Guilherme Nascimento: Lex mercatoria e insolvência transnacional

A expressão nova lex mercatoria nem sempre é utilizada para se referir ao mesmo fenômeno, de modo que não se demonstra incomum a imprecisão da utilização desse termo. Na antiguidade, em razão da insurgência do comércio internacional, foi necessário encontrar um corpo de leis para regular essas atividades, uma vez que, localmente, não era mais possível solver as situações complexas apresentadas, razão pela qual a comunidade mercantil desenvolveu seu próprio conjunto de leis, este mais adaptado às suas necessidades, como por exemplo a chamada Lex Rhodia, um conjunto de leis marítimas utilizado por gregos e romanos entre os séculos 3 e 2 a.C. [1].

No estabelecimento de uma linha do tempo da lex mercatoria pela antiguidade, insta salientar que não se finda na Antiga Grécia. Em consonância com um dos maiores doutrinadores do tema, pioneiro na elaboração das teorias da “Nova Lex Mercatoria“, o teórico Berthold Goldman atribuiu ao ius gentium romano — direito aplicado aos estrangeiros — o título de “ilustre precursor” da lex mercatoria [2].

À época, na Antiga Roma, o ius civile era o regime oficialmente adotado, que consentia na sua aplicação envolvendo apenas cidadãos romanos, não sendo levado em consideração o local de onde o contrato havia sido celebrado. Nesta fenda, caso um cidadão romano celebrasse um acordo com um não-cidadão, tal relação contratual não estaria protegida pelo direito romano, baseando-se somente na boa-fé das partes [3].

Adiante nesta timeline, imperioso salientar que a Alta Idade Média teria sido o ponto de partida da lex mercatoria, o que ocorreu, após o desaparecimento do Império Romano e com o surgimento das cidades — burgos —, sendo as feiras cruciais para a criação, desenvolvimento e universalização do ius mercatorum medieval, tanto em relação a à criação de suas regras como na solução de suas disputas [4].

A lex mercatoria no período medieval se trata, majoritariamente, à revitalização do comércio na Europa a partir do século 10, com vários fatores ensejando a volta da comercialização, como as cruzadas realizadas pela Igreja Católica e da fundação de cidades pelos mercadores, que, no futuro, seriam as bases para o comércio propriamente dito. Com esse desenvolvimento, as antigas leis mercantis gregas e romanas já não seriam mais aptas às novas necessidades.

Na Inglaterra, no século 17, o uso da lex mercatoria foi aos poucos sendo mitigado naquele país com o avanço da Common Law. Nesse período de decadência a lex mercatoria passou a ser tratada como costume e prática comercial, a ser provada, caso a caso, nas disputas comerciais solvidas pela Common Law, “to the satisfaction of twelve reasonable and ignorant jurors[5].

Em seguida, com a ascensão do Estado Nacional na Europa Continental, a lex mercatoria gradativamente perdeu espaço para as legislações estatais, que, consequentemente, foram positivando os usos e costumes utilizados nas relações do comércio, desta forma dando fim à velha lex mercatoria e fazendo emergir os grandes códigos do século 19.

Observe-se que o direito comercial, historicamente, sempre tendeu à universalização, no sentido de superar limites territoriais. Todavia, quando se trata sobre comércio internacional, é indiscutível a afirmação de que todo desenvolvimento, em razão de toda negociação, é feito de maneira acelerada.

Com isso, pode-se declarar que as legislações nacionais logo se tornaram inadequadas para atender às necessidades dos comerciantes, o que, consequentemente, fez com que houvesse a necessidade de se reconhecer os instrumentos e as estruturas da lex mercatoria.

Marrella ressalta que o Protocolo de Genebra de 1923 relativo às convenções de arbitragem foi o primeiro passo de um longo caminho que, pela Convenção de Nova Iorque sobre o Reconhecimento e a Execução de Laudos Arbitrais Estrangeiros, de 1958, permitiu gradualmente o renascimento da lex mercatoria [6].

Isto posto, após percorrer seu período de declínio devido ao processo de grandes codificações estatais, surgiu-se uma “nova” lex mercatoria, objetivando regular o comércio internacional, como um conjunto de costumes e de regras com poder normativo independente das legislações nacionais.

lIndiscutivelmente, no contexto de globalização mundial, não há de se olvidar em discorrer a respeito das organizações internacionais. Essas instituições, que são criadas por Estados soberanos e regidas por meio de tratados, buscam através da cooperação a melhoria das condições econômicas, políticas e sociais dos associados, atuando cooperativamente para buscar avanços e solver conflitos.

Sob os auspícios da Comissão das Nações Unidas para o Direito Comercial Internacional (Uncitral), por exemplo, foram elaboradas a Lei-Modelo de Arbitragem Comercial Internacional de 1958, soft law [7] e a Lei-Modelo de Insolvências Transfronteiriças de 1997 que será objeto de debate alhures.

No tocante a essa matéria, Amaral argumenta que os usos e costumes da lex mercatoria somente podem existir com a validação e regulação do Estado, assim se vê:

“Ninguém duvida da importância representada pelos usos e costumes para o comércio internacional. Não podemos, todavia, considerá-los integrantes de um novo direito anacional por faltar-lhe legitimidade. Tanto que tais usos e costumes somente podem existir se o Estado lhes reconhecer a validade. Do confronto entre normas provenientes da lex mercatoria e o direito estatal, este sempre irá prevalecer. A lex mercatoria não pode existir fora de um ordenamento jurídico que lhe sirva de suporte. A arbitragem internacional, seu principal veículo de difusão, não pode estar alheia ao sistema estatal, seja como estrutura organizada, seja como norma aplicável” [8].

Assim, é indubitável que, como um tipo de direito transnacional, a nova lex mercatoria é resultado direto da atuação de uma multiplicidade de atores, tanto produtores quanto destinatários das regras, contudo, tais matérias, no prisma jurídico atual, urge a necessidade de ser positivada através de um ordenamento jurídico para que se ateste a sua validade.

É inegável que, hodiernamente, as atividades comerciais e empresariais cruzaram todas as fronteiras territoriais estabelecidas. Frente a toda essa constante internacionalização e interdependência das relações globais, complexas estruturas societárias localizadas em diferentes jurisdições exercem influências econômicas e políticas sobre as relações comerciais e os países em que atuam.

A insolvência de um empresário é um fato que muitas vezes se torna inevitável, pela realidade turbulenta dessas empresas que se tornam incapazes de assegurar o cumprimento de suas obrigações. A questão é o que fazer quando a insolvência gera reflexos além das fronteiras de um país.

Duas teorias são as principais observadas no tratamento da insolvência transnacional, segundo as lições de Trajano de Miranda Valverde [9], quais sejam: territorialismo e universalismo.

Contudo, o sistema do territorialismo possui uma grande problemática consistente na pluralidade de tratamentos jurídicos, o que poderia resultar no risco de tratamento distinto entre credores situados em diferentes países, aliado ao fato de que a arrecadação de bens ser feita de modo não coordenado, o que aumenta os custos processuais.

Com essas dificuldades em vista, surgiu a corrente do universalismo, na qual o conjunto de ativos e passivos de um mesmo devedor, independentemente de onde estejam localizados, deve ser avaliado por uma Corte única, sob uma única legislação, a do domicílio principal do devedor (Center of Main Interest) [10]. Entretanto, esta vertente também não é isenta de críticas. Há duas dificuldades principais: 1) a mensuração do local do referido centro de interesses do devedor e 2) tratamento diverso ao credor local sujeito a processo de insolvência estrangeiro pela razão acarretada da adoção de jurisdição diversa.

Com a finalidade de regular e disciplinar essas complexas relações jurídicas envolvendo as insolvências transnacionais, a Uncitral propôs uma Lei-Modelo sobre insolvências transfronteiriças em 1997, com o objetivo de orientar a elaboração de leis locais.

Nesta fenda, em 2005, o poder Legislativo brasileiro deu início a uma nova fase ao direito concursal brasileiro, publicando a Lei de Recuperação de Empresas e Falências (LRF), passou a regular a recuperação judicial e a extrajudicial de empresas, assim como a falência.

Faz-se imprescindível destacar suas inovações, alterando conceitos e termos jurídicos, extinguindo a concordata e a continuação dos negócios pelo falido, além de introduzir a recuperação judicial e a extrajudicial de empresas, modificando radicalmente o sistema falimentar até então vigente, sendo regido pelo principal princípio de preservação da empresa.

Entretanto, insta salientar que tal inovação se demonstrou deveras comedida. Em consonância ao ensinamento de Mazzuoli [11]:

A Lei n. 11.101/05 não disciplinou, em qualquer dispositivo, os efeitos da falência e da recuperação operadas no exterior, desconsiderando por completo os efeitos da internacionalização das relações empresarias e, assim, perdendo enorme oportunidade de regular internamente o tema.”

Com isso, era premente a atualização da legislação brasileira para o fim de regular a falência e a recuperação transnacional de modo eficaz e à luz do sistema universal falimentar e recuperacional.

Destarte, visando a atualização da LRF, fora publicada a Lei n. 14.112/2020, incrementando o sistema de insolvência empresarial brasileiro, fornecendo instrumental adequado para que o ordenamento jurídico avance.

Dessa forma, urge trazer de volta à tona a Lei-Modelo sobre insolvências transfronteiriças proposta pela Uncitral no ano de 1997, que, a partir deste momento, passou a ser consagrada em grande parte na alteração legislativa da Lei nº 11.101/2005.

No que se refere à Lei-Modelo, o professor Márcio Guimarães realça com precisão que:

“Como foro natural de discussões e coordenação da temática, a Uncitral editou em 1997 a “Legislação Modelo sobre Insolvência Transnacional” – denominada lei modelo –, recomendando aos países membros que adequassem suas respectivas legislações nacionais, especificamente no tema da falência internacional aos objetivos de modernização e eficiência propostos pela Uncitral. Por ser uma recomendação, de caráter não vinculativo, os países podem ou não incorporá-la a seus ordenamentos jurídicos internos, com ou sem alterações. O objetivo da lei modelo é se encaixar como parte integrante dos ordenamentos jurídicos, além de servir como guia para adoção por cada ordenamento jurídico local” [12].

O documento oficial publicado pela Uncitral esclarece o propósito, a importância da disciplina para o comércio internacional e os elementos jurídicos principais para os casos de insolvência transnacional [13].

Como leciona Mazzuoli [14], esta nova lei, estabelece, sob o princípio da primazia das normas internacionais sobre o direito interno, que se houver conflito entre as disposições nacionais e as obrigações assumidas pelo Brasil por meio de tratados internacionais, deve prevalecer o que for internacionalmente pactuado, versado especificamente em seu artigo 167-A, §3º.

Como apontado pelos ilustres doutrinadores Salomão e Penalva [15], foi salutar a incorporação da Lei-Modelo de Insolvência ao ordenamento jurídico brasileiro pela Lei nº 14.112/2020, pois a uniformização da legislação brasileira às melhores práticas internacionais é o grande objetivo da adoção da Lei-Modelo, o que tende a melhorar o ambiente de negócios no Brasil.

Com isso, a intenção do legislador foi acolher um modelo de universalismo modificado ou mitigado, em que processos distintos tramitam autonomamente, conjugado com mecanismos diretos de cooperação entre os juízos competentes.

 


[1] TRAKMAN, Leon E. The Evolution of The Law Merchant: Our Commercial Heritage. Apud. COSTA, Cynara de Barros. “A verdadeira lex mercatoria: o direito além do Estado. Tese (Mestrado em Direito) – Faculdade de Direito, Universidade Federal de Pernambuco. Pernambuco: 2011, p. 16.

Guilherme Eduardo Nascimento é advogado associado do Grupo ERS, graduado em Direito pela UFMT e em Comércio Exterior pela Uniasselvi, especialista em Direito do Agronegócio e em Direito Empresarial com foco em reestruturação empresarial e agronegócio e membro da Comissão de Recuperação Judicial e Falências da OAB-MT.

Consultor Júridico

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