A Constituição de 1988 delimitou, em seu artigo 5º, XI, os permissivos da entrada na casa sem o consentimento do morador, sendo um deles o caso de flagrante delito. Nota-se que o texto constitucional não descreveu o conceito de flagrante delito, ficando a cargo da legislação infraconstitucional.
Dessa forma, o Código de Processo Penal trouxe, em seu artigo 302 (rol taxativo), quando se considera uma pessoa em flagrante delito, quando alguém: I – está cometendo a infração (flagrante próprio); II – acaba de cometê-la (flagrante próprio); é perseguido, logo após, pela autoridade, pelo ofendido ou por qualquer pessoa, em situação que faça presumir ser autor da infração (flagrante impróprio) e IV – é encontrado, logo depois, como instrumentos, armas, objetos ou papéis que façam presumir ser ele autor da infração (flagrante ficto).
Assim, de acordo com Nogent-Saint-Laurents (apud BRANCO, 2001, pág. 14) “flagrante delito implica a plena posse da evidência, a evidência absoluta, quanto ao fato que acaba de cometer-se, que acaba de ser provado, que foi visto e ouvido e, em presença do qual seria absurdo ou impossível negá-lo” [1]. Portanto, a ocorrência do flagrante delito autoriza a entrada na casa, pela polícia, sem o consentimento do morador. Mas quaisquer dos flagrantes descritos no artigo 302 do Código de Processo Penal permitiria mesmo essa entrada na casa? Alguns autores vão dizer que a entrada sem o consentimento é permitida somente no caso de flagrante próprio. Nesse sentido leciona Nucci (2014):
“Ao cuidar do flagrante delito, em nosso entendimento, deve-se aplicar a interpretação restritiva, ou seja, somente se aplica ao flagrante próprio (artigo 302, I e II, CPP), por se tratar de violação de direito constitucional (resguardo do domicílio). Os casos de flagrante impróprio (artigo 302, III, CPP) e presumido (artigo 302, IV, CPP) não comportam a violação sem mandado judicial.” [2]
Outra parte da doutrina vai dizer que quaisquer dos flagrantes elencados no artigo 302 do Código de Processo Penal permitem a entrada na residência uma vez que o texto constitucional não fez ressalvas quanto a isso. Entendemos que o tipo de flagrante que autoriza a entrada na casa deve ser analisado com o devido cuidado. Pelas próprias descrições no artigo 302 do Código de Processo Penal é possível verificar que não são todos os flagrantes que permitem a entrada de pronto na casa.
O flagrante próprio, quando o indivíduo está cometendo ou acaba de cometer o crime, é por óbvio autorizador imediato da entrada na casa, pois a evidência do acontecimento do crime e da autoria torna a ação da polícia mais precisa e direcionada.
Já o flagrante impróprio, aquele no qual se inicia a perseguição do autor logo após o cometimento do fato delituoso, ou seja, quando o autor não está mais no local, mas diante das informações obtidas ou até mesmo pela visualização da fuga, a polícia ou qualquer um do povo (artigo 301, CPP) vai ao seu encalço, traz a situação de que o crime já aconteceu e o suspeito evadiu. Nesse ponto, interessante verificar no que diz respeito à entrada do perseguido em outra casa, e o respeito à inviolabilidade do domicílio desse local.
Embora o artigo 294 do Código de Processo Penal determine a observação no caso de prisão em flagrante, no que couber, das premissas da prisão por mandado judicial dentro da casa, elencadas no artigo 293, tem-se que maior parte da doutrina diz ser possível essa prisão a qualquer hora do dia, justamente pelo flagrante, embora impróprio.
Nesse sentido, o flagrante impróprio parece autorizar a entrada na casa, mas desde que seus requisitos estejam presentes, ou seja, desde que tenha ocorrido de fato uma perseguição, iniciada logo após o fato delituoso, e haja circunstâncias que presumam ser o perseguido autor do delito, ou seja, através da perseguição soube-se, com segurança, que o suspeito entrou ou se encontra em alguma casa. O CPP não definiu o que venha a ser “perseguição”, aplica-se, por analogia, o disposto no artigo 290, §1º [3]. Nessa senda, importante a lição de Avena (2017):
“Evidentemente, embora não seja necessário conhecimento quanto à exata identidade do agente, é preciso que haja a ciência de quem seja o perseguido, senão pelo nome, ao menos pelas características físicas. Assim, meras diligências voltadas à investigação de quem seja o autor do crime com a sua posterior perseguição para prisão descaracterizam o flagrante impróprio.” [4]
Dessa forma, ausente a perseguição ininterrupta, esse tipo de flagrante não subsiste, como já entendeu o STJ (Superior Tribunal de Justiça) em um caso concreto que o ingresso domiciliar foi baseado na fuga de indivíduos (que a polícia considerou suspeitos) para o interior da residência, quando avistaram a guarnição, e não se tratava de perseguição imediata a alguém que havia acabado de cometer ilícito, mas sim de mera intuição, calcada na percepção de que os réus estavam em região onde ocorrem muitos roubos a residência, considerando a invasão ilícita. Salienta-se que, na ocasião da abordagem, não se sabia da existência das armas de fogo e dos documentos falsos, não visualizados previamente com os agentes [5].
Assim, o STJ tem julgado no sentido de admitir, para a entrada na casa, apenas o flagrante próprio e desde que tenha urgência. Segundo o ministro Sebastião Reis Júnior:
É certo que a prisão em flagrante delito, que é aquela realizada durante o cometimento do crime ou imediatamente após (CPP, artigo 302), autoriza a violação do domicílio (CF, artigo 5°, XI). Ocorre, porém, que como está em causa a garantia constitucional de inviolabilidade do domicílio, não é toda prisão em flagrante que pode ensejar a sua violação. Com efeito, embora o CPP, que é anterior à Constituição, preveja várias formas de flagrante (próprio, impróprio e presumido), a princípio, somente o flagrante próprio (CPP, artigo 302, I e II) é capaz de legitimar a ação policial ou ministerial sem mandado judicial. Assim, o flagrante impróprio e o presumido (CPP, artigo 302, III e IV) não podem ensejar tão grave violação à vida privada.
Como se sabe, há flagrante impróprio quando o agente é perseguido, logo após, por qualquer pessoa, em situação que faça presumir ser autor da infração. E existe flagrante presumido quando o agente, embora sem sofrer perseguição imediata, é encontrado, logo depois, com instrumentos, armas, objetos ou papéis que façam presumir ser ele autor da infração. Em suma, cumpre dar ao conceito legal de flagrante delito interpretação restritiva e conforme a Constituição, a fim de compatibilizá-lo com a garantia da inviolabilidade do domicílio e com os princípios da presunção de inocência (CF, artigo 5°, LVII), proporcionalidade e devido processo legal (CF, artigo 5°, LIV) [6].
Portanto, tanto o flagrante impróprio quanto o presumido não poderiam autorizar a devassa domiciliar, segundo entendimento baseado no conceito restritivo de flagrante delito, visando à proteção de direitos fundamentais. De fato, quanto ao flagrante presumido, aquele que não ocorre perseguição, mas decorre de um encontro posterior da Polícia com o suposto autor portando instrumentos, armas, objetos ou papéis que façam presumir ser ele autor da infração, não teria o condão de autorizar a entrada sem maiores diligências. Isso porque, uma vez ausente a perseguição, o apontamento imediato de autoria fica bem mais frágil e essa fragilidade não pode simplesmente autorizar a devassa domiciliar sem mandado judicial.
Não há patrulhamento ostensivo dentro das casas e, para encontrar o suspeito logo depois do crime com os objetos que façam presumir ser ele autor do crime, a polícia teria que, em um primeiro momento, diante da incerteza se o suspeito porta esses objetos, invadir a casa, para só então depois constatar todos os requisitos do flagrante ficto, já que não houve perseguição apta a apontar com mais certeza dados da autoria do crime. Nota-se, portanto que o flagrante ficto ou presumido, o que mais permite o distanciamento entre o momento da ocorrência do crime e a prisão do autor, possui uma subjetividade que o torna frágil para subsidiar a entrada na casa.
Isso porque, conforme letra da lei, no flagrante ficto, mesmo sendo encontrado logo depois do crime, se o autor não estiver de posse de instrumentos, armas, objetos ou papéis que façam presumir ser ele autor da infração, não estarão completos os requisitos desse flagrante. Além disso, para Aury Lopes Junior (2021, p.370):
“O primeiro requisito é que o agente seja ‘encontrado’. Fazendo uma interpretação sistemática em relação aos incisos anteriores, pode-se afirmar que esse ‘encontrado’ deve ser causal e não casual. É o encontrar de quem procurou, perseguiu e depois, perdendo o rastro, segue buscando o agente. Não se trata de um simples encontrar sem qualquer vinculação previamente estabelecida em relação ao delito.” [7]
Nesse sentido o flagrante presumido, para ser permissivo da entrada na casa, requer diligências para uma constatação objetiva da posse de objetos que façam presumir ser o suspeito autor do delito, constatação essa que deve ser feita pela polícia antes de entrar na casa, comprovada de preferência por câmeras e testemunhas. Nas palavras do ministro Edson Fachin:
“É certo que na hipótese de flagrante impróprio e ficto não se tem, por vezes, a visibilidade material do ato delituoso, tal como ocorre no flagrante próprio. Nada obstante perceba-se que, mesmo nessas hipóteses, o legislador não descuida de mencionar circunstâncias objetivas que possam indicar de forma palpável e materialmente aferível a existência do delito — ‘perseguição’ e ‘situação’ que faça presumir (inciso III)’ e ‘instrumentos, armas, objetos ou papéis que façam presumir (inciso IV)”. É dizer, a alusão à “perseguição’, ‘situação’ e ‘instrumentos’ denota o intuito de objetivação das causas ou circunstâncias que demonstram a existência do flagrante delito. Destoa, nessa linha de intelecção, admitir configurado o estado flagrancial com assento em ‘suspeitas’, ‘intuição’, ‘denúncias anônimas’, ou mesmo na ‘convicção íntima’ do policial que não possa ser corroborada por algum elemento que indique a visibilidade material das situações de flagrante.” [8]
Conclui-se que, no caso flagrante presumido, a polícia ostensiva não pode entrar na casa sem mandado judicial a menos que comprove de forma objetiva e prévia que o suspeito está, lá dentro, de posse de objetos que façam presumir ser ele o autor do crime, já que não houve perseguição prejudicando dados mais precisos ou, caso o morador consinta com a entrada. Porém a entrada será por óbvio permitida no caso do autor que, se escondendo em uma casa, ameaça os moradores forçando-os a manter silêncio quanto a sua presença, esperando o momento certo para fugir das rondas policiais. Nesse caso estará na verdade ocorrendo um flagrante próprio de outro crime, admitindo a entrada de imediato.
Por fim, cita-se como exemplo caso de um roubo cujo autor foge antes que a polícia chegue e as vítimas, confusas, não sabem passar características. Não havendo câmeras, também não houve perseguição, de modo que a polícia não tem ideia de quem seja o autor. Após alguns instantes chega informação de que um suspeito teria entrado em um prédio pulando o muro e teria se escondido em algum apartamento.
Dessa forma, devido à subjetividade do apontamento da autoria e a incerteza da posse de objetos que façam presumir a autoria, a Polícia não tem como invadir quaisquer desses apartamentos sob a alegação do flagrante ficto, devendo contar com a colaboração dos moradores para a averiguação ou, caso fundadas razões indiquem que o suspeito esteja em algum deles e não haja consentimento do morador na entrada, cercar o local e obter o mandado judicial para a entrada.
[3] LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de Processo Penal. 8. ed. Salvador: Juspodium, 2020, pág. 1034.
[4] AVENA, Norberto Cláudio Pâncaro. Processo Penal. 9. ed. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2017, pág. 642.
[5] STJ, REsp n. 1.983.504/RS, relator Ministro Rogério Schietti Cruz, Sexta Turma, julgado em 9/8/2022, DJe de 18/8/2022.
[6] STJ, RHC nº 175.009, ministro Sebastião Reis Júnior, decisão monocrática, DJe de 07/02/2023.
Leandro de Paula Carlos é oficial da Polícia Militar de Minas Gerais (PMMG), pós-graduado em Direito Penal e Processo Penal e em Direito Público e professor de Legislação Aplicada nos cursos de formação da PMMG.