Pinheiro e Vilas: Perse e obrigatoriedade do Cadastur

A discussão sobre a exigência de cadastro regular no Cadastur para que contribuintes de alguns setores econômicos, como é o caso de bares e restaurantes, possam se enquadrar no Programa Emergencial de Retomada do Setor de Eventos (Perse) ainda está longe do seu fim. A recente Lei nº 14.592/2023, publicada em 30/5/2023, definitivamente não encerra o debate jurídico sobre o tema.

A Lei nº 14.148, criadora do Perse e originalmente publicada em maio de 2021, tem por objetivo a criação de medidas de compensação aos setores de eventos e turístico, em decorrência das perdas financeiras sofridas com as restrições causadas pela pandemia da Covid-19. Dentre as medidas, a principal delas é o benefício fiscal de redução a zero das alíquotas de IRPJ, CSLL, PIS e Cofins de contribuintes pelo período de 60 meses.

Os integrantes dos setores contemplados pela lei foram objetivamente identificados por meio dos códigos das atividades econômicas (Cnae). A Portaria nº 7.163/2021 do Ministério da Economia, publicada em 23/6/2021, posteriormente alterada pela Portaria ME nº 11.266/2023, segregou em dois anexos as atividades enquadráveis no Perse, além de inovar criando requisito específico: os contribuintes que exerciam atividades previstas no Anexo II teriam que comprovar inscrição regular no Cadastur na data de publicação da Lei 14.148/2021 para enquadramento no Perse.

A exigência de inscrição regular no Cadastur, veiculada exclusivamente em ato infralegal do Ministério da Economia, foi — e ainda é  bastante discutida nos tribunais; a multiplicidade de entendimentos ainda gera insegurança jurídica grave aos contribuintes, muitos dos quais foram à juízo para afastar a ilegal obrigatoridade de Cadastur para enquadramento no Perse.

Na tentativa de contornar a escancarada ilegalidade da exigência de inscrição no Cadastur, prevista unicamente nas portarias do Ministério da Economia,o governo federal recentemente publicou a Lei nº 14.592/2023, alterando dispositivos da Lei nº 14.148/2021 para incluir em lei os Cnaes das atividades enquadráveis nos setores de eventos e turístico (reduzindo em mais de cinquenta as atividades inicialmente previstas), bem assim a exigência de inscrição regular retroativa no Cadastur para enquadramento do contribuinte no Perse.

Ou seja: a Lei nº 14.592/2023 trouxe para o texto da Lei nº 14.148/2021 as disposições ilegais contidas nas portarias do Ministério da Economia, num esforço de revestir de legalidade a exigência de Cadastur.

Há de ser registrado que a própria edição de uma lei, somente agora, para impor a exigência de cadastro no Cadastur como condição ao enquadramento ao Perse, por si só revela que tal requisito, quando veiculado exclusivamente em portaria, era ilegal e violava o princípio da legalidade.

Demais disso, a despeito de agora ter previsão em lei, mantém-se ilegítima a exigência de inscrição regular no Cadastur como condição ao enquadramento ao Perse.

Com a atenção voltada à natureza jurídica de tal ato administrativo, conclui-se que o registro no Cadastur não pode ser condicionante ao enquadramento e acesso ao Perse por aqueles que materialmente realizam atividade turística.

O ato de registro no Cadastur  que consiste num cadastro facultativo ou obrigatório, a depender da atividade realizada  mantido pelo Ministério do Turismo se configura como um ato administrativo. Logo, há de ser compreendido como uma declaração do Estado.

Enquanto ato administrativo, sob o critério da verificação dos efeitos produzidos para o administrado, o registro no Cadastur deve ser considerado como similar ao ato administrativo denominado licença, encontrando-se no rol dos atos declaratórios, os quais não criam fato ou direito, apenas declaram uma situação preexistente.

A natureza eminente declaratória do Cadastur é extraível do artigo 21, parágrafo único, da Lei nº 11.771/2008, o qual não estipula qualquer contingência ao registro das pessoas jurídicas que exercem as atividades listadas, tais quais restaurantes e bares, facultando-lhes o aludido cadastro.

O próprio Ministério do Turismo, ao regulamentar o Cadastur por meio da Portaria MTur nº 38/2021, determina no artigo 5º o procedimento para o cadastro no Cadastur. O procedimento, em verdade, é uma “conferência” documental, que tem o condão de declarar a preexistência da prestação de serviços turísticos pelo interessado.

Assim, o Cadastur não torna uma atividade como integrante do setor de turismo, mas sim declara uma situação preexistente, não podendo obstar o enquadramento e fruição pelo contribuinte de benefício fiscal instituído pelo Perse. Registros e cadastros, tais como o Cadastur, servem para declarar/chancelar uma situação fática já existente, e não para fazer surgir novas situações em concreto. Não se extrai da inscrição no Cadastur o efeito jurídico de constituição da atividade desempenhada como turística somente após o referido cadastro.

Finalmente, embora tenha o legislador repetido o equívoco do Ministério da Economia nas portarias que regulamentavam o Perse, agora inserindo o condicionamento de inscrição prévia no Cadastur no texto de lei, o referido condicionamento é incompatível com o conteúdo material da norma que instituiu o benefício fiscal. Antes por violação ao princípio da legalidade, e agora em virtude da violação do conteúdo material do próprio benefício, a exigência de inscrição no Cadastur permanece ilegítimo.

A condição de inscrição retroativa no Cadastur para enquadramento no Perse esvazia o conteúdo material da Lei nº 14.148/2021, além de ser intrinsecamente contraditória: ao passo que a norma ambiciona atenuar os efeitos econômicos inegavelmente negativos da pandemia para restaurantes e bares, por exemplo, restringe tal direito à inscrição em um cadastro que, primeiro, não é obrigatório e, segundo, não constitui a atividade como sendo turística.

É imperativa a interpretação teleológica e sistemática da norma extraída do artigo 4º da Lei nº 14.148/2021. O “novo” imbróglio jurídico impõe a análise do propósito da norma, da sua finalidade, conforme orienta o art. 5º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, buscando os fins sociais a que a norma se destina.

Qual o objetivo primordial do benefício fiscal do Perse, se não o de mitigar os impactos econômicos da pandemia que afetaram atividades intrinsecamente ligadas ao setor de eventos e turístico? É necessário seja adequado o benefício fiscal à finalidade que lhe é subjacente, bem como à própria Constituição, o que efetivamente garante a segurança jurídica ao contribuinte.

Monya Pinheiro é advogada, pós-graduada em Direito Tributário pelo IBET, MBA em Práticas Contábeis pela Fundação Visconde de Cairu, sócia do escritório Pires Pinheiro Freitas—PPF Advocacia.

Gabriel Vilas é advogado da PPF Advocacia e pós-graduado em Direito Empresarial pela Fundação Getúlio Vargas (FGV) e em Direito e Processo Tributário pela Fundação Escola Superior do Ministério Público (FMP/RS).

Consultor Júridico

Facebook
Twitter
LinkedIn
plugins premium WordPress

Entraremos em Contato

Deixe seu seu assunto para explicar melhor