. Tais ações em geral são prejudiciais à execução porque seu desfecho atingirá a execução.

É o que se dá com a ação de consignação em pagamento. Entre ela e a execução, há uma relação de prejudicialidade, pois, se reconhecido o depósito liberatório, que é ato voluntário, equiparado ao pagamento, não há por que se prosseguir com medidas coercitivas no patrimônio do devedor. A análise da decisão que reconhece o depósito liberatório na ação consignatória constitui, portanto, pressuposto jurídico da demanda executória. Além de ser prejudicial à execução, a ação de consignação em pagamento [9] pode veicular também uma defesa heterotópica, gerando conexão entre esta e a oposição à execução (embargos ou impugnação), pela coincidência da mesma causa de pedir remota, quando discutem o mesmo contrato, por exemplo.

Contudo, existem outras ações tipificadas no CPC cujo desfecho também pode atingir a execução, mas embora sejam prejudiciais à execução, não veiculam a matéria da oposição de fundo. Portanto, nem toda ação de conhecimento prejudicial à execução é defesa heterotópica.

A ação rescisória, por exemplo, é uma ação autônoma de impugnação que busca desconstituir decisões judiciais, de mérito ou terminativas, transitadas em julgado. O artigo 966 do CPC estabelece em seus oito incisos um rol restritivo dos vícios de rescindibilidade. Não se trata, portanto, de defesa à execução. Aliás, não há sequer conexão entre a impugnação ao cumprimento da sentença e a ação rescisória, pois seus objetos são diferentes: a rescisória visa desconstituir a coisa julgada, efeito que não se presta à impugnação ao cumprimento da sentença, que, à exceção da falta de citação somada à revelia, somente admite a discussão de fatos supervenientes à sentença. Contudo, pela prejudicialidade, a execução será atingida se houver a rescisão da decisão transitada em julgado. Trata-se não de uma defesa heterotópica, pois não veicula matéria da oposição de fundo, mas de uma ação prejudicial à execução, tão somente [10].

O executado também pode ingressar após a extinção da execução com uma defesa heterotópica, caso em que, obviamente, não se cogitará em prejudicialidade. É o caso, por exemplo, de ingressar após finda a execução com ação visando a restituição de valores pagos em excesso.

Portanto, não existe uma relação absoluta entre defesa heterotópica e prejudicialidade, embora em geral as ações autônomas sejam prejudiciais à execução.

O que importa, em termos práticos, no estudo das defesas heterotópicas, são os diversos contextos em que elas podem afetar a execução.

O devedor pode ingressar com a ação autônoma antes da propositura da execução e, assim, no momento da abertura do prazo para oposição da defesa típica (embargos ou impugnação), aquela ação heterotópica talvez ainda esteja em curso. É o que ocorre, por exemplo, quando, na pendência da ação declaratória de inexigibilidade de juros, o autor é citado em ação executiva fundada nesse mesmo título extrajudicial, abrindo-se o prazo para a oposição dos embargos na execução.

Havendo então uma ação autônoma pendente, e sendo opostos embargos à execução ou impugnação ao cumprimento de sentença, questiona-se: poderá haver a reunião desses dois processos (oposição e defesa heterotópica)? Se a ação autônoma já houver sido julgada, caberá a reunião? A decisão da ação autônoma (defesa heterotópica) sempre influirá no desate da ação de embargos ou da impugnação?

Essas diversas situações relacionais entre a defesa heterotópica e a execução dependerão do objeto litigioso de ambas as ações (oposição e ação autônoma), gerando diversas consequências práticas [11].

Em suma, defesas heterotópicas são ações autônomas de conhecimento que têm o mesmo conteúdo e a mesma finalidade das defesas típicas, mas poderão ser ajuizadas fora do momento e da oportunidade, e seu resultado pode alterar o teor da execução.

 


[9] Para parte da doutrina, a consignação em pagamento é uma execução forçada às avessas. Cf.: THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de direito processual civil. 51. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2017. v. 2 (versão digital), p. 56.

Rosalina Moitta Pinto da Costa é doutora em Direito Processual Civil pela PUC-SP, mestre em Direito Agrário pela UFPA, coordenadora do Norte da Abep, associada do IBDP e da Annep, líder do Grupo de Pesquisa “Inovações no Processo Civil” — UFPA/CNPQ e professora titular da UFPA.

Consultor Júridico

Facebook
Twitter
LinkedIn
plugins premium WordPress

Entraremos em Contato

Deixe seu seu assunto para explicar melhor