A execução antecipada da pena no caso de pessoas condenadas por crimes contra a vida, que passou a ser admitida pelo Superior Tribunal de Justiça, vai de encontro ao que decidiu o Supremo Tribunal Federal quando vetou a prisão após condenação em segunda instância.
A opinião é de criminalistas consultados pela revista eletrônica Consultor Jurídico, diante da perplexa situação em vigência no Brasil.
De um lado, a Constituição Federal diz que ninguém será culpado até o trânsito em julgado da condenação. Do outro, o Código de Processo Penal prevê a execução provisória da condenação pelo Júri, caso a pena seja igual ou superior a 15 anos.
A regra foi inserida no artigo 492, inciso I, alínea “e” do CPP pelo pacote “anticrime” (Lei 13.964/2019) em um claro backlash legislativo — uma reação do Congresso Nacional ao julgamento em que o STF alterou sua claudicante jurisprudência para, enfim, vetar a prisão em segunda instância.
Curiosamente, é graças ao STF que o princípio da presunção de inocência não tem prevalecido quando a condenação se dá por crime contra a vida. A corte tem derrubado acórdãos do STJ que afastaram a aplicação do artigo 492, inciso I, alínea “e” do CPP.
Ao não aplicar a norma, segundo o Supremo, o STJ viola a regra da Constituição Federal segundo a qual somente pelo voto da maioria absoluta dos membros de seu órgão especial poderão os tribunais declarar a inconstitucionalidade de lei.
Esses casos foram devolvidos ao STJ com duas opções: aplicar a lei ou enviar o caso à Corte Especial, onde seria instaurado um incidente de inconstitucionalidade. A segunda solução foi considerada inviável pelas turmas criminais do Tribunal da Cidadania.
Isso porque o próprio STF está prestes a definir a constitucionalidade da execução antecipada da condenação pelo Tribunal do Júri. Já havia maioria formada para permiti-la — com uma divergência quanto à necessidade de observar o mínimo de 15 anos de pena, como previu o pacote “anticrime” — quando o ministro Gilmar Mendes pediu destaque para reiniciar o julgamento no Plenário presencial.
Foi assim, por exemplo, que a 5ª Turma deferiu, na terça-feira (12/9), a execução provisória da pena dos homens condenados pela “chacina de Unaí”, em que fiscais do trabalho foram assassinados durante fiscalização em fazendas da cidade mineira, em 2004.
Princípios diversos
Para o criminalista e constitucionalista Fernando Augusto Fernandes, para fins de presunção de inocência, não há diferença entre sentença transitada em julgado em crimes comuns e crimes contra a vida. Assim, aguardar que a condenação se torne definitiva não enfraquece em nada a soberania da decisão do júri popular.
Em sua opinião há uma inversão de valores quando se discute o combate à quantidade de homicídios no Brasil. O número de mortes não decorre da falta de imediato cumprimento de pena, mas da incapacidade de investigação eficiente desses delitos. Assim, classifica a execução antecipada da pena é uma tentativa de criar uma falsa sensação de segurança.
“É preciso focar no que é realmente importa e não em manobras jurisprudenciais que criam, pelo Supremo Tribunal Federal, uma forma de política criminal que vai no mesmo caminho de deputados que pretendem mudar a realidade somente com mudanças legislativas punitivistas”, critica.
Ele se diz esperançoso que, com o início do julgamento do STF sobre o tema, no Plenário presencial, os ministros não cometam o erro de consolidar a jurisprudência sobre presunção de inocência de uma forma em casos comuns e de outra em relação ao Júri. “Isso sim geraria insegurança jurídica”, diz.
André Damiani e Vinícius Fochi, do Damiani Sociedade de Advogados, concordam. André aponta que o princípio da soberania dos vereditos não é absoluto e deve se adequar aos demais preceitos que regem o processo penal. E no caso de conflito com outro princípio constitucional, a resolução deve observar a proporcionalidade.
“Neste cenário, diante dos princípios sopesados, deve prevalecer o da presunção de inocência, sob pena de cometer-se uma das mais severas injustiças, que é a antecipação de uma pena antes do trânsito em julgado”, opina o advogado.
Segundo Vinícius Fochi, a insegurança jurídica será gerada por uma eventual decisão do STF que autorize a prisão antecipada após condenação pelo júri. “Seja no procedimento do júri, seja em qualquer outro, o que deve prevalecer, também em respeito ao preceito da isonomia, é a presunção de inocência”, afirma.
Que conflito?
Já para o criminalista Marcelo Leal, sequer há como se falar em prevalência entre soberania do júri e a presunção de inocência, pois são princípios que não conflitam.
O primeiro indica que a decisão do tribunal popular não pode ser revista ou contrariada, mesmo por juízes togados. Já o segundo oferece a garantia de que ninguém será considerado culpado, e, portanto, não sofrer os efeitos de uma decisão condenatória até o seu trânsito em julgado.
“Exatamente por não enxergar esta relação é que não vejo enfraquecimento da soberania do júri nem incompatibilidade com a necessidade constitucional de se aguardar o trânsito em julgado para a execução de sua decisão”, destaca.
“Aliás, também não vejo impedimento de que o réu possa ser preso após o julgamento pelo tribunal do júri, desde que exista alguma razão de cautelaridade e a decisão seja devidamente fundamentada”, acrescenta.
Em julho de 2023, a ConJur publicou a opinião de juristas no sentido de que a soberania do júri não pode mesmo se sobrepor à presunção de inocência. Assim, pena imposta pelos jurados só deveria ser executada após o trânsito em julgado, como ocorre em todas as condenações penais.
REsp 1.973.397
HC 737.749