A Lei 13.964/19 oxigenou sobremaneira o sistema processual penal brasileiro. Através da mitigação do princípio da obrigatoriedade da ação penal, estabeleceu-se a possibilidade de um acordo pré-processual entre o autor do fato delituoso e o Ministério Público, com a fixação de condições que, se cumpridas, acarretam a extinção da punibilidade.
Foi criada uma espécie de pena antecipada, mais branda e sem os efeitos da condenação. Em síntese, a lei permite o entabulamento de acordo em crimes cometidos sem violência ou grave ameaça e cuja pena mínima não ultrapasse quatro anos. O benefício também não é permitido em casos de violência doméstica ou contra a mulher e quando o órgão ministerial considerar o acordo inadequado ao caso concreto.
No presente escrito, examinaremos a possibilidade de oferecimento do ANPP em um dos crimes contra a dignidade sexual: a importunação sexual (215-A do Código Penal), cuja lei comina penas de 1 a 5 anos de reclusão.
Embora a maior parte da doutrina entenda não ser cabível o benefício nesse tipo penal, nossa conclusão é diversa.
Há pelo menos três fortes argumentos contrários ao oferecimento da medida despenalizadora nesse tipo de crime. Vejamos:
1 – A monetização da violência contra a mulher
Há vozes no sentido de que o ANPP, em crimes sexuais, permitiria a monetização da violência contra a mulher — como outrora se sucedia.
Até 2006, a maioria dos casos de violência doméstica era de competência dos Juizados Especiais Criminais, e lá eram ofertadas transações penais em forma de prestação pecuniária — o que hoje é vedado por lei, com entendimento jurisprudencial majoritário nesse sentido. Naquela época, predominava a sensação de que as agressões à mulher eram “pagas” com cestas básicas. Nesse estado de coisas, havia quem chegasse ao extremo de entender o pagamento de prestação pecuniária ou indenização como uma forma de prostituição indireta das vítimas.
A preocupação de impedir a monetização da violência contra a mulher realmente vai ao encontro da legislação mais recente, que trouxe o recrudescimento no tratamento de crimes contra grupos vulneráveis. Além de efeitos práticos, as alterações legislativas carregam o simbolismo de que o legislador pretende punições mais rigorosas nessas hipóteses. Isso impediria a incidência do ANPP aos casos do artigo 215-A do CP.
Todavia, esse problema pode ser facilmente contornado com imposição de resposta penal diversa, como a prestação de serviço comunitário.
Além disso, a inovação do artigo 28-A do CPP permite a imediata reparação da vítima, por anos relegada a segundo plano no Sistema de Justiça Criminal. Os espaços de consenso permitem que as partes envolvidas retomem o protagonismo que lhes é devido e, eventualmente, convencionem acordos vantajosos — e não necessariamente do ponto de vista econômico, diga-se.
O desenfreado e inapropriado protagonismo do Estado em procedimento judiciais subtrai, sob um manto de aparente proteção e cuidado com as vítimas, o direito destas de serem ouvidas e participarem ativamente do rito.
A mencionada preponderância dos desígnios estatais deve ser reconhecida nesses casos, de uma vez por todas, como ultrapassada, tendo em vista que não raro as vítimas, notadamente aquelas de casos de menor gravidade, anseiam por uma resposta penal rápida e por acolhimento — o que não necessariamente é representado pela aplicação de pena privativa de liberdade do suposto autor do fato.
Outrossim, ter a certeza de efetiva e imediata resposta penal, seja pela prestação de serviços à comunidade, seja pelo pagamento de pecúnia, é, em grande parte das hipóteses, mais produtivo — para todos os envolvidos — do que a espera indefinida por uma pretensa condenação.
Visto por esse ângulo, o ANPP se mostra bastante adequado aos casos do artigo 215-A do CP.
2 – Crime praticado com violência moral
Outro argumento contrário ao oferecimento do ANPP ao crime previsto no artigo 215-A do CP seria a impossibilidade de incidência do benefício às condutas cometidas com violência ou grave ameaça. Nesse sentido, o artigo 215-A conteria “violência moral”. Frise-se que não se trata aqui de grave ameaça, conceito diverso e que levaria a outra tipificação penal (artigo 213 do CP).
O conceito de violência moral, muito próximo ao conceito de violência psicológica, não é estranho ao direito penal legislado. Há definição de ambos na própria lei Maria da Penha, em seu artigo 7º, incisos II e V. Além disso, tipificou-se recentemente a violência psicológica contra a mulher (artigo 147-B do CP).
Com base nisso, o artigo 215-A do CP seria classificado como crime cometido com violência, não real, mas moral ou psicológica, e, por isso, estaria afastado o cabimento do ANPP.
Este entendimento nos parece inadequado e aqui subjaz um perigo: a interpretação extensiva da norma penal, que, como se sabe, não pode ser realizada, jamais, em prejuízo do acusado.
Admitir que o artigo 28-A do CPP, quando faz menção à violência e grave ameaça, abarca, também, as violências moral e psicológica seria um erro hermenêutico.
A questão da violência como impeditivo da medida despenalizadora, portanto, deve ser analisada de forma estrita e objetiva, pois se trata, repise-se, de benefício a ser oferecido ao autor de crime. Nesse sentido, não nos soa plausível permitir o alargamento das condições legais que vedam seu oferecimento, sem alteração legislativa nesse sentido, por ofensa patente ao princípio da legalidade.
3 – Crime de gênero e a vedação do artigo 28-A, § 2º, inciso IV, do CPP
Alfim, o argumento mais significativo, de fato, é a vedação contida no artigo 28-A do CPP aos crimes praticados contra a mulher em razão do sexo feminino.
O tipo descrito no artigo 215-A do CP é crime comum, não exige condição especial do agente. Pode ser praticado por qualquer um e também contra qualquer um, sem distinção de gênero.
Inobstante, é inegável que as mulheres são as vítimas mais recorrentes desse tipo penal. Em seu nascedouro, o delito partiu de pressão popular para a penalização mais gravosa aos rotineiros ataques sofridos por mulheres nos transportes públicos. Ganhou repercussão, à época da elaboração da lei, casos em que homens ejaculavam em mulheres em vagões e ônibus.
Não por outro motivo, a maioria da doutrina sustenta a inaplicabilidade de medidas despenalizadoras em casos análogos — cujas vítimas são mulheres —, em virtude das vedações contidas na Lei 11.340/06 e no próprio artigo 28-A do Código de Processo Penal.
Especificamente no que concerne aos crimes praticados em contexto de violência doméstica, o tema é pacífico e sumulado [1].
Em paralelo, mesmo fora das hipóteses abarcadas pelo contexto de violência doméstica e familiar contra a mulher, haveria óbice à possibilidade de oferecimento do benefício em crimes sexuais. Isso porque o próprio artigo 28-A, em seu § 2º, inciso IV, preceitua que o ANPP não se aplica aos nos crimes “praticados contra a mulher por razões da condição de sexo feminino”.
Argumenta-se que apesar de crime comum, o tipo penal em questão teria sido criado com o objetivo de aumentar a proteção às mulheres, razão pela qual seria sempre perpetrado “em razão da condição do sexo feminino”. Nesse cenário, a questão do gênero se imporia, impedindo a medida despenalizadora.
Conquanto reconheça-se sua robustez, o argumento não se sustenta.
Como já dito, o artigo 215-A do Código Penal é crime comum. Embora se observe mais vítimas mulheres na prática diária, não se afigura sempre como crime de gênero, que é aquele abarcado pela vedação insculpida no artigo 28-A do CPP.
Mas afinal, o que é crime de gênero?
A definição de gênero é multidisciplinar e dificílima. De forma resumida, seria um conjunto de características e papéis definidos social e culturalmente para o sexo masculino e feminino.
No campo jurídico, o conceito de gênero se desenvolveu em virtude da desigualdade material e formal entre homens e mulheres. Estas frequentemente eram tratadas como seres naturalmente inferiores, inclusive na legislação. O conceito de gênero, no Direito, nasceu atrelado ao de discriminação e violência de gênero, para reconhecer a existência de uma relação de poder desigual, na qual homens exerciam superioridade sobre as mulheres em razão de seus papéis sociais
No campo legislado, a definição de discriminação de gênero surge na Convenção Sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra a Mulher, adotada pela Assembleia Geral das Nações Unidas, em 1979 e ratificada pelo Brasil em 1984. Esse documento internacional, além do conceito de discriminação de gênero, prevê medidas a serem adotadas pelos Estados signatários.
Posteriormente, Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher, conhecida como Convenção de Belém do Pará, adotada pelo Brasil em 1994, estabelece parâmetros do conceito de violência de gênero.
Por fim, no âmbito interno, a lei Maria da Penha repete os conceitos já existentes nos acordos internacionais sobre a violência e discriminação de gênero. E a Lei 13.104/15, nessa esteira, cria a figura do feminicídio e descreve exatamente o especial menosprezo pelo feminino que configura a violência de gênero.
Nesse ponto, uma observação importante é justamente que o termo “femicide“, criado pela pesquisadora norte-americana Diane E. H. Russell, na década de 70, visava estabelecer uma distinção entre um homicídio, tido como crime neutro, seja de homem ou de mulher, daquelas condutas em que o autor agia impelido por um especial sentimento de superioridade em relação ao sexo feminino — um sentimento de que a vítima, por ser mulher, merecia o crime. Em suas palavras, femicídio seria “the killing of females by males because they are female” [2].
Essa contextualização histórica é de todo conveniente e nos faz entender que a legislação pátria sobre o tema adotou o conceito de violência de gênero acima explicitado e bastante claro nas palavras de Diane Russell.
Assim, passando à análise específica do artigo 215-A do Código Penal, o tipo penal deve ser sempre classificado como crime de gênero? Seria o tipo, a priori e em presunção absoluta, necessariamente, relacionado ao gênero quando praticados contra mulher?
Entendemos que não.
Nos parece haver uma clara distinção entre o dolo dos crimes sexuais — a satisfação da lascívia — e o dolo específico ou a especial circunstância do crime de gênero.
No último caso, é preciso haver um especial sentimento, por parte do autor do delito, de superioridade e exercício de um poder que ele entende legítimo sobre a mulher.
É bem verdade que todo crime implica num exercício de poder, ainda que momentâneo, do autor sobre a vítima imediata. No crime de gênero, contudo, essa relação de poder é mais profunda e baseada num sentimento de superioridade do gênero masculino sobre o feminino.
Ora, os delitos contra a liberdade sexual sempre terão um componente relacionado ao gênero — isso tem a ver com a predileção sexual do autor do crime. Mas não entendemos que eles tragam, por si só, de forma absoluta e imutável, desapreço sobre a condição do gênero feminino.
Considerando que legislação brasileira estabeleceu parâmetros para a verificação objetiva da violência de gênero, acreditamos que somente quando presentes as parâmetros estabelecidos nos artigos 7° da Lei 11.340/06 ou do 121, § 2º-A, do Código Penal, será possível identificar o crime de gênero.
Mais do que isso, a lei exige uma condição volitiva especial, qual seja: menosprezo pela condição feminina. Quando identificada, incide a vedação contida no artigo 28-A, § 2º, inciso IV, do CPP. Do contrário, não há que se falar na impossibilidade de entabulamento do acordo.
Dito de outra forma e observando crimes de outra natureza, nos quais, inclusive, as mulheres constituem grande parte das vítimas — roubo, v.g. —, notório se torna o fato de que a condição feminina pode facilitar a escolha da vítima. Contudo, não se pode afirmar, igualmente, que são escolhidas com base na ideia ou sentimento de que “merecem o crime”, que é o intento daquele que pratica o crime “em razão da condição feminina”. Somente este último pratica um crime de gênero.
Conclusão
Assim, apesar do sem-número de argumentos no sentido do nāo cabimento do ANPP às hipóteses do artigo 215-A do Código Penal, acreditamos não ser esse o entendimento agasalhado pela melhor hermenêutica. Sustentamos que o art 215-A do Código Penal nāo é, necessariamente, crime praticado contra a mulher em razão de sua condição feminina. Por essa razão, perfeitamente cabível o ANPP
Erminia Manso é promotora de Justiça no Rio de Janeiro, com atuação há mais de 20 anos na área criminal, e mestre em Direito (LLM) por Monterrey College of Law.
Eduardo Benfica é advogado, membro da Comissão de Política Criminal e Penitenciária (CPCP) da OAB-RJ, pós-graduando em Ciências Penais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) e em Direito Penal Econômico pelo Instituto de Direito Penal Económico e Europeu (IDPEE), da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, e membro associado do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim).