Há poucas semanas, um advogado fez temerária defesa de Thiago de Assis Mathar, morador de São José do Rio Preto (SP), que foi condenado por cinco crimes, incluindo tentativa de golpe de Estado, a pretexto das ações perpetradas no levante de 8 de janeiro de 2023 [1].
A natureza e classificação dos delitos, bem como a dosimetria da pena estão sendo largamente debatidas por juristas de proa. Dessa forma, esta publicação vai abordar outra questão: a pobreza ética e jurídica vistas na alegação oral.
O professor Ives Gandra da Silva Martins, que advoga com eminente destaque desde 1958, enumerou dez princípios indispensáveis à advocacia. Esses preceitos foram organizados no “Decálogo do Advogado” [2], cujo mandamento n.o 2 está assim redigido:
“(…) O advogado é o deflagrador das soluções. Sê conciliador, sem transigência de princípios, e batalhador, sem tréguas, nem leviandade. Qualquer questão encerra-se apenas quando transitada em julgado e, até que isto ocorra, o constituinte espera de seu procurador dedicação sem limites e fronteiras.”
Trocando em miúdos, o advogado deve comprometer-se com a causa, podendo usar todos os argumentos — nos limites da ética — que melhor aproveitem os interesses que aceitou patrocinar. Convém, então, refletir demoradamente sobre os trabalhos que lhe confiam, sob pena de comprometer o sucesso de tais empresas. O causídico tem um lado, que não é o seu, mas o do cliente, razão pela qual a defesa, na observação romântica de Dirand e Joly, é uma divindade insaciável que “exige todas as disponibilidades” [3].
Ocorre que o advogado [4], ao agir sem brio nem sacrifício, fez o contrário do que manda o nobre compromisso. Poupando-se do cansativo trabalho de “vestir” o processo, cedeu às enunciações políticas que não tinham vez naquele tribunal. Foi um erro de cálculo que prejudicou a liberdade do ser humano que dele tudo esperava. Pior: foi um erro em discurso que não se repete, não se corrige, pois não admite emendas. Fala-se uma vez para nunca mais.
Com a oratória congestionada, ele atrapalhou-se ao confundir O Príncipe, de Nicolau Maquiavel, com O Pequeno Príncipe, de Antoine de Saint-Exupéry, durante sustentação oral na Tribuna do Palácio do Supremo Tribunal Federal, em 14/9/2023. Apesar dos quatro séculos que separam as obras, o tal senhor afirmou o seguinte:
“Esse julgamento está sendo jurídico, de Aécio e agora Thiago Mathar, ou esse julgamento está sendo político, a fim de incriminar mais alguém? A fim de um objetivo do qual [sic] nós não conseguimos entender? Porque parece que estão sendo usados, como disse o Pequeno Príncipe: ‘Os fins justificam os meios’ (…). Maquiavel. Os fins justificam os meios”.
Como se lê, o doutor tropeçou em chavão que, aliás, sequer consta na obra do gênio florentino. O conjunto de equívocos impressionantes chamou a atenção da imprensa, senão também da comunidade jurídica, que reagiu ao caso de variadas formas. De fato, a imprecisão de conceitos e a deficiência vernacular saltaram aos olhos, ganhando inclusive foros acadêmicos.
Não é para menos, dado que a advocacia, apesar das regulações normativas [5], é uma fascinante batalha pela conquista de mentes e corações. Assim dizendo, trata-se de uma disputa geralmente sutil que usa uma arma de aparência inofensiva: a palavra. E a palavra, como símbolo da linguagem, é a carne do pensamento. Com efeito, não existe pensamento sem articulação de palavras e sentidos. Se a responsabilidade do escritor se concentra na escolha dos vocábulos, a do jurista não é diferente, já que um, tal como o outro, é escravo do que diz [6].
Ora bem, segundo a tradição, espera-se do defensor constituído algumas capacidades sem as quais o exercício da profissão torna-se impraticável, a saber: a ciência intérmina do seu idioma, cuja fluência deve manifestar-se tanto na escrita quanto na arte de argumentar em público; e os imperativos de habilidade, para realizar tarefas práticas, que servem a coisa chamada Direito.
Por anos sem medida, isso foi tudo que houve. Na Idade Média, por exemplo, a educação das artes liberais, concentradas primeiro no trivium, representava a chave do saber. Deste modo, a lógica, a gramática e a retórica conduziam o orador, o ouvinte, o escritor e o leitor ao uso correto e eficaz da linguagem. Ou seja, as disciplinas ditas superiores, associadas entre si, forneciam o maior grau de consciência das atividades intransitivas [7], de acordo com as três vias da mente. O próprio intelecto, no que tange às operações mentais, era aperfeiçoado pelas virtudes teóricas e práticas.
Já recentemente, a deficiência dos “especialistas” chegou a nível alarmante, revelando uma epidemia de ignorância nos balcões forenses. Como a gralha-azul enterra o pinhão, também parece que sepultamos nossa dignidade superior.
Não por acaso Hery Waldir, movido por ideias bruscas, dessas que confundem bravura com estupidez, subiu àquela renomada Tribuna e apelou a referências de erudição latina sem conhecê-las. Nem o crucifixo de Ceschiatti, suspenso no mármore bege-bahia de Athos Bulcão, nem a presença do mais alto colégio de justiça do país foram suficientes para demovê-lo das más ideias. “Quem mal lê, mal ouve, mal fala, mal vê”, escreveu Monteiro Lobato [8], que foi promotor público em Taubaté e Areias [9] antes de educar gerações com seus livros.
Sem dúvidas, há problemas seriíssimos na extensão da jurisdição constitucional brasileira e nas arguições políticas de certos ministros do STF, os quais fazem as vezes de legislador positivo ao ir além do que a própria Constituição lhes determina. Nada obstante o jurista deve conservar a liturgia do poder [10], inclusive para redarguir os sectarismos modernos. Seja dito de passagem que tais cerimônias sempre tiveram o propósito de afastar interesses subjacentes em prol da verdade e da justiça. Afinal, os que falam em juízo também são cultores da paz e intérpretes normativos. Sem decoro e equidade, não há triunfo do império da lei sobre as forças da vontade.
Pondo em termos simples, o alheamento de conveniências pessoais é obrigação basilar na presença dos juízes, dos guardas da lei, dos árbitros da Constituição. Não pela dignidade destes, mas pelos deveres éticos que cada advogado consignou. Se a excelência judicial cessou de crescer, deve-se à parcela dos profissionais que, enfronhados em ideologias deformadas, ignoram o seu verdadeiro mister.
Atualmente vigora um grande incentivo para que todos escancarem as portas de suas loucuras. O bacharel, porém, feito coruja entre pardais, deve conservar a maneira fidalga, como se lhe dependurasse uma medalha de competência no peito. Por motivo de correção e modéstia, sua operosidade e experiência hão de ser tudo. Quando muito, agirá conforme os protetores da ordem [11], sem, no entanto, transformar tribunais, cartórios, salas de aula e outras repartições públicas em teatros de guerra.
Em peroração, vale destacar novo trecho de Evandro Lins e Silva [12]:
“O advogado que tem verdadeiro sentimento de sua missão emociona-se a cada novo julgamento. Vede o exemplo dos grandes advogados de todos os tempos, cada qual reagindo a seu modo à comoção do início da defesa. Mentem os que dizem não ter medo nessa hora, ou o fazem por pudor humano, receio de parecerem fracos. Ninguém ouviu grande defesa sem a vibração, o calor, o entusiasmo, o arrebatamento do advogado. Defesa sem vigor, sem dedicação ardente, sem sentimento, é defesa sem vida, fria, fadada ao insucesso, defesa de perdedor de causas.”
Só assim o advogado — tratando o caso de cada cliente como se fosse o seu próprio [13] — conquistará o espírito do legendário El Cid, sendo enfim “capaz de humilhar reis e dar de beber a leprosos”. Autorizado pelas circunstâncias, encerro com o Conselheiro Rui Barbosa, que grafou estes períodos de ouro em verdadeira obra-prima da eloquência judiciária [14], lembrando a todos que buscam a vida forense uma lição imortal:
“Legalidade e liberdade são as tábuas da vocação do advogado. Nelas se encerra, para ele, a síntese de todos os mandamentos. Não desertar a justiça, nem cortejá-la. Não lhe faltar com a fidelidade, nem lhe recusar o conselho. Não transfugir da legalidade para a violência, nem trocar a ordem pela anarquia. Não antepor os poderosos aos desvalidos, nem recusar patrocínio a estes contra aqueles. Não servir sem independência à justiça, nem quebrar da verdade ante o poder. Não colaborar em perseguições ou atentados, nem pleitear pela iniqüidade ou imoralidade. Não se subtrair à defesa das causas impopulares, nem à das perigosas, quando justas. Onde for apurável um grão, que seja, de verdadeiro direito, não regatear ao atribulado o consolo do amparo judicial. Não proceder, nas consultas, senão com imparcialidade real do juiz nas sentenças. Não fazer da banca balcão, ou da ciência mercatura. Não ser baixo com os grandes, nem arrogante com os miseráveis. Servir aos opulentos com altivez e aos indigentes com caridade. Amar a pátria, estremecer o próximo, guardar fé em Deus, na verdade e no bem.”
Italo Godinho é pós-graduado em História da Cidade do Rio de Janeiro pela Faculdade Metropolitana São Carlos (Famesc), jornalista e assessor jurídico da Procuradoria Geral do Estado do Rio de Janeiro (PGE-RJ).