O contato precoce de crianças e adolescentes com conteúdo sexual é comprovadamente nocivo ao seu desenvolvimento psicossocial, mormente quando dissociado da devida orientação e educação compatíveis com sua idade. O desenvolvimento sexual saudável deve ser gradativo e informado, para que cada ser humano em desenvolvimento possa lidar adequadamente com seu amadurecimento físico, hormonal e psicológico.
Quando uma criança ou adolescente é assediada, exposta a contato com pornografia, induzida a “normalizar” comportamentos para os quais não está apropriadamente preparada e direcionada precocemente a interações sexuais reais ou simuladas, isso vai irremediavelmente transformá-la. Tal questão é abordada enfaticamente no Plano Nacional de Prevenção Primária do Risco Sexual Precoce e Gravidez na Adolescência do governo federal:
“A sexualidade é fator inerente ao ser humano, indissociável do processo de desenvolvimento e que não diz respeito somente à saúde, mas à integralidade do ser. O início prematuro da vida sexual provoca prejuízos ao desenvolvimento integral (físico, emocional, psicológico, social) da pessoa, aumenta os riscos de infecções sexualmente transmissíveis e de gravidez não planejada, além de, potencialmente, desencadear patologias psicológicas, emocionais e sociais”. (BRASIL, 2022, p. 03)
PEREIRA (2021) relata algumas das consequências mais comuns constatadas em crianças e adolescentes que sofrem esse tipo de abuso (com ou sem contato físico):
“O que se tem a dizer é que a vítima, em relação a qualquer tipo de abuso sexual em longo prazo, tem maior tendência a desenvolver quadros como ansiedade, transtornos de humor, distúrbios alimentares ou sexuais, comportamentos auto lesivos não suicidas e suicidas. Segundo Romaro e Capitão (2007), esse tipo de violência leva a perturbações na evolução psicológica, afetiva e sexual do adolescente. Como afirma Reposati (2011), outra consequência relevante é o risco de que esse abuso sexual sofrido na infância ou adolescência influencie no processo de amadurecimento da vítima, fazendo com que ela se torne, por sua vez, agora protagonista de novas violências devido ao fato de utilizar esse abuso como processo de aprendizagem e se comportar da mesma maneira que o seu predador”. (PEREIRA, 2021, p.13)
Diante da gravidade dos danos causado a bens jurídicos fundamentais e da absoluta prioridade na proteção a crianças e adolescentes determinada pelo artigo 227, caput, da Constituição Federal, urge a necessidade de analisarmos a proteção insuficiente conferida pelo ordenamento jurídico brasileiro contra a prática delituosa denominada de “Grooming” pela Internet.
“Grooming” é uma palavra de língua inglesa cujo significado original referia-se a arrumar, assear, preparar alguém ou alguma coisa. A partir do trabalho do FBI no início da década de 1970, o termo “grooming” passou a designar a sedução e aliciamento de crianças e adolescentes para fins sexuais. O uso da expressão “grooming” para essa finalidade é atribuído aos trabalhos do agente Ken Lanning e, atualmente, consta até mesmo como definição de verbete do Cambridge English-Portuguese Dictionary (https://dictionary.cambridge.org/pt/dicionario/ingles-portugues/grooming).
A internet, com a potencialização da comunicação sem fronteiras e o acesso por crianças e adolescentes sem um mínimo de educação digital, levou a um aumento exponencial da prática do “grooming”. Pedófilos e pornógrafos abordam diariamente inúmeras crianças e adolescentes por meio de aplicações da internet, em um procedimento meticuloso e pervertido para conseguir a prática de atos libidinosos. Tito de Moraes, citado por Machado (2021), traz as linhas gerais do que é a prática do “grooming” em meio cibernético:
“é a expressão inglesa usada para definir genericamente o processo utilizado por predadores sexuais na internet e que vai do contacto inicial à exploração sexual de crianças e jovens. Trata-se de um processo complexo, cuidadosamente individualizado, pacientemente desenvolvido através de contactos assíduos e regulares desenvolvidos ao longo do tempo e que pode envolver a lisonja, a simpatia, a oferta de presentes, dinheiro ou supostos trabalhos de modelo, mas também a chantagem e a intimidação” (MACHADO, 2021, posição 1167).
Inicialmente, o predador sexual cria contas em redes sociais e em jogos online interativos populares para abordar seus alvos. Muitas vezes, este tipo de criminoso usa avatares, fotos de terceiros e dados de identificação fictícios para criar perfis falsos, com idades próximas às de suas vítimas, facilitando a aproximação inicial. Nesse primeiro contato, o criminoso busca utilizar gostos comuns aos jovens e informações fornecidas pelas próprias vítimas em redes sociais (preferências musicais, escolas e cursos que já frequentaram, lugares favoritos, descontentamento com os pais etc.) para gerar empatia e criar um canal de comunicação.
A partir daí, o predador estabelece uma relação de amizade e confiança com a criança ou adolescente e obtém informações íntimas que possa utilizar como alavancagem. Gradativamente, o agente vai introduzindo assuntos sobre sexo com seu alvo, questionando o que a vítima já fez, aguçando sua curiosidade. É comum que o criminoso passe a enviar vídeos e fotos de pornografia para criar a ideia na vítima de que aquelas práticas são comuns. Apela para a vaidade e a busca por independência dos jovens, dizendo que eles são “mais maduros do que aparentam” e recriminando um suposto “moralismo” dos pais. Muitas vezes, convence a vítima de que estão “namorando” por meio da internet. Nesse momento, embora não percebam, as crianças ou adolescentes já sofreram danos. As vítimas já passaram a ter conhecimento enviesado sobre assuntos envolvendo sexualidade, irão olhar de maneira diferente colegas e outras crianças, terão sentimentos variados sem um suporte para lidar com eles, entre outras consequências.
Estabelecida uma conexão emocional e sedimentada a abordagem sexual, o predador passa a solicitar ou exigir que a criança ou adolescente lhe envie fotos ou vídeos de nudez e em situações pornográficas. Tais fotos e vídeos são adquiridos, armazenados e, não raro, compartilhados com pedófilos em fóruns e grupos especializados.
Daí em diante, o criminoso passa a praticar atos libidinosos com as vítimas em meio informático, seja por meio de videochamadas, seja por meio da gravação e envio de vídeos. As crianças e adolescentes são induzidas a se masturbarem perante a câmera, masturbarem outras pessoas e até mesmo praticarem sexo oral, vaginal ou anal para satisfazerem a concupiscência dos abusadores. Muitas vezes, os ofendidos sequer se dão conta de que estão sendo abusados ou das consequências de seus atos.
No Brasil, o “grooming” em si, independentemente da efetiva prática de ato libidinoso ou da aquisição de fotos e vídeos íntimos da vítima (que acarretam a prática de outros crimes), é penalmente tipificado no artigo 241-D do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA – Lei nº 8069/90):
“Artigo 241-D. Aliciar, assediar, instigar ou constranger, por qualquer meio de comunicação, criança, com o fim de com ela praticar ato libidinoso:
Pena – reclusão, de um a três anos, e multa.
Parágrafo único. Nas mesmas penas incorre quem:
I – facilita ou induz o acesso à criança de material contendo cena de sexo explícito ou pornográfica com o fim de com ela praticar ato libidinoso;
II – pratica as condutas descritas no caput deste artigo com o fim de induzir criança a se exibir de forma pornográfica ou sexualmente explícita”.
Tal crime foi introduzido no Estatuto da Criança e do Adolescente pela Lei Federal nº 11.829, de 25 de novembro de 2008, como produto da chamada CPI da Pedofilia. Embora seja louvável e importante a existência do referido crime, a redação do aludido artigo acabou trazendo uma “brecha” que acarreta impunidade para diversos predadores sexuais e permite a violação de bens jurídicos fundamentais de jovens sem a devida proteção do ordenamento penal.
Uma vez que o artigo 241-D do ECA prevê como conduta típica o assédio, instigação ou constrangimento a “criança”, só é possível punir o autor do “grooming” quando ele é voltado a pessoa de até 12 anos de idade incompletos, conforme definição do artigo 2º, caput, do mesmo diploma legal. Assim, não há consequência penal para o assédio de pessoas entre 12 anos completos e 18 anos de idade para fins sexuais.
Não sei dizer se houve um lapso do legislador ou se os parlamentares entenderam ser socialmente aceitável o assédio sexual a adolescentes por acreditarem que, nessa faixa etária, já haveria maturidade para lidarem com essa abordagem. Contudo, os adolescentes são vítimas constantes da prática do “grooming”, justamente por fatores inerentes a essa fase da vida, como explicam Silva e Veronese (2009):
“A escolha de adolescentes como vítimas se dá em razão de vários fatores, dentre eles: excessiva confiança demonstrada nesta faixa-etária, momento em que os adolescentes acreditam que nada acontecerá com eles, ao que se soma a necessidade de desafiar a autoridade parental, praticando atos que lhes pareçam transgressões; os adolescentes, apesar de tentarem aparentar esperteza, na realidade são ingênuos, o que os leva a ser facilmente influenciados por adultos e desconhecidos; têm necessidade de atenção e afeto; gostam de aventuras, e entrar em contato com pessoas estranhas pode lhes parecer desafiador; são impactados por processo de adultização precoce, o que os conduz à maior exposição na web, erotizando mensagens e revelando a sua imagem; muitos são provenientes de famílias desestruturadas, onde não encontram apoio familiar, o que impulsiona a sua busca por atenção no ciberespaço, os tornando mais vulneráveis aos contatos do abusador. A essas características, ofertadas por Lidchi (2008, p. 92), ainda podem ser acrescentadas as situações de dúvida e insegurança com relação à opção sexual, que leva muitos meninos e meninas a procurarem apoio nas comunidades sexuais e acabam se constituindo em presa fácil dos abusadores”. (SILVA & VERONESE, 2009)
Possivelmente o legislador não incluiu o adolescente no referido artifo 241-D por entender que, se a prática do ato libidinoso com maior de 14 (catorze) anos de idade não configura crime, não haveria como punir quem assedia uma pessoa nessa faixa etária para tal finalidade. Todavia, justamente pela definição do estupro de vulnerável do artigo 217-A do Código Penal, o artigo 241-D do ECA acabou gerando uma clara incongruência no ordenamento jurídico penal no que se refere ao adolescente entre 12 e 14 anos de idade.
Se o artigo 217-A estabeleceu a ilicitude e a presunção de violência na prática de atos libidinosos com pessoa menor de 14 anos de idade, justamente por entender que, nessa faixa de idade, não haveria maturidade psicológica para o consentimento e que poderiam ser acarretados danos no desenvolvimento futuro da vítima, a mesma presunção deveria ser estendida à prática do “grooming”.
O Superior Tribunal de Justiça pacificou, por meio da Súmula 593, que a presunção de violência na prática de atos libidinosos com menores de 14 anos de idade é absoluta, não havendo de se discutir a experiência sexual da vítima:
“SÚMULA 593. O crime de estupro de vulnerável se configura com a conjunção carnal ou prática de ato libidinoso com menor de 14 anos, sendo irrelevante eventual consentimento da vítima para a prática do ato, sua experiência sexual anterior ou existência de relacionamento amoroso com o agente”. (Súmula nº 593, Terceira Seção, julgado em 25/10/2017, DJe de 6/11/2017).
Ora, se o ordenamento jurídico entende que há presunção absoluta de violência na prática de ato libidinoso com jovem entre 12 e 14 anos de idade, pelo mesmo motivo haveria de se presumir violência no assédio, instigação ou constrangimento para fins sexuais em relação a esse mesmo jovem.
Não é raro que pais procurem a Polícia ou o Ministério Público relatando que seus filhos de 12 ou 13 anos de idade foram vítimas de “grooming” e que ficaram assustados com o conteúdo dos diálogos ou dos vídeos de pornografia enviados para aliciar as vítimas. Nenhum menino ou menina de 13 anos de idade deveria receber fotos de pênis em redes sociais ou conversar sobre praticar sexo anal com um adulto desconhecido. Não se trata de moralismo, mas de evitar que adolescentes sofram as consequências mencionadas no início desse artigo. Portanto, é preciso urgentemente aprimorar o artigo 241-D do ECA e torná-lo congruente com o que define o Código Penal, prevendo a punição ao “grooming” quando praticado contra menor de 14 anos de idade.
Referências
AMORIM, Flávia Silva Pinto; Mello, Cecília. Garantia do direito da criança e do adolescente contra a violência sexual, São Paulo, 02 mai. 2023. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2023-mai-02/mello-amorim-direito-crianca-violencia-sexual#author >. Acesso em: 09 ago. 2023.
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal: Parte Especial 4. 11ª edição. Saraiva, São Paulo, 2017.
BOND, Letycia. Crimes na Web contra crianças se modernizaram, dizem especialistas. Agência Brasil, São Paulo, 07 fev. 2023. Disponível em: <https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2023-02/crimes-na-web-contra-criancas-se-modernizaram-dizem-especialistas>. Acesso em: 30 mar. 2023.
BRASIL. Plano Nacional de Prevenção Primária do Risco Sexual Precoce e Gravidez na Adolescência. Presidência da República, 2022. Disponível em: <http://www.tjes.jus.br/wp-content/uploads/plano-nacional_camp_gov_fed.pdf> Acesso em: 07 ago. 2023
BURGESS, Ann Wolbert; HARTMAN, Carol. On the Origin of Grooming. Journal of Interpersonal Violence, 33 (1) 17-33, 2018. Disponível em: <https://calio.org/wp-content/uploads/2019/03/on-the-origin-of-grooming.pdf>. Acesso em: 20 ago. 2023.
MACHADO, Thiago José Ximenes. Cibercrime e o Crime no Mundo Informático: a especial vulnerabilidade das crianças e dos adolescentes. 1ª. edição, Editora Dialética, Belo Horizonte, 2021. e-book Kindle.
PEREIRA, Leda Paula Bernardi. O adolescente e o fenômeno Grooming: uma revisão sistemática. 2021. Disponível em:<https://repositorio.unifesp.br/xmlui/handle/11600/64935>. Acesso em: 20 ago. 2023.
SILVA, Rosane Leal da; VERONESE, Josiane Rose Petry. Os crimes sexuais contra crianças e adolescentes no ambiente virtual. Âmbito Jurídico, São Paulo, 01 nov. 2009. Disponível em: < https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-69/os-crimes-sexuais-contra-criancas-e-adolescentes-no-ambiente-virtual/ >. Acesso em: 22 ago. 2023.
Mauro da Fonseca Ellovitch é promotor de Justiça em Minas Gerais e coordenador regional das Promotorias de Defesa do Meio Ambiente da Bacia do Alto São Francisco.