No último dia 16 de março de 2023, a 2ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná negou, por 3 votos a 2, o conhecimento da revisão criminal interposta por Beatriz Abagge. O objetivo da ação era desconstituir a condenação de 21 anos de reclusão que lhe foi imposta, como autora do homicídio contra o menor Evandro Ramos Caetano, ocorrido na cidade de Guaratuba em 1992.
A revisão criminal está lastreada em três teses. A primeira, que se fundamenta nos incisos I e II do artigo 621 do CPP, sustenta que a condenação da requerente ocorreu em total desacordo com as provas apresentadas no processo e se baseou em um depoimento comprovadamente falso. Já a segunda e a terceira baseiam-se em novas evidências (cf. artigo 621, inciso III, do CPP), que demonstram que: a) as confissões dos acusados foram obtidas pela Polícia Militar por meio de tortura, tornando-as provas ilícitas que contaminaram todos os elementos subsequentes; e b) o Estado ocultou provas do processo, prejudicando a defesa dos acusados e violando os princípios do contraditório e da ampla defesa, o que resulta na nulidade absoluta de todo o feito.
As gravações amplamente utilizadas pelo Ministério Público em busca da condenação consistiam apenas em parte do material registrado em áudio pela Polícia Militar. Em 2019, o jornalista Ivan Mizanzuk, após notável trabalho investigativo registrado no podcast “O caso Evandro”, descobriu as fitas originais, que haviam sido omitidas do Poder Judiciário. Essas gravações comprovam, de forma inequívoca, que a requerente foi submetida a sevícias para que confessasse, perante os oficiais, um crime que não praticou.
Mesmo com o conteúdo agora revelado à Justiça, que foi acompanhado de dois pareceres técnicos anexados à revisão [1], os quais atestam a remoção das fitas originais do processo e a tortura sofrida por Beatriz, a 2ª Câmara Criminal acatou a posição da Procuradoria de Justiça do Paraná, pelo não conhecimento da ação revisional. O argumento foi de que os defensores deveriam ter realizado uma produção antecipada de provas [2], antigamente conhecida como justificação, de modo a viabilizar o exercício do contraditório pela acusação em relação às novas fitas.
O que chamou a atenção foram as manifestações da procuradoria e dos julgadores no debate da sessão de julgamento.
Ao término da sustentação oral do advogado Antonio Figueiredo Basto, oportunidade em que foram exibidos curtos trechos da série “Caso Evandro”, produzida pela Globoplay — nos quais se via o promotor que acusou Beatriz reagindo de forma espantosa aos áudios que comprovam a tortura sofrida por ela —, dada a palavra ao procurador de Justiça presente, foi dito: “os fatos são estarrecedores […] e, se verdadeiros, não tenho a menor dúvida que seria o caso de procedência da revisional, acontece que o promotor natural da causa em segundo grau que me antecedeu […] optou por manifestar-se pelo não conhecimento por uma questão formal”.
Ato contínuo, o relator proferiu seu voto, com destaque aos trechos: “o voto é pelo não conhecimento da revisão criminal, em virtude de não estarem preenchidos os requisitos do artigo 621 no Código de Processo Penal. Há uma prova nova, consistente em gravação, que em tese indica a obtenção de confissão mediante tortura. Fitas cassete que foram entregues de forma anônima a jornalista e que não se encontram em poder da Justiça. […] A existência de prova nova apta a rescindir a condenação deve ser produzida mediante justificação, assegurando o exercício do contraditório. […] Com base nisso, por mais que essas fitas tragam, e conforme o defensor bem apresenta, elas trazem uma certa surpresa e até mesmo uma sensação de repúdio em relação a essa situação, mas não há como aceitar essas provas novas e produzir o efeito. […] Quero apenas esclarecer […], de que não se fecha a porta para a possibilidade de essa condenação ser desconstituída, o que se exige apenas é que haja a certeza de que essa prova que foi apresentada, essa prova nova, tenha valor jurídico […], estou dizendo apenas que a prova, que é uma prova importante, que poderíamos dizer até chocante, deve ser judicializada, inclusive para apuração de eventual crime de tortura praticado pela Polícia Militar, ou, como diz o defensor, com a colaboração inclusive de membros do Ministério Público”.
Em seguida, asseverou o revisor: “hoje eu serei o formalista, mas não em excesso. As portas não estão fechadas, salvo engano, o procedimento de justificação judicial, que eu também entendo que seja necessário, ele não fecha as portas, o motivo está na técnica que não se contempla na fase probatória na revisão criminal”.
Também disse: “Eu entendo o imediatismo de Vossa Excelência, eu entendo a gana de que se faça justiça em um caso histórico com esse, um caso estarrecedor, uma situação imprescritível, isso não poderia acontecer. Quem sofreu o mínimo de injustiça nessa vida — e eu já sofri —, sabe o que é sofrer uma injustiça… então a sua intenção é nobre, corajosa […], Vossa Excelência está trazendo fatos muito sérios”.
Noutro instante, o relator tomou a palavra: “essa gravação foi anexada a um dossiê, assinado por um capitão da polícia militar. Este capitão da polícia militar, creio que merece ser investigado. Claro, porque se essa gravação constou e for verdadeira e se isso for efetivamente apurado, este indivíduo deve responder pelo crime de tortura“.
Os dois foram acompanhados por desembargador vogal, que se manifestou sucintamente para acompanhar o voto.
Realçados alguns dos trechos da sessão, cabe um esclarecimento e duas breves reflexões.
À título de esclarecimento, cumpre informar que o mencionado capitão da PM, que, nas palavras do relator, merecia ser investigado pelo crime de tortura, faleceu em 2018, como dito na sustentação oral referida. Mesmo vivo, não poderia ser investigado pela prática da tortura, pois em 1992 o delito ainda não havia sido tipificado, o que só se deu em 1997, por meio da Lei 9.455/97.
Quanto as reflexões, em primeiro lugar, nos parece claro que a fita não precisava ser submetida à justificação. Como leciona Gustavo Badaró, somente a prova nova baseada em fonte oral deverá ser produzida em contraditório judicial [3], por meio do procedimento de produção antecipada de prova do artigo 381 do CPC [4].
As fitas trazidas ao processo são prova documental. Um documento deve ser entendido como “qualquer suporte material que represente um fato juridicamente relevante” [5], como é o caso de uma fita cassete. A gravação serve para descrever e tornar cognoscível, de forma permanente, um fato que se deu na realidade [6]. É, portanto, uma prova histórica real.
Nesse contexto, a prova documental seria espécie do gênero das provas pré-constituídas, as quais são formadas fora do processo, apresentando-se “como exceção à regra do contraditório na formação da prova” [7]. Significa dizer que elas não precisam ser formadas em contraditório, mas somente precisam ser submetidas à outra parte antes da decisão judicial. Nas palavras de Badaró, “o importante é que seja garantido o contraditório, não para a formação da prova, mas para a sua valoração” [8].
No âmbito da revisão criminal, a Procuradoria de Justiça foi intimada para impugnar a inicial e os documentos que à instruem, em respeito ao contraditório exigido pela prova documental. Além disso, para que não houvesse dúvida quanto a veracidade do conteúdo, a defesa juntou dois pareceres técnicos idôneos que dispensam qualquer perícia, nos termos do artigo 472 do CPC [9].
Em segundo lugar, acima de qualquer esclarecimento técnico, enfatizamos que é suficiente ouvir o conteúdo das fitas recém-descobertas e compará-las com a gravação usada para condenar Beatriz. O cotejo permite concluir, sem qualquer dúvida, que as novas fitas provêm da mesma fonte da usada nos autos originais. São as mesmas vozes, no mesmo contexto.
Ao admitir que a requerente sofreu uma injustiça e descrever os fatos como chocantes, os magistrados, no entanto, negaram a proteção aos direitos fundamentais. Optaram por uma formalidade simplista e ineficaz, cujo resultado poderia ser antecipado simplesmente ao ouvir as gravações.
Eis o paradoxo da corte. No passado, se aceitou a utilização de uma fita de origem suspeita para condená-la, sem trazer maiores óbices ou preocupações formalistas [10]. Agora, gravações que, em verdade, são apenas uma extensão daquele conteúdo valorado antigamente, não podem servir para absolver de plano, pois estão obrigadas a se submeter a procedimento arcaico e dispensável [11].
Diante da ausência de argumentos sólidos, recorreram a frases prontas, chegando quase a pedir desculpas à família Abagge. Refugiando-se no formalismo, racionalizaram a injustiça e permitiram que os silogismos abafassem a verdade. Uma inversão de valores absurda ocorreu, na qual a inocência teve que se justificar perante o tribunal, enquanto os torturadores e seus cúmplices continuaram intocáveis.
É essencial buscar coerência para garantir a efetivação imediata dos direitos fundamentais e evitar que a Justiça seja mais uma vez prejudicada por formalismos estéreis e anacrônicos. A justiça criminal se demonstrou frívola: nada parece ser verdadeiro ou falso, bom ou ruim, razoável ou arbitrário. Como no mito de Sísifo — condenado pelos deuses ao trabalho inútil e desesperador de rolar eternamente uma enorme pedra montanha acima —, o sistema penal parece cumprir tarefas que não atendem a qualquer objetivo, seja ele justo ou injusto.
João Victor Stall Bueno é graduado em Direito pela Universidade Federal do Paraná, pós-graduando em Direto Penal e Processo Penal pela Academia Brasileira de Direito Constitucional (ABDConst) e advogado do escritório Figueiredo Basto Advocacia.