Diálogos entre integrantes da extinta “lava jato” mostram que os procuradores queriam pressionar e chantagear o Tribunal de Contas da União para que a corte aceitasse propostas sobre acordos de leniência.
Em fevereiro de 2017, Deltan Dallagnol, então coordenador da “lava jato” de Curitiba, afirmou que os procuradores deveriam “endurecer” o discurso em reuniões com ministros do TCU que tratavam de uma proposta para que lenientes não fossem declarados inidôneos e tivessem preferência no ressarcimento de recursos.
Segundo Dallagnol, os procuradores deveriam mostrar “com cautela” aos ministros que alguns integrantes da corte de contas estavam sob investigação e poderiam ter a situação “agravada” caso houvesse novos acordos de leniência. O diálogo foi revelado pela revista Veja.
“Não acreditamos muito na boa intenção, e cremos que talvez devamos endurecer um pouco o discurso, ainda que com cautela. Há outro aspecto muito particular que precisa ser considerado e é de potencial conflito de interesses, dado que já muitos agentes públicos inclusive ministros do TCU que estão sob investigação no caso”, disse Dallagnol — os diálogos são aqui reproduzidos em sua grafia original.
Em seguida, ele enviou considerações atribuídas a Orlando Martello, que também integrava a “lava jato”:
“Talvez seja o caso de guardar esse argumento na manga e só abordá-lo se não houver boa receptividade os outros argumentos. Porém, se a sua estratégia for outra, a de deixá-los acuados. Então talvez fosse o caso de dizer que algumas empresas queriam alegar a suspeição de alguns ministros, com o que não concordamos. Também falar de modo sutil isto”.
Segundo Dallagnol, o “mais osso duro de roer” era o ministro Bruno Dantas, hoje presidente do TCU. “O mais osso duro de roer em relação à nossa ideia de benefício de ordem e outras coisas… para ele, esbarrariam na lei.”
Outras conversas
Esse não é o único diálogo que mostra que os integrantes do consórcio de Curitiba estavam tentando, à base de chantagem, conseguir o apoio do TCU. Em outubro de 2017, segundo uma das conversas à qual a revista eletrônica Consultur Jurídico teve acesso, um procurador identificado apenas como Paulo narrou uma reunião com o então presidente da corte de contas, Raimundo Carreiro.
Na ocasião, a “lava jato” buscava que o TCU aderisse ao acordo de leniência da J&F, mas não conseguiu. “O Presidente do TCU e equipe disseram que a iniciativa é bem-vinda, mas eles talvez tenham dificuldade formal de aderir ao acordo ou participar do aditamento, considerando o papel revisor do TCU nos acordos firmados pela CGU. Afirmaram respeitar nosso acordo, mas apresentaram essa dificuldade”, disse o procurador.
Bruno Dantas também foi citado nesses diálogos. Em um deles, de 15 de junho de 2018, Dallagnol falou a um colega que faria, “a pedido da Justiça Federal”, uma nota “dura” e “agressiva” contra Dantas por críticas feitas pelo ministro ao ex-juiz Sergio Moro em entrevista concedida ao jornal O Globo.
Na ocasião, Dantas criticou a decisão de Moro de barrar a utilização de provas colhidas na “lava jato” por órgãos do governo em acordos de leniência. O ministro chamou a atitude de “carteirada”.
“Se estamos falando de cooperação, não pode haver espaço para uma carteirada de um dos atores que está na mesa de discussão. Alguém pretender dizer: ‘Olha, esse elemento de prova é meu e ninguém pode usar’. Não é assim que se age no Estado de Direito”, disse Dantas na entrevista.
“To fazendo nota sobre manifestação do Bruno Dantas. A pedido da JF. E será dura. Será agressiva”, disse Dallagnol ao procurador identificado como Paulo.
Leniências
Os diálogos foram revelados uma semana depois de o TCU ter identificado irregularidades na destinação de valores obtidos por meio de acordos de leniência e determinado que os montantes passem a ser recolhidos, em até 60 dias, ao Fundo de Direitos Difusos, vinculado ao Ministério da Justiça.
A corte de contas chegou à conclusão de que a autodenominada força-tarefa da “lava jato” movimentou mais de R$ 22 bilhões, dinheiro proveniente de leniências e colaborações premiadas, sem que houvesse qualquer preocupação com transparência.
Segundo o TCU, promotores e procuradores, entre eles os da “lava jato”, atuaram e continuam atuando como gestores públicos de dinheiro obtido por meio de instrumentos negociais, mas sem qualquer responsabilidade administrativa, dever de prestar contas ou transparência.
O ministro Bruno Dantas lembrou a tentativa da “lava jato” de Curitiba de criar um fundo bilionário com dinheiro da Petrobras, a ser administrado pelos próprios procuradores, para investir no que chamavam de “projetos de combate à corrupção”. Também disse que o TCU deve frear a transferência de patrimônio do Estado para viabilizar interesses de agentes públicos.
“A grande verdade é que nós temos promotores e procuradores espalhados pelo Brasil que viraram verdadeiros gestores públicos. E o pior: sem a responsabilidade que os gestores públicos têm. O que está acontecendo é a transferência de patrimônio do Estado brasileiro para a gestão de agentes da lei. É disso que nós estamos tratando nesta tarde”, afirmou ele no julgamento que determinou que os valores sejam destinados ao Fundo de Direitos Difusos.