Não poucas vezes nos confrontamos com decisões ou entendimentos diversos que expressam a ideia de que a decisão que inadmite o amicus curiae como interveniente em um processo é irrecorrível — ao menos essa tem sido a regra na maioria dos julgados. Muito porque a redação dada ao artigo 138 (CPC) é passível de mais de uma interpretação.
Os julgamentos constantes no AgInt REsp 1734471/SP [1] e AgInt MS 24246/DF [2] demonstram essa visão pragmática dos tribunais. Outros julgados irão sustentar uma visão concreta a depender da natureza objetiva ou subjetiva da demanda, consoante apresenta Rodrigo Leite, “o STF decidiu que a decisão que admite ou inadmite o amicus curiae é irrecorrível. Todavia, essa decisão foi tomada num processo subjetivo” [3]. O presente e sintetizado estudo visa transparecer por uma outra perspectiva a letra da lei no que tange ao assunto.
Sabe-se que o amicus curiae nada mais é do que a intervenção de terceiros no âmbito do processo. Terceiro interveniente é aquele que, na condição de alheio ao processo entre duas ou mais pessoas, solicita a participação no processo em razão de interesse jurídico ou corporativo no feito, atento também à especificidade da matéria e sua repercussão.
Nessa baila, a natureza do amicus curiae tende a divergir das demais espécies de intervenção de terceiros, haja vista não se destinar a defender a tese de uma das partes, ainda que os argumentos trazidos pelo amicus curiae possam, no final do julgamento, ter auxiliado a tese de uma delas, o que é natural. O amigo tem a função de ser fonte de informação do juízo, onde será possível buscar subsídios para solução de uma demanda complexa ou sobre assunto muito específico.
Por essa razão, Marinoni [4] delimita que desta importância decorrerão suas finalidades nos autos, “esses poderes variarão conforme a necessidade de esclarecimento do judiciário e conforme a possibilidade de subsídios a serem prestados pelo terceiro”. “Essas finalidades podem limitar-se à apresentação de memoriais ou informações, mas também podem envolver prerrogativas bem mais amplas, como a participação em prova pericial, o oferecimento de sustentação oral ou ainda o aporte de outras provas.” Trata-se de “amigo da corte” e não o “inimigo” desta.
Nery Júnior [5] assim conceitua:
Amicus Curiae. Expressão latina que, no vernáculo, significa amigo da corte, e dá nome ao instituto do direito interno anglo-americano que tem por função atribuir a uma personalidade ou a um órgão, que não seja parte no processo judicial, a faculdade de nele intervir para manifestar-se dando informações e opiniões destinadas a esclarecer o juízo ou o tribunal a respeito de questões de fato e de direito discutidas no processo, tudo em prol da boa administração da justiça.
Doravante, o Código de Processo Civil diz que “O juiz ou o relator, considerando a relevância da matéria, a especificidade do tema objeto da demanda ou a repercussão social da controvérsia, poderá, por decisão irrecorrível, de ofício, ou a requerimento das partes, ou de quem pretenda manifestar-se, solicitar ou admitir a participação de pessoa natural ou jurídica, órgão ou entidade especializada, com representatividade adequada, no prazo de 15 dias de sua intimação” [6].
Atentemo-nos que a decisão irrecorrível é a de solicitar/admitir o amigo da corte, e não aquela que nega seu ingresso nos autos do processo. Ora, o juiz ou relator […] poderá, por decisão irrecorrível […] solicitar ou admitir. Poderá, solicitar ou admitir […] por decisão irrecorrível […] a participação de pessoa natural ou jurídica. Veja-se precedente que chancela tal entendimento [7]:
“Ementa: AGRAVO DE INSTRUMENTO. AÇÃO DE MANUTENÇÃO DE POSSE. MEDIDA LIMINAR DEFERIDA. QUESTÃO ABORDADA EM RECURSO DE AGRAVO DE INSTRUMENTO INTERPOSTO E PENDENTE DE JULGAMENTO. PRINCÍPIO DA UNIRRECORRIBILIDADE. INTERVENÇÃO DE TERCEIRO (IRGA) COMO AMICUS CURIAE. A DECISÃO QUE ADMITE A PARTICIPAÇÃO DO IRGA COMO AMICUS CURIAE É IRRECORRÍVEL. CONSIDERANDO QUE O PRÓPRIO CAPUT DO ARTIGO 138 DO CPC VEDA A POSSIBILIDADE DE IMPUGNAÇÃO DA DECISÃO QUE ADMITE AMICUS CURIAE, NÃO HÁ QUE SE FALAR EM COGNOSCIBILIDADE DO RECURSO SOB EXAME COM BASE INTERPRETAÇÃO MITIGADA DO ART. 1.015 DO CPC ASSENTADA NO TEMA 988 DOS REPETIVOS DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. AGRAVO DE INSTRUMENTO NÃO CONHECIDO, EM DECISÃO MONOCRÁTICA.”
Não irrelevante, também cabe analisar o parágrafo §1º, que diz que a intervenção do amicus curiae não autoriza, por si só, a interposição de recursos, salvo embargos de declaração e da decisão que julgar o incidente de resolução de demandas repetitivas. A capacidade de embargar, tratada pelo legislador, não pode ser considerada quando da negativa de participação do amigo da corte, em verdade a possibilidade do embargo deste parágrafo já trabalha com a hipótese de ter sido admitido o participante.
Afere-se isso pela parte inicial de tal parágrafo, ao dizer que a intervenção de que trata o caput não implica alteração de competência nem autoriza recursos. Nada mais trouxe o legislador que não as competências do amicus curiae quando este for admitido nos autos, é a admissão que este se refere, caso contrário, trataria especificamente da inadmissão — que, aliás, só trata na parte dos recursos como se verá mais à frente. Não obstante, a razoabilidade dos embargos no cenário fático, segundo o artigo 1.022 do Código de Processo Civil [8].
As decisões tendem a não admitir determinados manejos no que tange ao amicus curiae, de certa forma restringindo uma participação que afinal de contas é tão relevante. Certo é que não se pode ter no ordenamento pátrio decisão insuscetível de recurso, sob pena de ferir o preceito constitucional da inafastabilidade de jurisdição, artigo 5º da Constituição [9].
Acredita-se que o mais acertado na decisão que indefere o pedido do amicus curiae é que caiba agravo de instrumento ou agravo interno, a lógica processual é atrativa para este lado, conforme se explicará, embora os tribunais (muitas vezes) não entendam desta maneira. Contra decisões interlocutórias de primeiro grau, o entendimento é pelo cabimento do art. 1.015, IX (CPC), vejamos: “Artigo 1.015. Cabe agravo de instrumento contra as decisões interlocutórias que versarem sobre: IX – admissão ou inadmissão de intervenção de terceiros” [10].
Se o amicus curiae está no Título III do Código de Processo Civil, que trata da intervenção de terceiros e, existe recurso contra decisão que inadmite (ou admite) a intervenção de terceiros, não há motivo plausível para o não cabimento desta medida no processo frente ao juízo de piso. É nesse viés que ensina Elpídio Donizetti [11] ao dizer que “levando em conta a especialidade do artigo 138, pode-se concluir que a irrecorribilidade recai tão somente sobre a decisão que solicita (o próprio juiz) ou admite (pedido formulado pelas ou pelo próprio amicus curiae); quanto à decisão que indefere o pedido de intervenção. Cabível é o agravo de instrumento”.
Já no que tange aos tribunais colegiados, observa-se perfeitamente atacável via agravo interno, pois “contra decisão proferida pelo relator caberá agravo interno para o respectivo órgão colegiado, observadas, quanto ao processamento, as regras do regimento interno do tribunal” [12]. Ocorre que, como dito, a jurisprudência simplesmente nega essa possibilidade exatamente pelo argumento da decisão que inadmite o amicus curiae ser irrecorrível e, a previsão especial da intervenção de terceiros não estabelecer tal hipótese. Por evidente, pois, o título que trata de recursos está disposto mais adiante dentro do próprio código processual civil. Trata-se de limitação, ao nosso ver, imoderada, haja vista criar empecilho à participação do amigo da corte que só tem a contribuir com a justiça num julgamento mais equânime possível.
Cita-se julgado do TRF-5 [13] que frisou muito bem o cabimento de agravo interno e tratou da (ir)recorribilidade da decisão que inadmitiu o amicus curiae:
“EMENTA: PROCESSUAL CIVIL E TRIBUTÁRIO. DECISÃO QUE INADMITE A INTERVENÇÃO DE ‘AMICUS CURIAE’. INAPLICABILIDADE DA REGRA DA IRRECORRIBILIDADE PREVISTA NO ARTIGO 138 CPC. AGRAVO INTERNO PROVIDO.
1) Agravo interno interposto contra decisão que não conheceu do agravo de instrumento, considerando-o inadmissível, nos termos do artigo 932, III, do CPC, sob o fundamento de ser irrecorrível a decisão que indefere o ingresso de amicus curiae no processo.
2) Não obstante os entendimentos em sentido contrário, revela-se ser cognoscível o agravo de instrumento, nos termos do artigo 1.015, inciso IX, do CPC (admissão ou inadmissão de intervenção de terceiros). O artigo 138 do CPC, que trata do tema, não prevê expressamente a impossibilidade de interposição de recurso no caso de indeferimento ao pleito de ingresso como amicus curiae, referindo-se somente à irrecorribilidade da solicitação e admissão.
3) Na verdade, caso o legislador quisesse que a decisão que indefere o requerimento de quem pretenda manifestar-se fosse irrecorrível, teria sido explícito, seja no caput do artigo 138 do CPC, seja em algum de seus parágrafos; portanto, não cabe ao Judiciário estender a irrecorribilidade (frise-se, comando restritivo do direito de acesso ao duplo grau de jurisdição) a hipótese não prevista na norma legal, sob pena de invadir seara estritamente legislativa.
4) Acerca da matéria, há na jurisprudência pátria dois entendimentos distintos, consoante evidenciado em trecho do voto do ministro Roberto Barroso: ‘Há dois entendimentos possíveis sobre o cabimento de recurso contra decisão que aprecia pedido de ingresso como amicus curiae: 1) o primeiro, no sentido da irrecorribilidade de tal decisão, em razão do teor literal do artigo7º, §2º, da Lei 9.868/1999 e do artigo 21, XVIII, do RI/STF; 2) o segundo, na linha capitaneada pelo ministro Celso de Mello, admitindo a interposição de recurso contra a decisão que indefere o ingresso como o amicus curiae, pelo próprio requerente que teve o pedido rejeitado (cf. RE 597.165 AgR, relator ministro Celso de Mello)’. (STF, RE 590415 AgR-segundo/SC, Tribunal Pleno, relator ministro Roberto Barroso, DJe de 29/05/2015).
5) Cumpre registrar que essa questão (recorribilidade da decisão que indefere pedido de intervenção na qualidade de amicus curiae) encontra-se, ainda, pendente de julgamento pelo plenário do Supremo Tribunal Federal no curso da ADI 3396/DF, relator ministro Celso de Melo.
6) Desse modo, sob o pálio da cautela e da prudência, predicados que sempre devem nortear a efetiva prestação da tutela jurisdicional e, com fundamento nos princípios constitucionais do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa (artigo 5º, LIV e LV, da CF/1988), mostra-se cabível a presente irresignação.
7) Agravo interno provido para conhecer do agravo de instrumento.
(PROCESSO: 08096465820194050000, AGRAVO DE INSTRUMENTO, DESEMBARGADOR FEDERAL FRANCISCO ROBERTO MACHADO, 1ª TURMA, JULGAMENTO: 30/01/2020).”
A sustentação aventada merece guarida, uma vez que, se de fato o legislador quisesse impedir a possibilidade de recorrer sobre o artigo 138 (CPC), iria constar previsão expressa no texto. Não podendo o poder judiciário criar hipótese absoluta de não cabimento de recurso. O entendimento de que a decisão que não admite a participação do amicus curiae é irrecorrível é posição ultrapassada com a qual não se pode concordar.
Em suma, é preciso que os tribunais afastem sua jurisprudência defensiva no que tange ao cabimento de recurso das decisões que inadmitem o amigo da corte, optando por interpretação mais abrangente do artigo 138 (CPC). Eventual restrição a postulação de recorrer é totalmente o avesso do que a Constituição ordena. O amigo da corte propende a ser uma ferramenta que auxilia na democratização dos processos e na prestação jurisdicional, seja a natureza da demanda objetiva, seja de natureza subjetiva.
Admitir recurso de sua inadmissão apenas em demandas objetivas é selecionar o direito, além de obstaculizar o acesso à justiça. Evidente que, o terceiro interveniente deverá demonstrar de maneira fundamentada seu interesse em contribuir ao feito, sob pena de desprestigiar a figura do amicus curiae no processo civil. Cremos que as interpretações em processos de intervenção na modalidade de amicus curiae devem ser, antes de tudo, não restritivas, com possibilidade do duplo grau de jurisdição das demandas para mudança do cenário atual.
[7] (Agravo de Instrumento, Nº 50772199120238217000, Décima Sétima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, relator: Ícaro Carvalho de Bem Osório, Julgado em: 28-03-2023).
[8] Artigo 1.022. Cabem embargos de declaração contra qualquer decisão judicial para: I – esclarecer obscuridade ou eliminar contradição; II – suprir omissão de ponto ou questão sobre o qual devia se pronunciar o juiz de ofício ou a requerimento; III – corrigir erro material.
Moisés Cláudio de Siqueira é advogado, procurador da Comissão de Prerrogativas da OAB/RS e pós-graduado em Direito Público e em Direito Penal e Processo Penal.