A segurança pública é um pilar fundamental para a estabilidade e ordem da sociedade, sendo o Estado detentor da responsabilidade por sua garantia, conforme preceitua o artigo 144 da Constituição. As instituições de segurança desempenham um papel essencial na preservação da ordem pública e na proteção dos cidadãos e do patrimônio. Dentre essas instituições, destaca-se a atuação das polícias, tanto no âmbito federal quanto estadual, cada uma com suas competências e responsabilidades específicas.
Vivenciamos, no mundo, um processo acelerado de “automação”, no qual se adotam cada vez mais tecnologias para realizarem tarefas de forma autônoma, sem a necessidade de intervenção humana direta, em outras palavras, as máquinas vêm substituindo os humanos nas mais diversas e impensáveis atividades.
Recentemente, a implementação das câmeras individuais corporais em algumas unidades das forças de segurança, como nos estados de São Paulo, Santa Catarina e Rio de Janeiro, tem sido objeto de discussão e debate.
Essa tecnologia visa fornecer maior transparência à atuação policial em prol não apenas do cidadão, mas do próprio servidor do estado, registrando de maneira imparcial e objetiva os eventos e situações enfrentadas pelos policiais em serviço, oferecendo uma perspectiva ampla sobre as ações realizadas.
A transparência, por seu turno, é elemento regente para a atuação policial dentro de uma sociedade democrática e justa. A legitimação policial não se restringe apenas à obediência à legislação vigente, mas também engloba uma prestação social, onde os cidadãos devem sentir que a atuação policial é necessária e justa.
Nesta senda, a transparência na atuação das forças de segurança é essencial para a construção de uma relação sólida entre a instituição policial e a comunidade que serve e protege, além de permitir a responsabilização em casos de abusos ou má conduta.
O STF, na ADPF 635, ajuizada pelo Partido Socialista Brasileiro (PSB), determinou, no primeiro trimestre de 2022, ao estado do Rio de Janeiro que colocasse dispositivos de GPS e de áudio e vídeo nos veículos e nos uniformes dos agentes de segurança, com a subsequente conservação digital dos arquivos correspondentes.
O ministro Edson Fachin preservou a autoridade de implementação de câmeras nos uniformes e dispositivos de geolocalização (sistema de posicionamento global — GPS) utilizado pelos policiais fluminenses. Isso também se estenderia à gravação de áudio e vídeo nas viaturas policiais do estado, abarcando até mesmo as equipes especializadas, como o Batalhão de Operações Policiais Especiais (Bope) e o Comando de Operações e Recursos Especiais (Core).
O ministro refutou o argumento apresentado pelo Governo do Estado do Rio de Janeiro segundo o qual a instalação desses equipamentos envolveria em interferências nas atividades de inteligência e poderia comprometer a segurança tanto dos agentes de segurança quanto dos moradores das comunidades.
Com efeito, em casos em que os representantes do Estado não utilizam as câmeras individuais corporais quando deveriam fazê-lo por força de normas legais ou regulamentares, surgem dilemas significativos quanto à validade e presunção de veracidade de seus depoimentos. A fé pública tradicionalmente atribuída ao testemunho policial pode ser abalada quando há evidência de que esses procedimentos prescritos não foram observados.
As cortes superiores, como não poderia ser diferente, entendem que os depoimentos dos policiais são merecedores de credibilidade como elementos de convicção, todavia não se trata de presunção absoluta, pois não devem ser o único substrato da condenação, especialmente se coligidos na fase pré-processual:
“Agravo regimental em agravo em recurso especial. Corrupção ativa. Contrariedade aos arts. 17 e 333 do cp. Improcedência. crime formal. Acórdão que guarda harmonia com a jurisprudência consolidada nesta corte. Súmula 83/STJ. Contrariedade ao art. 386, VII, do CPP. Tese de que a palavra dos policiais não é suficiente para subsidiar a condenação. improcedência. palavra de policiais. Prova idônea para a condenação. Precedentes desta corte. Agravo regimental improvido.” (STJ – AgRg no AREsp: 1.264.072 PE 2018/0061877-4, relator: ministro Sebastião Reis Júnior, data de julgamento: 4/9/2018, T6 – 6ª Turma, data de publicação: DJe 24/9/2018)
“Agravo regimental no recurso ordinário em habeas corpus. 2. Agravo da Procuradoria-Geral da República. 3. Condenação baseada exclusivamente em supostas declarações firmadas perante policiais militares no local da prisão. Impossibilidade. Direito ao silêncio violado. 4. Aviso de Miranda. Direitos e garantias fundamentais. A Constituição Federal impõe ao Estado a obrigação de informar ao preso seu direito ao silêncio não apenas no interrogatório formal, mas logo no momento da abordagem, quando recebe voz de prisão por policial, em situação de flagrante delito. Precedentes. 5. Agravo a que se nega provimento.” (STF – RHC: 170843 SP, relator: Gilmar Mendes, data de julgamento: 4/5/2021, 2ª Turma, data de publicação: 1/9/2021)
A não utilização das câmeras em situações na qual sua implementação é obrigatória pode gerar questionamentos sobre a confiabilidade das versões oferecidas em julgamento, levando dúvidas sobre a precisão dos relatos e à possibilidade de erros ou distorções nas informações fornecidas pelos agentes de segurança.
A jurisprudência é incipiente e os tribunais ainda não aderiram à implementação desse posicionamento. De sorte que as câmeras estão sendo consideradas como meio de prova idôneo somente quando são empregadas adequadamente, geralmente em prejuízo do réu:
“Processo criminal. Recurso de correição parcial. Error in procedendo. Corrigente denunciada pela possível prática do crime de tráfico de drogas (artigo 33, caput, da Lei n. 11.343/2006). Tese defensiva de suspeição de policial militar. juntada de gravação da câmera corporal dos policiais militares envolvidos na ocorrência. Irresignação da defesa, com alegação de que a gravação teria sido alterada, pedindo a retirada da prova dos autos. indeferimento pelo juízo a quo. Alegado prejuízo para a defesa. inocorrência. em que pese no processo penal o acusado tenha o direito à produção da prova necessária a dar embasamento aos argumentos de defesa, deve justificar sua imprescindibilidade, pois ao juiz é facultado o indeferimento motivado das diligências que entender protelatórias, irrelevantes ou impertinentes. o indeferimento da diligência pleiteada foi suficientemente justificado pela instância primeva, ao frisar que a gravação que consta nos autos é suficiente para demonstrar, desde o início, o momento da abordagem dos réus, bem como inexiste qualquer elemento indicativo de eventual violação do material (edição/alteração)? — Recurso conhecido e desprovido.” (TJ-SC — COR: 50286725520218240000 Tribunal de Justiça de Santa Catarina 5028672-55.2021.8.24.0000, relator: Ariovaldo Rogério Ribeiro da Silva, data de julgamento: 15/7/2021, 1ª Câmara Criminal)
Logo é imperioso garantir a manutenção da confiança da sociedade na atuação policial e preservar a integridade do sistema de justiça, portanto será necessário considerar a retirada da fé pública e da presunção de veracidade dos depoimentos de depoimentos em situações em que as câmeras individuais corporais deveriam ter sido empregadas.
Em um segundo momento, será necessário voltar a atenção para os entes federados que deixarem de adotar as câmeras, por inércia, beneficiando-se da própria torpeza em prejuízo da proteção da população; devendo, nessas hipóteses, igualmente ser abolido tal beneplácito jurisprudencial em prol dos seus agentes de segurança pública.
Somente assim poderemos alcançar um equilíbrio entre a preservação da ordem pública e a proteção dos direitos fundamentais dos cidadãos, fortalecendo a confiança e a harmonia em nossa sociedade.
Alcir Moreno da Cruz é advogado criminal formado pela UFRJ e especialista em Direito Público pela Emerj.