A equidade nos honorários da sucumbência

A advocacia é uma profissão apaixonante. Os advogados se orgulham do prestigioso ofício, considerado pela Constituição Federal indispensável à administração da justiça (artigo 133 da CF).

Mas é claro que a profissão do advogado enfrenta percalços como qualquer outra. A notável peculiaridade é o fato de o sucesso do advogado resultar do insucesso de outro advogado; como numa luta, só o vencedor da peleja receberá os chamados honorários da sucumbência; e, além disso, o seu trabalho em juízo é avaliado e definido por um terceiro — o juiz — e será pago pela parte vencida.

A presente reflexão indaga sobre a legitimidade de se adotar apreciação equitativa na hipótese em que os honorários sobre o valor da causa alcance cifras exorbitantes.

O artigo 85, § 8º do CPC que autoriza o juiz a fixar a verba honorária por apreciação equitativa é limitada às hipóteses em que o valor da causa seja muito baixo ou quando o proveito econômico for inestimável ou irrisório. Nesses casos, o juiz é autorizado a sopesar o grau de zelo profissional, o lugar da prestação do serviço, a natureza e a importância da causa, o trabalho e o tempo despendido pelo advogado do vencedor da demanda e arbitrar o valor que considere justo no caso concreto.

No entanto, no caso em que os honorários sobre o valor da causa possam conduzir a valores muito elevados, a lei processual silencia quanto a possibilidade da apreciação equitativa. É dizer, a lei tira de cena o julgamento pelo juiz. E isso pode ter um impacto severo.

Figure-se um exemplo: A promove demanda em que o valor da causa é de vinte milhões de reais de acordo com a lei. Nesse caso, o juiz deverá fixar os honorários entre dez e vinte por cento sobre o valor atualizado da causa em favor do vencedor, como estabelece o § 2º do artigo 85 do CPC, mesmo que se trate de causa sem complexidade, julgada antecipadamente com ou sem exame do mérito. Isso porque, de acordo com o referido dispositivo, não sendo possível mensurar o proveito econômico obtido, a base de cálculo dos honorários será o valor atualizado da causa.

Nessa hipótese os honorários variariam de dois a quatro milhão de reais no mínimo. Portanto, em causas bilionárias, um advogado de sorte poderia ganhar sozinho numa única ação um “prêmio” sem ter jogado na loteria, enquanto o perdedor provavelmente iria à ruína!

Essa grave problemática chegou aos Tribunais Superiores brasileiros.

O STJ, no julgamento do REsp 1.850.512/SP em regime de repetitivos, em apreciação ao Tema 1.076, firmou em 16/3/2022 a tese de que:

“1) A fixação dos honorários por apreciação equitativa não é permitida quando os valores da condenação, da causa ou o proveito econômico da demanda forem elevados. É obrigatória nesses casos a observância dos percentuais previstos nos §§ 2º ou 3º do artigo 85 do CPC – a depender da presença da Fazenda Pública na lide -, os quais serão subsequentemente calculados sobre o valor: (a) da condenação; ou (b) do proveito econômico obtido; ou (c) do valor atualizado da causa.

2) Apenas se admite arbitramento de honorários por equidade quando, havendo ou não condenação: (a) o proveito econômico obtido pelo vencedor for inestimável ou irrisório; ou (b) o valor da causa for muito baixo.”

O que se propõe a examinar aqui é se a interpretação firmada pelo STJ é sustentável do ponto de vista constitucional. A questão está sob apreciação do Supremo Tribunal Federal no RE 1.412.069-RG, com repercussão geral.

“A Suprema Corte, considerando a “possível ofensa à isonomia (art. 5º, caput, da CF), ao devido processo legal (art. 5º, XXXIV, da CF) e aos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade”, afetou à sistemática da repercussão geral o Tema 1.255, nos seguintes termos: “Possibilidade da fixação dos honorários por apreciação equitativa (art. 85, § 8º, do Código de Processo Civil) quando os valores da condenação, da causa ou o proveito econômico da demanda forem exorbitantes” (relatora ministra presidente, Tribunal Pleno, julgado em 09/08/2023).

De modo que todos os processos em que se discute a controvérsia nos tribunais pátrios acham-se suspensos, aguardando a decisão da Corte Constitucional. Anote-se que tramita também no STF a ADC 71, proposta pelo Conselho Federal da OAB, visando declarar a constitucionalidade do ar. 85, § 8º do CPC.

Minha perspectiva é a de que a regra deverá merecer interpretação conforme para, por via da técnica aditiva, incluir-se a expressão “ou muito elevado”, de modo a compatibilizá-la com os princípios da isonomia, proporcionalidade, razoabilidade, acesso à jurisdição e da proibição do confisco.

Esse prognóstico parte, em primeiro plano, da interpretação finalística do artigo 85 § 2º do CPC. Essa regra, ao instituir critérios de valoração e limites mínimo e máximo para determinar os honorários sobre o valor da causa — quando não houver valor da condenação ou não for possível mensurar o proveito econômico obtido — revela o escopo de possibilitar que o juiz atribua remuneração digna ao advogado do vencedor da demanda sem penalizar excessivamente a parte vencida.

A regra específica do artigo 85 § 8º do CPC, no entanto, aparta-se da regra geral. O legislador omitiu o critério da apreciação equitativa para conjurar o resultado igualmente injusto para o vencido, de ter de suportar honorários exorbitantes em razão do mesmo fato jurídico, qual seja, o valor da causa, quando extravagantemente alto.

A meu ver, erigir a equidade como critério de juízo para definir o valor dos honorários somente no interesse do vencedor, expõe o perdedor a um resultado que a regra geral visou impedir. O silêncio da lei sobre ponto vital da relação processual cria manifesta situação de desigualdade de trato em prejuízo de direitos fundamentais do perdedor da demanda.

A isonomia sob o ângulo da desigualação reclama correlação lógica entre o fator de discrímen e a desequiparação procedida que justifique os interesses protegidos na Constituição (v.g. RE 640.905/SP, Tribunal Pleno, relator ministro Luiz Fux, DJ 1/2/2018). E não há correlação lógica na espécie pois, para desestimular lides ilegítimas e atribuir honorários dignos ao vencedor, não é adequado submeter o perdedor a despesas exorbitantes.

Trata-se de uma omissão do legislador no cumprimento do mandado constitucional de isonomia, omissão relativa, na qual se ignora a necessidade de observar a igualdade existente no plano abstrato entre as partes no processo judicial, instituindo fórmula jurídica defeituosa, que acaba por conferir ao vencedor uma vantagem material desproporcional, impedindo que o juiz possa estabelecer os honorários justos no caso concreto.

O juízo de inconstitucionalidade no caso incidirá sobre o conteúdo material ou o efeito normativo derivado da interpretação do texto do artigo 85 § 8º do CPC, que gera resultado contrário à Constituição, e imporá a adição de um conteúdo voltado a suprir a regulação deficiente ou incompleta da norma. Não é relevante indagar se o legislador atuou consciente ou voluntariamente; há de se averiguar objetivamente se o legislador descumpriu o mandado constitucional, deixando um vazio jurídico contrário à Constituição.

E quanto a isso parece não haver dúvida. Ao omitir na estrutura da norma o dever de apreciação equitativa por parte do juiz e a observância dos fatores de sopesamento previstos na regra geral do artigo 85 § 2º, I a IV para ambas as partes, o legislador consente que o vencedor (autor ou réu) obtenha honorários exorbitantes sem fundamento razoável, enquanto deixa o perdedor ao total desamparo, sob o risco de sofrer até mesmo confisco em seu patrimônio.

A paridade de armas é central à ideia do devido processo legal; e não é possível negar que no caso o legislador privou a parte perdedora da garantia da paridade de tratamento quanto a ônus do processo, assegurada no artigo 7º do CPC, sem justificativa plausível.

O controle da omissão relativa, que não é exclusiva ao parâmetro da isonomia, pode se justificar também por exigências fundadas noutros preceitos constitucionais, como o devido processo (razoabilidade e proporcionalidade), o direito de acesso à Justiça e a própria proibição de confisco.

A liberdade de conformação do legislador, como se sabe, é vinculada ao dever de tutela dos direitos fundamentais na sua dúplice dimensão: proibição do excesso de intervenção e insuficiência da proteção.

Com efeito, a tutela constitucional do processo (direito de ação e de defesa e postulados inerentes ao devido processo legal) é malferida não apenas quando se imponham restrições expressas a esses direitos fundamentais, mas também quando o legislador, por meio de regramento insuficiente ou incompleto, propicie a uma das partes do processo tratamento privilegiado baseado na só contingência de se sagrar vencedora da demanda, segundo a irracional lógica do tudo ou nada.

Um aspecto adicional deve ser observado. É que o Código instituiu um modelo especial de honorários da sucumbência em relação à Fazenda Pública no qual percentuais, que começam em dez a vinte por cento, incidem sobre montantes predefinidos, diminuem progressivamente conforme aumenta a base de cálculo, isto é, a condenação ou o proveito econômico.

Mas, ao estabelecer no inciso III do artigo 4º do artigo 85 que, no caso de não haver condenação principal ou não ser possível mensurar o proveito econômico obtido, a base de cálculo será o valor da causa atualizado, a lei processual também não prevê a apreciação equitativa na definição da verba sobre o valor da causa em relação à Fazenda Pública.

Portanto, se nessa hipótese o valor da causa for extravagantemente alto os honorários de dez a vinte por cento incidentes sobre essa base de cálculo atualizada gerarão despesa desarrazoada também para a Fazenda Pública, caso vencida na demanda, sem que o juiz tenha possibilidade de aplicar correção equitativa.

Em conclusão:

1) o artigo 85, § 8º do CPC, ao omitir a previsão da apreciação equitativa quando o valor da causa for muito alto, configura manifesta desigualdade de trato entre vencedor e vencido sem justificativa proporcional e razoável, por impedir que o juiz, sopesando os tradicionais vetores descritos no § 2º do referido dispositivo, fixe honorários justos no caso concreto;

2) ao criar a priori regra que sanciona desmesuradamente a parte perdedora da demanda (autor ou réu), o legislador prejudica de modo sensível o direito fundamental de Acesso (e defesa) à Jurisdição. O propósito de desestímulo à judicialização/resistência ilegítimas não pode converter-se em sanção adicional à litigância de má-fé, previstas no art. 80 do CPC;

3) o ônus capaz de levar o perdedor à ruína constitui barreira indevida, contrária à ideia do acesso à jurisdição (lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito — inciso XXXV do artigo 5º da CF) que, no limite, levaria a que pretensões legitimas deixassem de ser submetidas a juízo, dando azo a acirramento de conflitos, surtindo efeito contrário à finalidade pacificadora do processo civil em prejuízo da própria efetividade do Estado de Direito.

 

Consultor Júridico

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