Robson Santos: Lei de Licitações, paraestatal e servidor (parte 2)

A primeira parte deste estudo apresentou introdução sobre o tema (item 1) e análise sobre complemento da norma penal em branco (item 2).

Debate-se, adiante, a revogação integral da Lei nº 8.666/1993, os crimes licitatórios e sua transferência para o Código Penal, o artigo 84 e seus parágrafos da Lei nº 8.666/1993, bem assim, os efeitos de sua revogação e não alocação ou transferência para o Código Penal ou outra lei.

Revogação integral da Lei nº 8.666/1993

Os crimes licitatórios e sua transferência para o Código Penal

O artigo 84 e seus parágrafos da Lei nº 8.666/1993 e os efeitos de sua revogação e não alocação ou transferência para o Código Penal ou outra lei


Os delitos licitatórios, outrora previstos na Lei nº 8.666/1993 (artigos 89 a 108), foram revogados pela nova Lei nº 14.133/2021, que também fez alterações no Código Penal, nele alocando os crimes praticados por particular contra a administração (artigos 337-E e 337-P).

Essa alocação envolve o fenômeno jurídico denominado continuidade típico-normativa [1], que se verifica, realmente, no deslocamento dos mesmos tipos penais veiculados pela revogada Lei nº 8.666/1993 para os artigos 337-E e 337-P do Código Penal. Nesses casos não haverá “abolitio criminis” ou “novatio legis in mellius”. Assim entende a jurisprudência e a doutrina pátria.

Com a clara intenção de eliminar as dúvidas que o CP despertava quanto ao conceito de entidade paraestatal, de servidor público originário e servidor público equiparado, e evitar dubiedades tais como as que derivavam da redação do artigo 327, §1º, do CP, a Lei nº 8.666/1993 estabeleceu conceitos taxativos dessas figuras jurídicas e agravamento da pena no caput e nos §§1º e 2º de seu artigo 84, trazendo segurança jurídica para o ordenamento.

Como será demonstrado adiante, conquanto deslocados os tipos penais outrora veiculados nos artigos 89 a 108 da revogada Lei nº 8.666/1993 para o Código Penal, o mesmo não se deu em relação aos conceitos legais de entidade paraestatal, servidor público e servidor público equiparado então tratados no artigo 84 e seus parágrafos da referida lei revogada.

De fato, afirma-se inexistência do fenômeno jurídico da continuidade típico-normativa, pois, o artigo 84 e seus §§1º e 2º não foram repetidos ou absorvidos pela nova Lei nº 14.133/2021, que não os deslocou para o Código Penal, como fizera com os artigos 89 a 108 da referida lei revogada, datada do ano de 1993.

Anota-se que entidade paraestatal e servidor público equiparado estavam devidamente conceituados, numerus clausus, no §1º do artigo 84 da Lei n. 8.666/1993, disposição legal federal essa que teve a clara intenção de eliminar as dúvidas que o CP despertava, adotando cautela de se evitar dubiedades tais como as que derivaram da redação do artigo 327, §1º, do CP, até o ano de 1993, quando editada a referida e revogada lei federal.

O que sobressai da revogação expressa da Lei nº 8.666/1993 e da não repetição, absorção ou deslocamento para o Código Penal das normas contidas no artigo 84 e seus parágrafos, tema central deste artigo, é que se tem “novatio legis in mellius” relativamente às imputações de crime funcional e próprio por particulares que foram conceituados como servidor público equiparado por trabalharem em entidades privadas conceituadas como “entidade paraestatal” por inclusão na expressão “demais entidades sob controle, direto ou indireto, do poder público”, contida no referido artigo de lei.

Certo que o tema ainda não se viu conclusivamente debatido, porém, com a proximidade da data de revogação expressa e integral da Lei nº 8.666/1993, a ocorrer no dia 1º de abril de 2023, necessário que doutrina e jurisprudência se manifestem, adotando postura condizente com as garantias constitucionais estabelecidas e impostas pelos incisos III do artigo 1º, XL e LXXVIII do artigo 5º da Constituição, em especial do inciso XL, pois, impede a retroatividade da lei penal prejudicial e a impõe quando a norma penal beneficiar o réu.

O contexto impõe considerar o disposto no artigo 2º, caput e parágrafo único, do Código Penal, que concretiza o referido princípio fundamental constitucional ao prescrever que lei nova deve ser aplicada aos fatos anteriores, ainda que decididos por sentença condenatória transitada em julgado, sempre que beneficiar o réu.

Anota-se que a prática de atos intestinos, operacionais e privados no seio de entidades particulares ou empresas privadas não revela qualquer relação com “atos de servidor público”, com “crime funcional e próprio” ou com “peculato”, mas em diversos processos [2] foram assim considerados com fundamento no §1º do artigo 84 da Lei nº 8.666/1993, pois, na visão do Tribunal do Distrito Federal, do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal referidos artigo e parágrafo complementariam o sentido da norma do § 1º do artigo 327 do Código Penal.

Nos processos referidos equiparou-se uma associação particular e privada a uma entidade paraestatal para fins penais e seus dirigentes e empregados a servidor público, e isso fundado no §1º do artigo 84 da Lei nº 8.666/1993, porém, ao ser revogada, integralmente, essa lei de 1993, a base de sustentação da analogia prejudicial utilizada, ou seja, o fundamento que sustentou o processamento e as condenações se viu destruído e eliminado do ordenamento jurídico.

Ante a natureza de norma penal em branco, a revogação da Lei nº 8.666/1993 deságua na aniquilação material dos fatos e atos tidos como peculato nos processos referidos, que tiveram nascimento e curso no Tribunal do Distrito Federal, ainda mais porque não se teve transferência ou alocação das disposições veiculadas pelo artigo 84 para o Código Penal ou qualquer outra lei.

Outro prisma, não se poderia alegar existência de empresa prestadora de serviço contratada para executar atividade típica da administração pública, seja porque não se teve ou se adotou esse fundamento para processar e condenar, seja porque, analisando a temática, o eg. STF, em sede de controle concentrado [3], consolidou entendimento no sentido de que os empregados das organizações sociais não são servidores públicos, mas sim empregados privados; as OS não são entidades da administração indireta, pois não se enquadram nem no conceito de empresa pública, de sociedade de economia mista, nem de fundações públicas, nem no de autarquias, já que não são, de qualquer modo, controladas pelo poder público; as OS não são contratadas para executar atividade típica da administração pública, mas para executar atividades econômicas comuns, ordinárias e próprias da iniciativa privada, muito embora com relevância e interesse social, e isso sob o prisma de melhor serem executadas sob as vestes do Direito Privado.

Como já posto, o eg. STF pacificou que a norma integrativa, que completa o sentido do § 1º do artigo 327 do Código Penal, é o artigo 84, § 1º, da Lei de Licitações, sendo inequívoco que as organizações sociais seriam entidades paraestatais nos termos das normas deste último.

Ora, se o §1º do artigo 84 da Lei n. 8.666/1993 sustentava a equiparação de entes particulares e privados a um ente paraestatal e, por conseguinte, a equiparação de seus dirigentes e empregados a servidor público, na exata acepção dada pelos Tribunais Superiores, mas dito artigo da referida lei federal se viu revogado, expressamente, então, tem-se atipicidade dos fatos e atos particulares e privados imputados como crime funcional.

A revogação integral da Lei Federal nº 8.666/1993, em especial, do artigo 84 e seus parágrafos, retirou o alicerce de sustentação do processamento e da condenação de particulares — empregados de entes particulares ou empresas privadas — por crime funcional e próprio, especialmente crime de peculato (artigo 312 do Código Penal), de modo que os atos e as condutas praticadas no seio dessas pessoas jurídicas privadas não revelam, a partir desse fato jurídico, possibilidade de imputação do “crime” tipificado nos artigos 312 a 326 do Código Penal brasileiro.

Desaparecendo do mundo jurídico o fundamento e a conseguinte possibilidade de processamento e condenação por crime funcional e próprio, os atos praticados no seio de entes particulares e empresas privadas não podem ser considerados típicos para esse fim. Nesse sentido, o inciso o artigo 107, inciso III, do Código Penal, prevê a extinção da punibilidade por força de retroatividade de lei que não mais considera o fato como criminoso; e o Parágrafo único do artigo 2º do mesmo código é contundente ao afirmar que lei posterior (aqui, utiliza-se o vocábulo “lei” de forma genérica e ampla) que, de qualquer forma, favorecer o agente, terá aplicação aos fatos praticados anteriormente, “ainda que decididos por sentença condenatória transitada em julgado”.

Sem dúvida, a lei nova mais favorável que a anterior tem plena aplicação no Direito Penal brasileiro, o que está previsto no Código Penal (artigo 2º, caput e parágrafo único) e na Constituição da República (artigo 5º, inciso XL), presente o fato jurídico de que a coação sempre se revelará ilegal quando extinta a punibilidade, a teor do que dispõe o inciso VII do artigo 648 do CPP.

A Doutrina é firme e forte ao asseverar não importar o modo pelo qual a lei nova favoreça o agente, pois, ela deverá, sempre, ser aplicada a fatos pretéritos à sua entrada em vigor. Nessa linha de pensamento, Mirabete ensina e explicita que: “… havendo conflito de leis penais com o surgimento de novos preceitos jurídicos após a prática do fato delituoso, será aplicada sempre a lei mais favorável” [4].

De igual modo e de forma autorizada, Rene Ariel Dotti leciona que “O advento de uma lei nova poderá beneficiar o agente não apenas quando descriminaliza o fato anteriormente punível, mas quando institui uma regra de Direito Penal que: a) altera a composição do tipo de ilícito; b) modifica a natureza, a qualidade, a quantidade ou a forma de execução da pena; c) estabelece uma condição de punibilidade ou processabilidade; d) de qualquer outro modo é mais favorável” [5].

Damásio de Jesus afirma que a expressão “de qualquer modo favorecer o agente” impõe seja considerada como a significar que a lei posterior favorece o agente de qualquer modo e outro modo que não seja abolitio criminis, referida no caput do artigo 2º do Código Penal [6].

Alberto Silva Franco e Rui Stoco, sobre o ponto, asseveram que “lei mais benéfica” deve ser entendida como a que amplia, de outro modo, o âmbito de licitude penal, quer reduzindo quantitativamente, ou modificando qualitativamente a pena cominada, quer criando situações que favoreçam o direito de liberdade do agente [7].

Referidos autores ensinam que uma norma penal pode ser favorável pela diferente configuração do crime, seja pela natureza da infração seja por seus elementos constitutivos; por seus elementos acidentais ou acessórios, seja ainda, pelas diferentes condições de punibilidade, sejam negativas sejam positivas.

O parágrafo único do artigo 2º do Código Penal, dizem Alberto Silva Franco e Rui Stoco, na obra citada, “Em perfeito ajuste com o preceito constitucional”, determina sem qualquer limite ou restrição a retroação da norma penal benéfica, pois, “a norma penal mais benéfica, qualquer que seja o seu conteúdo, retroage sempre para favorecer o agente, mesmo que tenha sido julgado por sentença condenatória irrecorrível” [8].

A jurisprudência também segue os ensinamentos da academia: o STF adota entendimento literal do princípio, afirmando que a lei nova é lex in melius e por isso deve retroagir, por força do disposto no artigo 5º, inciso XL, da Constituição [9]; de igual modo o STJ por meio de suas Turmas de Direito Penal (5ª e 6ª Turmas) [10].

Portanto, o processamento e a condenação por crime funcional e próprio com fundamento no §1º do artigo 84 da revogada Lei nº 8.666/1993 e a transformação fictícia de entidades privadas em entidade paraestatal, e de seus empregados e dirigentes em servidores públicos equiparados, restaram fulminadas com a revogação operada pela Lei nº 14.133/2021, de modo que um particular não pode responder e ser processado e condenado por crime funcional e próprio diante da prática de atos privados.

Considerações finais

As recentes inovações operadas pela Lei nº 14.133/2021, que instituiu novo Estatuto de Licitações e Contratos e revoga, de forma expressa e integral, a Lei nº 8.666/1993, têm, como efeito penal, a extinção da punibilidade (artigo 5º, XL, da CF/88; artigos 2º e 107, III, do CP) no pertinente a imputações de crime funcional e próprio assentadas nas conceituações de entidade paraestatal, de servidor publico e de servidor público equiparado, extraídas do caput e do §1º do artigo 84 da revogada Lei nº 8.666/1993.


[1] O princípio da continuidade normativo-típica significa a manutenção do caráter proibido da conduta, porém com o deslocamento do conteúdo criminoso para outro tipo penal. A intenção é que a conduta permaneça criminosa.

[3] cf. Itens 59 e 63 do voto de mérito, vencedor e condutor do acórdão, lançado nos autos da ADIN 1.923/DF, Plenário, relator originário min. Ayres Britto; redator para acórdão min. Luiz Fux – DJe de 17/12/2015.

[4] MIRABETE, Júlio Fabbrini. Manual de Direito Penal. 22a ed. São Paulo. Atlas. 2005. vol. 1.

[5] DOTTI, Rene Ariel. Obra citada.

[6] Código Penal Anotado, 18ª edição – São Paulo: Saraiva, 2007.

[7] Código Penal e sua Interpretação – Doutrina e Jurisprudência, 8ª edição – São Paulo: RT, 2007.

[9] STF. HC 113.717/SP. Rel. Luiz Fux. 1ª Turma – DJe de 19/03/2013. Cita precedentes: HC 110.040, rel. min. GILMAR MENDES, 2ª Turma, DJe de 29/11/11; HC 110.317, rel. min. Carlos Britto, DJe de 26/09/11, e HC 111.143, rel. min. DIAS TÓFFOLI, DJe de 22/11/11. No mesmo sentido: STF. HC 114.149/MS. rel. Dias Toffoli. 1ª Turma – DJe de 04/12/2012; HC 68.904/SP, relator min. Carlos Velloso, 2ª Turma, DJ, I, de 3/4/1992; HC 94.397/BA, relator ministro Cezar Peluso, 2ª Turma, DJe de 3/4/2010.

[10] STJ, REsp nº 1.107.275/SP, 5ª Turma, relator ministro Felix Fischer — disponibilização/publicação no STJ DJe do dia 4/10/2010; AgRg no Agravo de Instrumento nº 1.261.427/DF, STJ, 6ª Turma, relator ministro Rogério Schietti Cruz — disponibilização/publicação no STJ/DJe do dia 17/3/2016.

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