Rogério Devisate: Princípios da legalidade e da não surpresa

A citação válida é elemento primordial de toda demanda. A lógica da segurança jurídica, da estabilidade das relações jurídico-processuais e da proteção contra eventuais abusos coincide com a inteligência do brocardo latino Citatio est fundamentum totius judicii.

Diante dos novéis precedentes do Superior Tribunal de Justiça (STJ), que serão adiante considerados, não podem prevalecer cegamente as interpretações no sentido de que não há nulidade sem prejuízo, pois casos há em que ocorre nulidade absoluta, perpétua e não passível de convalescimento, por não resistir ao cotejo com os planos da validade, da eficácia e da existência jurídica.

Aliás, é bom relembrar que tem natureza declaratória  e não constitutiva negativa  a pretensão deduzida em juízo em busca de provimento judicial nulificante que, aliás, naturalmente terá a mesma natureza.

Embora recente e do ano de 2015, o atual Código de Processo Civil sofreu particular substancial modificação no ano de 2021, com novel redação do artigo 246, para fixar que, preferencialmente, a citação far-se-á por meio eletrônico [1].

É importante registrar que o parágrafo primeiro daquele artigo estabelece a criação de cadastro nos sistemas de processo em autos eletrônicos (CPC, artigo 246, Parágrafo 1º) e que a União, os estados, o Distrito Federal e os municípios devam fazê-lo (CPC, artigo 246, parágrafo 2º), não obstante o artigo 247 seja claro ao determinar que as citações por meio eletrônico ou correio não se apliquem às pessoas jurídicas de direito público (CPC, artigo 247, III), regra que se reflete, também, na ambiência das intimações destas entidades e do Ministério Público, da Defensoria Pública e da Advocacia Pública (artigo 183, parte final, c/c artigo 270, Parágrafo Único).

Focando no objeto em análise, temos três considerandos a se dominar, sobre os quais falaremos:

1) um diz respeito à reserva legal e, como matéria processual, à necessidade de lei federal para cuidar da matéria;

2) outro diz respeito à distinção entre lei votada pelo parlamento e norma administrativa editada pelo Conselho Nacional de Justiça;

3) a última, ao sistema de garantias e dos princípios da legalidade e da não surpresa, para que haja segurança jurídica.

O STJ, em processo penal, já havia fixado a tese de que a autenticação do citando deveria ocorrer por três meios: o número do telefone, a confirmação por escrito e a fotografia, fazendo-o ao anular citação feita por meio de aplicativo, sem tal comprovação (STJ, 5ª Turma, HC 641877, relator ministro Ribeiro Dantas).[2]

Agora, em 8/8/2023, no julgamento de dois feitos cíveis, o posicionamento do STJ mais claro se mostra. Um deles consta em Notícias do STJ [3] de 28/8/2023 e isso nos mostra como o tema é atual e importante.

No julgamento do REsp nº 2.026.925 – SP, que tramitou pela 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça sob relatoria da prestigiosa ministra Nancy Andrigui, temos a seguinte Ementa: “PROCESSUAL CIVIL. EXECUÇÃO DE TÍTULO EXTRAJUDICIAL. CITAÇÃO DO EXECUTADO POR REDES SOCIAIS. COMUNICAÇÃO DE ATOS PROCESSUAIS POR APLICATIVOS DE MENSAGENS E DE RELAÇÕES SOCIAIS. DECISÃO E RESOLUÇÃO DO CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. EXISTÊNCIA DE NORMATIVOS LOCAIS DISCIPLINANDO A QUESTÃO DE MODO DESIGUAL. AUSÊNCIA DE AUTORIZAÇÃO LEGAL. LEI QUE DISPÕE APENAS SOBRE A COMUNICAÇÃO DE ATOS PROCESSUAIS POR CORREIO ELETRÔNICO (E-MAIL). INSEGURANÇA JURÍDICA. NECESSIDADE DE DISCIPLINA DA MATÉRIA POR LEI, ESTABELECENDO CRITÉRIOS, PROCEDIMENTOS E REQUISITOS ISONÔMICOS PARA OS JURISDICIONADOS. EXISTÊNCIA DE PROJETO DE LEI EM DEBATE NO PODER LEGISLATIVO. NULIDADE, COMO REGRA, DOS ATOS DE COMUNICAÇÃO POR APLICATIVOS DE MENSAGENS OU REDES SOCIAIS POR INOBSERVÂNCIA DA FORMA PRESCRITA EM LEI. PRINCÍPIO DA INSTRUMENTALIDADE DAS FORMAS. INAPLICABILIDADE. CONVALIDAÇÃO DE VÍCIOS EM ATOS PROCESSUAIS JÁ PRATICADOS. IMPOSSIBILIDADE DE VALIDAÇÃO PRÉVIA PARA A PRÁTICA DE ATOS DE FORMA DISTINTA DAQUELA PREVISTA EM LEI. DIFICULDADE OU IMPOSSIBILIDADE DE LOCALIZAÇÃO DO EXECUTADO. INDISPENSABILIDADE DA CITAÇÃO EDITALÍCIA”.

Naquele caso, afastada foi a possibilidade de sequer se debater o cabimento da pretendida citação por correio eletrônico, a uma por faltar norma específica e, a duas, por sequer se ter esgotado a possibilidade de se fazer a citação por edital.

No outro caso, também sob relatoria da eminente ministra Nancy Andrigui, a 3ª Turma do STJ julgou o REsp 2045633-RJ e, como consta da Ementa, decidiu pela LEI QUE DISPÕE APENAS SOBRE A COMUNICAÇÃO DE ATOS PROCESSUAIS POR CORREIO ELETRÔNICO (E-MAIL). INSEGURANÇA JURÍDICA. NECESSIDADE DE DISCIPLINA DA MATÉRIA POR LEI, ESTABELECENDO CRITÉRIOS, PROCEDIMENTOS E REQUISITOS ISONÔMICOS PARA OS JURISDICIONADOS. EXISTÊNCIA DE PROJETO DE LEI EM DEBATE NO PODER LEGISLATIVO. NULIDADE, COMO REGRA, DOS ATOS DE COMUNICAÇÃO POR APLICATIVOS DE MENSAGENS POR INOBSERVÂNCIA DA FORMA PRESCRITA EM LEI. NECESSIDADE DE EXAME DA QUESTÃO À LUZ DA TEORIA DAS NULIDADES PROCESSUAIS. CONVALIDAÇÃO DA NULIDADE DA CITAÇÃO EFETIVADA SEM A OBSERVÂNCIA DAS FORMALIDADES LEGAIS. IMPOSSIBILIDADE”.

Pela clareza e para não alongar a abordagem com interpretações, convém transcrever outra passagem: […] “3- A possibilidade de intimações ou de citações por intermédio de aplicativos de mensagens, de que é exemplo o WhatsApp, é questão que se encontra em exame e em debate há quase uma década e que ganhou ainda mais relevo depois de o CNJ ter aprovado a utilização dessa ferramenta tecnológica para a comunicação de atos processuais por ocasião do julgamento de procedimento de controle administrativo e, posteriormente, no contexto da pandemia causada pelo coronavírus, pelo artigo 8º da Resolução nº 354/2020. 4- Atualmente, há inúmeras portarias, instruções normativas e regulamentações internas em diversas Comarcas e Tribunais brasileiros, com diferentes e desiguais procedimentos e requisitos de validade dos atos de comunicação eletrônicos, tudo a indicar que: 1) a legislação existente atualmente não disciplina a matéria; e 2) é indispensável a edição de legislação federal que discipline a matéria, estabelecendo critérios, procedimentos e requisitos isonômicos e seguros para todos os jurisdicionados. 5- A Lei nº 14.195/2021, ao modificar o artigo 246 do CPC/15, a fim de disciplinar a possibilidade de citação por meio eletrônico, isto, pelo envio ao endereço eletrônico (e-mail) cadastrado pela parte, estabeleceu um detalhado procedimento de confirmação e de validação dos atos comunicados que, para sua efetiva implementação, pressupõe, inclusive, a pré-existência de um complexo banco de dados que reunirá os endereços eletrônicos das pessoas a serem citadas, e não contempla a prática de comunicação de atos por aplicativos de mensagens, matéria que é objeto do PLS nº 1.595/2020, em regular tramitação perante o Poder Legislativo. 6- A comunicação de atos processuais, intimações e citações, por aplicativos de mensagens, hoje, não possui nenhuma base ou autorização da legislação e não obedece às regras previstas na legislação atualmente existente para a prática dos referidos atos, de modo os atos processuais dessa forma comunicados são, em tese, nulos” [4].

Neste caso e à unanimidade, foi provido o recurso especial “para decretar a nulidade do processo desde a citação da recorrente, devendo ser renovado o ato citatório por oficial de justiça e pessoalmente, prejudicado o exame das demais questões ventiladas no recurso especial” [5].

A questão é nova e é fundamental que esses precedentes cíveis sejam conhecidos e considerados, não apenas por seus próprios atributos, mas, também, pelo altaneiro significado da segurança jurídica que tão importante é para o sistema jurídico e para os jurisdicionados e profissionais do direito.

Ademais, também importa considerar a altaneira relevância do tema, diante do valor que se lhes empresta a Recomendação nº 134, de 09/09/2022, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que dispõe sobre o tratamento dos precedentes no Direito brasileiro, aqui parcialmente reproduzida:

“DIRETRIZ DO CNJ: RECOMENDAÇÃO N. 134, DE 9 DE SETEMBRO DE 2022. Dispõe sobre o tratamento dos precedentes no Direito brasileiro.

Artigo 1º O sistema de precedentes representa uma nova concepção de jurisdição, em que o Poder Judiciário procura não apenas resolver de modo atomizado e repressivamente os conflitos já instaurados, mas se preocupa em fornecer, de modo mais estruturado e geral, respostas às controvérsias atuais, latentes e potenciais, de modo a propiciar a efetiva segurança jurídica.

[…]

Artigo 4º Recomenda-se aos magistrados que contribuam com o bom funcionamento do sistema de precedentes legalmente estabelecido, zelando pela uniformização das soluções dadas às questões controversas e observando e fazendo observar as teses fixadas pelos tribunais superiores e, na falta de precedentes e jurisprudência por parte destes, pelos respectivos tribunais regionais ou estaduais.

[…]

Artigo 10. Recomenda-se que haja menção expressa, na decisão, sobre as razões que levam à necessidade de afastamento ou ao acolhimento dos precedentes trazidos pelas partes (artigo 489, §1º, V e VI, do CPC/2015).

[…]

Artigo 14. omissis

§5º A indevida utilização do distinguishing constitui vício de fundamentação (artigo 489, § 1º, VI, do CPC/2015), o que pode ensejar a cassação da decisão” [6].

Nessa sistemática, cada vez mais os princípios da não surpresa e da confiança se consolidam como âncoras da estabilidade do sistema jurídico.

Para os credores, à primeira vista, os precedentes e a matéria podem soar como óbices à tão desejada agilidade, mas parecem atuar exatamente em sentido oposto, na medida em que afastam eventuais lacunas que poderiam fazer com que tudo demorasse mais tempo, desafiando eventuais pretensões em sede de ação rescisória.

Para os devedores, os precedentes só reforçam a utilidade da valorização do todo que é o sistema jurídico e como este se protege, diante de aspectos que possam gerar insegurança e instabilidade da ordem jurídica.

 


[1] CPC, artigo 246, com a redação que se lhe deu a Lei 14.195/2021: “artigo 246. A citação será feita preferencialmente por meio eletrônico, no prazo de até dois dias úteis, contado da decisão que a determinar, por meio dos endereços eletrônicos indicados pelo citando no banco de dados do Poder Judiciário, conforme regulamento do Conselho Nacional de Justiça”.

Rogério Reis Devisate é membro da Academia Brasileira de Letras Agrárias, da Academia Internacional de Direito e Ética, da Academia Fluminense de Letras, do Instituto Federalista e da
União Brasileira de Escritores, presidente da Comissão Nacional de Assuntos Fundiários da UBAU, membro da Comissão de Direito Agrário da OAB/RJ e do Ibap, autor de vários artigos e do livro Grilos e Gafanhotos Grilagem e coordenador da obra Regularização Fundiária: Experiências Regionais.

Consultor Júridico

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