Discute-se a limitação da taxa de juros do chamado crédito rotativo. Trata-se do crédito conferido pelos bancos aos consumidores que não quitam suas dívidas de cartão de crédito. A razão: as extorsivas taxas de juros e a necessidade de proteger o consumidor contra o superendividamento. Em julho, por exemplo, a taxa anual do crédito rotativo passou de 437% para 445,7%, segundo informação do Banco Central. Faz sentido.
Por outro lado, porém, os (poucos) grandes bancos do mercado nacional terão perdas importantes. Quem, afinal, não gostaria de seguir cobrando juros desse patamar? Por conta disso, num debate com pouca transparência, exigem compensações aos reguladores. Uma delas chama a atenção e tem sido pouco discutida. Pleiteia-se a extinção, oneração ou limitação do chamado parcelado sem juros (ou parcelado lojista).
O que é o parcelado sem juros? Trata-se do modelo de operação de venda com cartão de crédito em que o vendedor financia o consumidor ao permitir o pagamento de forma diferida no tempo (prestações mensais) pelo mesmo valor nominal da venda à vista. Por exemplo: o lojista aceita receber R$ 100, que cobraria à vista, em cinco parcelas mensais de R$ 20.
Quem ganha com esse tipo de operação? O consumidor e o lojista. O consumidor ganha porque consegue alongar o seu prazo de pagamento. O lojista embute seu custo financeiro na modalidade de pagamento e permite ao consumidor uma forma de crédito bastante usual (e barata) no mercado brasileiro. Já o lojista ganha porque tem a possibilidade de ampliar suas vendas e, conforme sua necessidade financeira, antecipar seus recebíveis do cartão junto a credenciadoras, instituições financeiras ou outras entidades (por exemplo, Fundo de Investimento em Direitos Creditórios — FIDC) a taxas bastante inferiores às praticadas no crédito rotativo.
O problema é quem perde com isso: os bancos. Quando o lojista embute seus custos financeiros no seu próprio negócio (inclusive por meio da antecipação de recebíveis), esvazia-se a demanda por serviços de financiamento bancários, cujas taxas são mais altas. Por conta disso é que se pretende a referida compensação.
Deixando de lado a opacidade do processo de definição das novas regras (grave, “per se”), a medida não pode ser adotada. Ilicitamente, ela promove perdas para o consumidor e para os comerciantes (notadamente os pequenos), reforçando a concentração do setor financeiro nacional, sem resolver o problema do superendividamento. Explico.
Em primeiro lugar, não convence a tese de que a regulação do parcelado sem juros seria capaz de resolver o superendividamento dos brasileiros. Essa situação — naturalmente relevante — pode ser enfrentada por meios potencialmente mais adequados e eficazes, em especial pelo investimento em educação financeira e informação. Além disso, segundo dados da Associação Brasileira das Empresas de Cartões de Crédito e Serviços (Abecs), o crédito concedido para pessoa física não configura a principal modalidade de crédito que justifica o endividamento das famílias.
Uma alegada preocupação com transparência igualmente não convence. Diz-se que o cliente não teria visibilidade, no momento da compra, de qual o custo final e total incluído no parcelamento sem juros. Ocorre que, paradoxalmente, devem surgir outros problemas de publicidade: o consumidor não saberá que o novo custo será um ganho para os bancos, o qual tende a ser superior àquele incidente hoje em dia no parcelado sem juros. Isso por uma razão concorrencial: no mercado do parcelado sem juros a competição é muito maior, porque envolve os próprios lojistas, que financiam para conquistar clientes. Ora, isso não se pode dizer do mercado de financiamento bancário, notoriamente concentrado. O tiro, portanto, sairia pela culatra.
A verdade é que é possível pensar em alternativas regulatórias aptas a alcançar os objetivos do regulador sem a necessidade de intervenção tão restritiva da atuação dos agentes privados. Por exemplo: instrumentos de regulação de informação. Essa é uma realidade presente no próprio sistema financeiro, tal como ocorreu com resoluções do Conselho Monetário Nacional (CMN) que impuseram nos últimos anos deveres de divulgação de informações sobre os custos efetivos totais aos consumidores de serviços bancários, operações de crédito e de câmbio. Enfim. Os custos de se limitar o parcelado lojista superam (em muito) seus alegados benefícios.
Por tudo isso, tem-se, do ponto de vista jurídico, que a medida compensatória não cumpre o dever de proporcionalidade, inerente ao devido processo legal e ao Estado de Direito. Sacrifica-se (inadequada, desnecessária e desproporcionalmente) a liberdade dos lojistas e dos consumidores, criando-se demanda para serviços bancários concentrados, com discurso que não se justifica.
Agride-se, assim, a proteção ao consumidor (artigo 5º, XXXII e artigo 170, IV CRFB), a livre-iniciativa (artigo 1º, IV e artigo 170, CRFB) e a livre concorrência (artigo 170, IV, CRFB), bem como se configura potencial hipótese de abuso de poder regulatório, tendo em vista que a estratégia: 1 – favorece grupos econômicos (os bancos), em detrimento dos demais concorrentes; 2 – dificulta o desenvolvimento de novos modelos de negócio; 3 -aumenta custos de transação, porque força a intermediação bancária; e 4 – cria demanda compulsória por serviço (artigo 4º, I, IV, V e VI, Lei 13.874/2019).
Tudo isso num setor que deve ser regido pela lógica da “promoção da competição”, do “atendimento às necessidades dos usuários finais, em especial liberdade de escolha”, devendo-se, ainda, desenvolver “a capacidade de inovação e a diversidade dos modelos de negócios das instituições de pagamento e dos arranjos de pagamento” (artigo 7º, Lei nº 12.865/2013). Isso tudo sem falar na potencial (e indevida) validação do regulador de uma possível estratégia de atuação coordenada, que pretende transferir soluções sujeitas a alta pressão competitiva para um setor conhecidamente concentrado e com elevados custos sociais. O risco de violação à ordem econômica é real. Sublinhe-se: a oferta de parcelamento sem juros por lojistas fortalece a competição. Não faz sentido enfraquecê-lo para fortalecer um setor já dominante, que conta, ainda, com maiores possibilidades de criar produtos e chegar a seus clientes.
Enfim. Ainda que haja boas razões para se limitarem os juros do rotativo, deve-se ter o cuidado de não criar outros problemas. A medida beneficiaria apenas os grandes bancos, criando concentração e menos competição. Que as boas intenções não sirvam de disfarce para a imposição de prejuízos ilícitos aos consumidores e aos pequenos comerciantes.
*o artigo foi publicado originalmente na Folha de S.Paulo
Gustavo Binenbojm é procurador do estado do Rio de Janeiro e professor titular da Faculdade de Direito da Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro).