Embora o julgamento da ação constitucional (STF, ADPF 442) em que se impugna a constitucionalidade do tipo penal de aborto provocado por gestante ou com seu consentimento esteja prevista para ser julgada pelo Supremo Tribunal Federal neste semestre, este artigo tem como recorte a situação em que mulheres são denunciadas pelo cometimento de aborto em razão de notificações às autoridades realizadas pelos médicos que as atenderam.
No ano de 2023, o STJ (Superior Tribunal de Justiça) examinou acusações de aborto contra duas mulheres que haviam sido denunciadas pelos médicos que as examinaram, por terem provocado aborto em si, concluindo-se, em duas ocasiões que serão analisadas abaixo, pela prevalência do dever de sigilo médico em tais situações, ainda que, em uma das causas, a paciente tenha consentido, por escrito, com a notificação da sua conduta às autoridades.
No primeiro caso, relatado pelo ministro Sebastião Reis, a corte examinou a validade legal de uma denúncia de aborto contra mulher que, “grávida de aproximadamente 16 semanas, praticou manobras abortivas em sua residência” (HC nº 783.927, DJe 17/3/2023), sendo atendida em hospital localizado na Conselheiro Lafaiete (MG), cujo médico plantonista noticiou o fato à autoridade policial e figurou como testemunha na ação penal, encaminhando o prontuário médico da paciente para subsidiar a sua notificação.
Neste julgamento, a 6ª Turma concluiu pela ilegalidade da acusação contra a paciente, invocando as disposições do artigo 207 do Código de Processo Penal no sentido de que “são proibidas de depor as pessoas quem, em razão de função, ministério, ofício ou profissão, devam guardar segredo, salvo se, desobrigadas pela parte interessada, quiserem dar o seu testemunho“.
O colegiado da Corte Superior entendeu que o médico que realizou a notificação geradora do processo criminal “se encaixa na proibição acima, uma vez que se mostra como confidente necessário, estando proibido de revelar segredo de que tem conhecimento em razão da profissão intelectual, bem como de depor sobre o fato como testemunha“, determinando-se, ao fim, “a necessidade de que a conduta do médico noticiante do suposto crime, com a violação do sigilo profissional, seja apurada pelo conselho de classe competente“.
No segundo caso, decidido monocraticamente pelo ministro Reynaldo da Fonseca (HC nº 820.577-SP, DJe 29/6/2023), foi julgada a validade de acusação de aborto contra mulher que passou mal após inserir comprimidos de Cyotec em sua vagina, gerando a necessidade de atendimento na Santa Casa em Mogi das Cruzes (SP), ocasião em que o médico plantonista, com consentimento escrito da paciente, acionou a Guarda Civil Metropolitana para relatar o ocorrido, resultando na instauração de inquérito policial contra ela.
Além disso, após requisição da autoridade policial, a Santa Casa encaminhou às autoridades policiais o exame anatomopatológico do feto e o relatório médico da paciente, sem consentimento da própria.
Após a defesa requerer a nulidade da acusação em razão da violação do sigilo profissional do médico, o TJ-SP (Tribunal de Justiça de São Paulo) denegou a ordem de Habeas Corpus, entendendo ser “dever do médico buscar proteger a saúde e a vida das pessoas, no caso, da paciente e da criança, que, aliás, repita-se, já estava com 19 semanas de gestação”.
Já no âmbito do STJ, o ministro relator concedeu a ordem pleiteada para trancar o processo contra a paciente, por violação ao dever de sigilo profissional do médico que a atendeu e a denunciou, consignando que a mulher somente “consentiu com a lavratura do boletim de ocorrência em virtude de ter sido essa a condição imposta pelo médico para lhe atender“, o que “apenas reforça a ilicitude da prova”, já que, em função da “situação de emergência de saúde“, a paciente “não se encontrava, por certo, em condições de dar consentimento válido“.
Ademais, o ministro Reynaldo da Fonseca relembrou que o Conselho Federal de Medicina, no âmbito da Consulta nº 151.842 de 2016, examinou o conflito entre a prevalência ou não do sigilo médico diante de uma situação de aborto, concluindo que, “diante de um abortamento, seja ele natural ou provocado, não pode o médico comunicar o fato à autoridade policial ou mesmo judicial, em razão de estar diante de uma situação típica de segredo médico“.
Ainda no sentido de sustentar a vedação legal da notificação realizada pelo médico contra a paciente por ele atendida, o nominado julgador destacou que o artigo 73 do Código de Ética Médica estabelece que “é vedado ao médico revelar fato de que tenha conhecimento em virtude do exercício de sua profissão, salvo por motivo justo, dever legal ou consentimento, por escrito, do paciente. E que na investigação de suspeita de crime, o médico estará impedido de revelar segredo que possa expor o paciente a processo penal“.
Por outro lado, o Supremo Tribunal Federal, também neste ano, se deparou com Habeas Corpus (RHC 217465-SC, Dje 16/6/2023) impetrado por uma gestante que fora denunciada pela enfermeira que a atendeu, por ter ingerido o medicamente Cyotec, provocando o aborto em si. Nesta ocasião, o STF, por 3 votos a 2, manteve a acusação de aborto contra a paciente, alegando óbices processuais ao exame da matéria.
Acompanhado pelos ministros André Mendonça e Nunes Marques, o relator Ricardo Lewandowski negou seguimento ao mandamus, alegando necessidade de revolvimento probatório para analisar o mérito da questão, o que seria vedado na ação de HC.
No entanto, o ministro Edson Fachin inaugurou a divergência acompanhada pelo ministro Gilmar Mendes, entendendo que a acusação de aborto contra a paciente advinha de prova ilícita, obtida mediante violação do sigilo profissional, em contrariedade às disposições do artigo 207 do Código Processual Penal, concluindo, portanto, que “a enfermeira que atendeu à ré está inserida entre aqueles que deve observar a norma proibitiva, eis que se encontra na condição de receptora de confissão de fato, pela ré, inserido entre os mais caros para a sua intimidade, além de ser protegido pela vedação a autoincriminação.“
Além disso, o ministro Edson Fachin reputou que a acusação contra a paciente violava a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, do qual o Brasil é signatário, destacando que “o Comitê dos Direitos Humanos o Comitê dos Direitos Humanos tem recomendado que mulheres devem ter condições de acessar os serviços de saúde no pós aborto, em todas as circunstâncias, e em base confidencial, sem enfrentar ameaças de processo criminal ou medidas punitivas (Human Rights Committee, General Comment 36, para. 8)”.
Por fim, o ministro em questão ainda consignou em seu voto que “a persecução instaurada nestes autos é mais uma das medidas que agravam o cenário das questões relacionadas ao aborto no Brasil“, anotando que o óbice à oferta do serviço de saúde às mulheres no pós-aborto “equivale à negação de serviço adequado e não discriminatório, a oferta sem preservar a intimidade da paciente, além do afastamento do direito à não autoincriminação“.
Fundamentos e conclusões a respeito do dever de sigilo médico
Examinados os recentes precedentes dos tribunais superiores em que foram julgadas a validade jurídica de uma acusação de aborto com base em denúncia realizada pelo profissional médico que atendeu a paciente, observa-se a prevalência da tutela da vida da mulher e da necessidade de observância ao dever de sigilo médico.
Tal conclusão decorre do fato de que os médicos, tal como os advogados e outras categorias profissionais, enquadram-se na qualidade de confidentes necessários, “na medida em que o profissional recebe a informação em função de seu ofício e conta com a confiança do particular de que não irá revelar tal segredo” [1], sendo certo que, para o adequado e proficiente desempenho suas funções, determinados profissionais devem ter “conhecimento de aspectos íntimos e pessoais, cuja consequência para a própria continuidade e respeitabilidade da profissão é a imposição de sigilo como decorrência ética da atividade“.
Cesca e Orzari distinguem os fundamentos do sigilo profissional em duas frentes de proteção, sendo a primeira individual, prevenindo que a pessoa que exerça a atividade laboral se torne um delator em potencial de seus clientes, e outra, no plano coletivo, tutelando a confiança que a sociedade deposita no exercício de determinadas funções, nas quais o cidadão “deve estar seguro de que encontrará resguardo da sua intimidade naquele ramo de atividade em que precise de assistência” [2].
Com efeito, a tutela conferida pelo sigilo profissional busca proteger dois valores sociais, sendo um referente à intimidade e privacidade, e outro concernente à confiabilidade das relações sociais travadas por particulares, de forma a assegurar a “pacificação social, de modo a garantir que todos possam bem exercer seus ofícios e obter todas as informações necessárias para tanto” [3].
Neste sentido, Cesca e Orzari sustentam que a proteção outorgada pelo ordenamento jurídico ao sigilo profissional decorre da condição de “confidentes necessários” de determinadas categorias, presumindo-se que o profissional, para o bem daquele que o procura, “obrigatoriamente terá que saber de detalhes fáticos e pessoais que normalmente não seriam revelados. Portanto, o segredo é da natureza da profissão e núcleo de seu desenvolver cotidiano” [4].
Neste contexto, é oportuno destacar a importância conferida pelo ordenamento jurídico ao sigilo profissional, cuja violação, sem justa causa, configura o delito de violação de segredo profissional inscrito no artigo 154 do Código Penal, que prevê, como requisito típico ao aperfeiçoamento do tipo, a inexistência de “justa causa” para revelação da confidência, o que denota a existência de exceções à regra de incomunicabilidade, como se verá em seguida.
Ainda sobre a relevância da obrigação de sigilo dos médicos, o artigo 73 do Código de Ética Médica veda a revelação de “fato de que tenha conhecimento em virtude do exercício de sua profissão“, ainda que haja “consentimento, por escrito, do paciente“, em razão da previsão de que a proibição deve permanecer “na investigação de suspeita de crime“, quando “o médico estará impedido de revelar segredo que possa expor o paciente a processo penal“.
Não fosse suficiente, o artigo 89 do mesmo diploma legal proíbe que o médico libere “cópias do prontuário sob sua guarda exceto para atender a ordem judicial ou para sua própria defesa, assim como quando autorizado por escrito pelo paciente“.
Há de se registar, contudo, que a própria legislação penal prevê hipóteses de mitigação do dever do médico guardar sigilo profissional, ante a existência de deveres e interesses jurídicos que o superam. Neste sentido, o próprio ordenamento jurídico estipula hipóteses de levantamento do sigilo, como na atuação de médicos sanitaristas em determinadas ocasiões, concluindo Hungria que, “uma ação ou omissão, segundo ensina Rocco (Arturo), para ser penalmente ilícita, não deve ser conforme a nenhuma norma jurídica” [5].
No entanto, estariam os médicos proibidos, nas demais hipóteses, de comunicar crimes que cheguem ao seu conhecimento em razão do exercício da medicina? A resposta é negativa, havendo, inclusive, previsão da infração penal contida no artigo 66 da Lei de Contravenções Penais aos profissionais da administração pública que exerçam a medicina ou outra profissão sanitária, caso não comuniquem às autoridades competentes crimes dos quais tiveram ciência em razão da profissão.
Para resolver o aparente conflito normativo na atividade médica, o que deve preponderar é se o paciente será exposto a procedimento criminal em razão da notificação médica, como ocorre nas hipóteses de aborto acima analisadas, tornando ilegal o reporte realizado por médicos em tais casos.
Já nas hipóteses de estupro, por exemplo, é impositiva a comunicação do delito às autoridades competentes, já que os pacientes são vítimas, e não autoras dos delitos que venham a ser relatados pelos médicos, não havendo, assim, risco que venham a ser alvo de investigações ou acusações criminais em razão da notificação do médico.
Diante de tais considerações sobre os fundamentos e a importância da observância ao sigilo profissional de certas categorias, observa-se cenário jurídico em que os médicos ora se encontram obrigados a reportar indícios de crime às autoridades competentes, ora se veem proibidos de revelar qualquer segredo que possa incriminar seus pacientes, sendo possível notar que os tribunais superiores têm reputado como ilegais as acusações derivadas de comunicações de crime realizadas por médicos contra seus pacientes, tornando o profissional suscetível à responsabilização no âmbito ético-disciplinar, cível e até mesmo criminal.
[1] OLIVEIRA, Edson Roberto Baptista de; ALVARENGA, Fernando Henrique Aguiar Seco de. Prova Penal e Sigilo Profissional: análise comparativa e casuística de algumas profissões. Revista da Defensoria Pública da União, Brasília, n. 8, p. 259, jan./dez. 2015.
[2] CESCA, Brenno Giemenes; ORZARI, Octavio Augusto da Silva. Prova Penal e Segredo Profissional. Revista da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, v. 11, p. 558, jan./dez. 2016.
[3] OLIVEIRA, Edson Roberto Baptista de; ALVARENGA, Fernando Henrique Aguiar Seco de. Ibidem, p. 261.
[4] CESCA, Brenno Giemenes; ORZARI, Octavio Augusto da Silva. Ibidem, p. 558/559.
[5] HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal. 4. ed. Rio de Janeiro: Companhia Editora Forense, p. 265/266, 1958.
Raphael Diniz Franco é advogado sócio do Nelio Machado Advogados, mestre em Direito e LL.M em Compliance e Direito.