Hurb e 123 Milhas: a necessidade de se manter os pés no chão

A disponibilização de produtos e serviços no mercado de consumo deve ser minuciosamente precedida de pesquisas e estudos que analisem a viabilidade do negócio e os riscos que lhe são inerentes. Antes de realizar ofertas, que muitas vezes são planejadas apenas mirando o presente, é importante que as práticas sejam pensadas para o futuro, especialmente nos casos em que a prestação do serviço ou entrega do produto será realizada em momento muito posterior à data de sua aquisição pelo consumidor. Por essa razão, estratégias de marketing e ofertas promocionais devem refletir situações factíveis, que serão efetivamente cumpridas em momento posterior, sob pena de o risco a ser assumido ser muito grande — e o prejuízo ainda maior. Os casos envolvendo as agências de turismo Hurb (antigo Hotel Urbano) e 123 Milhas ilustram situações de ofertas realizadas sem a necessária análise e reflexão, que causam prejuízos tanto para si quanto para os seus consumidores.

A pandemia da Covid-19 afetou sobremaneira o setor do turismo. Em meio à significativa redução da demanda por viagens domésticas e internacionais, a Hurb optou por utilizar modelo de negócios consubstanciado na oferta de pacotes promocionais com datas flexíveis, possibilitando aos consumidores que adquirissem passagens aéreas e hospedagens sem a necessidade de definir a data da viagem no momento da compra, e sim em momento futuro, desde que encontrados, quando do agendamento, voos e hotéis com tarifas promocionais. Em outros termos, o bilhete aéreo e a reserva da hospedagem adquiridos eram emitidos em data posterior à aquisição. A medida atraiu diversos viajantes e lhe permitiu atingir um volume bruto de mercadorias (GMV) de R$ 1,8 bilhões em 2020 e de R$ 1,9 bilhões em 2021 [1].

A partir da gradativa redução das restrições de viagens e dos riscos de transmissão da Covid-19, os consumidores passaram a agendar seus pacotes. Todavia, o cenário pós-pandemia se mostrou muito diferente daquele em que as vendas foram feitas. Em 2022, o preço médio das passagens aéreas registrou o maior valor na série histórica da Agência Nacional da Aviação Civil (Anac), chegando à quantia de R$ 645, o que corresponde a R$ 126 a mais do que o preço médio de 2019 (R$ 519) [2]. Também os preços das diárias de hotéis sofreram aumento significativo [3]. Ante a discrepância entre os valores recebidos de seus clientes e os preços de voos e hospedagem, a Hurb passou a enfrentar dificuldades no cumprimento das ofertas.

Como consequência, o número de reclamações dos consumidores postulando o cancelamento do contrato e reembolso dos valores, ou o simples cumprimento das ofertas, disparou. Após os requerimentos na plataforma consumidor.gov.br chegarem a 7.000 no primeiro trimestre de 2023, volume ainda maior que todo o ano de 2022 (12 mil) — que já era expressivo —, a Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon), vinculada ao Ministério da Justiça e Segurança Pública, determinou a abertura de processo administrativo sancionador contra a agência [4]. E, em maio, por entender que a modalidade de oferta não dá garantias suficientes aos consumidores, determinou a suspensão temporária da venda de novos pacotes com data flexíveis [5] da Hurb [6].

Assim como a mencionada agência de turismo, a 123 Milhas também passou a ofertar passagens e pacotes promocionais com datas flexíveis em meio à crise vivenciada pelo setor do turismo. O viajante, embora tenha de escolher a data da viagem no momento da aquisição do serviço, necessita estar disponível 24h antes e 24h depois da data escolhida, pois a marcação do voo e da hospedagem é realizada pela própria empresa dentro do período de disponibilidade indicado (destas 72h). Ou seja, não há emissão de bilhete de passagem ou reserva de hospedagem na data da compra.

Durante a pandemia, a empresa investiu fortemente no marketing visando divulgar de maneira ampla as suas ofertas, em especial seus pacotes promocionais com datas flexíveis. Foi a maior anunciante do país em 2021, com aporte de R$ 2,37 bilhões na compra de espaço publicitário, e o segundo maior anunciante do país em 2022, com aporte de R$ 1,28 bilhão [7]. E, tal qual a Hurb, a estratégia atraiu muitos consumidores.

Em virtude da dificuldade de cumprir as ofertas dos pacotes com datas flexíveis pelas mesmas razões da Hurb [8], a 123 Milhas, no dia 18 de agosto, comunicou a suspensão da emissão de passagens e pacotes da categoria Promo agendados para os meses de setembro a dezembro de 2023 [9]. Para além da decisão unilateral, que por si só frustra as legítimas expectativas dos consumidores, a empresa somente se comprometeu a oferecer vouchers acrescidos de correção monetária de 150% do CDI, para compra de quaisquer passagens, hotéis e pacotes na própria agência. Ou seja, não possibilita o cancelamento do contrato com a restituição integral dos valores pagos.

Da mesma forma que ocorreu com a Hurb, como era de se esperar, o número de reclamações de consumidores disparou. No site Reclame Aqui, nos últimos seis meses, já foram realizadas 20.133 reclamações contra a empresa [10]. Por seu turno, na plataforma consumidor.gov.br, foram registradas 7.410 reclamações no ano de 2023, sendo que o índice de solução é de apenas 67,3%, justificando que a nota de satisfação com o atendimento seja hoje correspondente a 2,6 de 5 [11].

Os números se justificam — e provavelmente irão aumentar — porque a alteração unilateral do contrato, subtraindo do consumidor a opção de restituição quantia paga e colocando-o em desvantagem exagerada, além de configurar uma cláusula abusiva (artigo 51, II, e IV, do CDC), viola o disposto no artigo 35 do Código de Defesa do Consumidor, o qual refere que, em caso de recusa de oferta, cabe ao consumidor, alternativamente e à sua livre escolha, (1) exigir o cumprimento forçado da obrigação, nos termos da oferta; (2) aceitar a prestação de serviço equivalente (o voucher); ou (3) rescindir o contrato, com direito à restituição de valores, monetariamente atualizados, além de perdas e danos [12]. No mais, em se tratando de passagem aérea, à luz do disposto no artigo 31, caput, da Resolução 400/2016 da Anac [13], o reembolso somente pode ser convertido em crédito para aquisição de nova passagem se o passageiro concordar com tal providência.

Diante da grande repercussão da questão, a Senacon já encaminhou um pedido de esclarecimentos e cogita, tal qual o fez com a Hurb, instaurar processo administrativo em face da 123 Milhas para o fim de proibir a venda dos pacotes promocionais, além de arbitrar multa ou estabelecer outras penalidades [14].

No dia 29 de agosto, após o ajuizamento de pelo menos 16,4 mil processos judiciais por consumidores, cujos valores envolvidos ultrapassam os R$ 200 milhões [15], a 123 Milhas entrou com pedido de recuperação judicial sob o argumento de que enfrenta crise financeira e que a suspensão dos pacotes promocionais afetou a sua credibilidade perante o mercado, reduzindo drasticamente o volume de vendas. A medida afeta os interesses dos seus clientes ao dificultar a restituição de valores pagos e reparação de eventuais danos, o que denota, mais uma vez, importantes falhas em toda a sua estratégia de vendas.

Os casos da Hurb e da 123 Milhas mostram ser imprescindível que os fornecedores disponibilizem no mercado de consumo serviços viáveis, que possam de fato ser cumpridos, realizando preliminarmente estudos sérios e comprometidos que permitam concluir que o negócio é de fato praticável e não prejudica os direitos dos consumidores. Inclusive, porque a oferta, que engloba a publicidade e informação suficientemente precisas, bem como quaisquer declarações de vontade manifestadas por escrito, vinculam o fornecedor, que está obrigado a cumpri-las, sob pena inclusive de execução específica (CDC, artigos 30, 48 e 84).

Em relação às agências Hurb e 123 Milhas, mesmo que tenha ocorrido uma mudança no cenário pós-pandemia comparativamente ao período em que grande parte dos pacotes promocionais foram vendidos, isto não é capaz de afastar a sua responsabilidade por danos causados aos seus clientes porque não configura hipótese de caso fortuito ou força maior, já que era previsível o aumento dos preços de hospedagens e passagens em decorrência da queda brusca na demanda por viagens, mormente em meio a uma crise de incertezas nos setores do turismo e aéreo.

Acrescente-se que a responsabilidade dos fornecedores se funda no risco-proveito, o que significa que, em virtude do proveito econômico obtido a partir da disponibilização do serviço ou produto no mercado de consumo (bônus), arcam com os riscos inerentes ao seu negócio (ônus). Aos fornecedores é vedado, portanto, colocar no mercado de consumo serviços que sabem ou que deveriam saber que têm alta probabilidade de não serem cumpridos no momento oportuno, e daí exsurge o seu dever de analisar previamente os riscos intrínsecos da sua atividade.

Para as empresas que querem decolar as suas vendas, portanto, vale o alerta: em caso de quaisquer dúvidas na viabilidade de um serviço, é imprescindível manter-se os pés no chão.

 


[3] Por exemplo, a rede hoteleira da Atlantica, a segunda maior do país, aumentou o valor das diárias em 2022, fechando o ano com faturamento de R$ 1,75 bilhão, 52% mais que no último ano pré-pandemia (SETTI, Rennan. Preços das diárias de hotéis vão subir mais em 2023, diz CEO da Atlantica. O Globo, São Paulo, 10 abr. 2023. Disponível em: https://oglobo.globo.com/blogs/capital/post/2023/04/precos-das-diarias-de-hoteis-vao-subir-mais-em-2023-diz-ceo-da-atlantica.ghtml. Acesso em 26 ago. 2023).

[12] Saliente-se que a decisão da 123 Milhas também pode violar o disposto no art. 12 da Resolução 400/2016 da Anac, o qual trata do prazo de antecedência mínima para a comunicação de alterações realizadas de forma programada, referindo que, se a informação ocorrer em menos de 72h de antecedência, devem ser oferecidas ao passageiro as alternativas de reacomodação e reembolso integral, cabendo a escolha ao passageiro.

Maria Luiza Baillo Targa é doutoranda e mestre em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), especialista em Direito do Consumidor pela Universidade de Coimbra, em Direito Francês e Europeu dos Contratos pela Université Savoie Mont Blanc, em Direito do Consumidor e Direitos Fundamentais pela UFRGS, em Direito Público pelo Centro Universitário de Brasília (UniCeub) e advogada sócia do RMMG Advogados.

Consultor Júridico

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