José Abelardo Barbosa de Medeiros, também conhecido pela alcunha de Chacrinha ou de Velho Guerreiro, foi um apresentador de rádio e de televisão, famoso na segunda metade do século passado pela irreverência de seus bordões e neologismos, pela subversão dos ditos costumes da época e pela atmosfera caótica de seus programas.
Em um paralelo temporal, seus programas de outrora tinham um formato que lembram hoje a mistura de programas de concursos musicais ou reality shows interativos, com pitadas de programas de auditório das tardes de sábado e de domingo da televisão aberta. Com sua estridente buzina, Chacrinha tinha costume de dar espaço a artistas totalmente desconhecidos (calouros) e a novas apostas da música, da dramaturgia e do humor; para os artistas já profissionais, apresentar-se no programa do Chacrinha era considerado o ápice da carreira, um selo de certificação de êxito e de relevância nacional. Mais que uma escada, ele era um elevador para o sucesso, dada a capacidade de alçar pessoas ao estrelato de forma rápida e sem discriminação — bastava possuir genuíno talento.
Nesse contexto “ascensorístico” popular, em 4/7/2023, foi sancionada pelo Poder Executivo do Município do Rio de Janeiro a Lei nº 7.957/2023 [1], fruto do Projeto de Lei nº 1.151/2022 (e 1151-A/2022) da Câmara dos Vereadores, que proíbe a diferenciação de elevadores em razão do perfil dos usuários no âmbito do município. Em cinco breves artigos, com o objetivo de coibir qualquer tipo de discriminação no acesso aos elevadores, a lei em questão passa a vedar o uso das denominações “social” e “serviço” nos elevadores dos prédios privados, exceto para os elevadores de “carga”, e prescreve a pena de advertência ou de multa fixa de R$ 5.000 em caso de reincidência.
Apesar da simplicidade, a promulgação dessa lei reverberou nas semanas seguintes, talvez pelo rescaldo da polarização política das eleições presidenciais no final do ano passado. Quem se filia à corrente dos otimistas inveterados certamente vibrou — e não poderia ser diferente. Num país racista, misógino, transfóbico e com extrema desigualdade social, toda norma que, ainda que em tese, vise a extinguir qualquer tipo de discriminação de pessoas e fazer com que a vida em sociedade seja mais agradável, respeitosa e justa é uma batalha vencida de uma longa guerra.
Dessa vez, infelizmente, o entusiasmo da leitura da ementa se esvai à medida em que o texto legal é lido. Nada há, na redação dos dispositivos, que possa fazer com que a proposta declarada na ementa seja transformada em algo concreto, relevante e transformador na vida dos cidadãos cariocas.
Esse curioso fenômeno decorre da intenção do legislador (mens legislatoris) expressa na justificativa [2], que é bem menos densa do que a redação final da lei sugere. A abolição dos termos “social” e “serviço” nos elevadores, muito menos do que um brado revolucionário da Administração Pública em prol do fim ao apartheid social carioca, é na verdade uma mera e frustrante regulamentação do fluxo de pessoas para a entrada e saída de edifícios privados, uma singela regra de preferência de transeuntes, quiçá fiscalizável por um agente de trânsito, se destacado de uma das vias públicas.
“Eu não vim para explicar, eu vim para confundir” — a caricata frase do Chacrinha poderia ornar a ementa dessa lei. Mesmo a proposta de dinamismo na vida das pessoas passa ao largo desse objetivo na prática e, ao revés, gera bem mais confusão do que esclarecimento. O espírito da Lei de 2023 está consignado em sua quase integralidade no artigo 1º, o qual já prevê exceção para a manutenção da denominação de “serviço” em razão da função de carga. Assim sendo, essa brecha na lei tem caráter exemplificativo, para permitir outras distinções nesse sentido — desde que não se refira a pessoas. Isso significa que a edição pelos condomínios edilícios privados de regras complementares de utilização do elevador de carga para o transporte de resíduos de obras, compras de mercado, animais domésticos, por exemplo, seriam distinções plenamente válidas.
Outros pontos importantes não abordados pela Lei nº 7.957/2023 são: (1) os custos supervenientes diretos e indiretos de implementação dessas alterações, não previstos nos orçamentos anuais (não se trata apenas de retirar uma placa indicativa); (2) o fato de determinados elevadores serem de fato elevadores de carga e não elevadores comuns travestidos de carga (ou seja, com reforço estrutural e acesso dedicado ou exclusivo, típico de edifícios comerciais de médio a grande porte, cuja vida útil pode ser reduzida se utilizado concomitantemente para o transporte de pessoas); e (3) a incompatibilidade pela planta do edifício.
Além disso, a ênfase da justificativa da lei na lotação constante dos elevadores, no tempo desperdiçado em transportes públicos precários e nos congestionamentos de trânsito dão uma conotação de norma inicialmente destinada a edifícios comerciais e ao público visitante. Não parecem ser os edifícios residenciais — inclusive os multifamiliares com muitas unidades autônomas — o alvo primordial da justificativa, tampouco da lei. Uma distinção de como essa lei deve ser implementada em edifícios comerciais e residenciais é indispensável.
Mas, como “nada se cria, tudo se copia” — mais uma célebre paráfrase ‘lavoisiana’ do quase-químico Chacrinha —, a vedação de discriminação no acesso aos elevadores públicos e privados no município do Rio de Janeiro em virtude de raça, sexo, cor, origem, condição social, idade, porte ou presença de deficiência e doença não contagiosa por contato social já está consignada há quase duas décadas na Lei nº 3.629/2003 [3], resultado do Projeto de Lei nº 1.190/2003. Essa norma vintenária e ainda em vigor é bem mais consistente em sua justificativa [4] e condizente com sua redação final. Houve coerência do início ao fim do processo legislativo.
Menos abrangente do que poderia ter sido à época, aquela lei municipal teve a intenção de propor o imediato rompimento do equivocado conceito de sociedade provinciana, de castas sociais veladas, que encontrava na discriminação ao acesso aos elevadores um abjeto exemplo — não isolado, diga-se de passagem. A lei municipal de 2003 deu lume não apenas à diuturna hipocrisia perpetrada, mas também à correspondente arma de combate: a efetiva aplicação do princípio da igualdade, desde sempre previsto na Constituição de 1988 e na Lei Orgânica do Município, cujo desrespeito é indenizável pela legislação de responsabilidade civil e punível também pela legislação penal.
A lei de 2003 ao mesmo tempo impediu a discriminação de pessoa para o acesso ao elevador social e permitiu de forma expressa a distinção justificada em razão da funcionalidade, por meio da recomendação de acesso ao elevador de serviço em caso de grandes volumes, obras e até traje de banho. Repare-se que as exceções da Lei nº 3.629/2003 são similares às exceções da Lei nº 7.957/2023 — não em razão do ser, mas sim da função em abstrato — e que por isso devem ser interpretadas como uma relação exemplificativa.
Por isso, a outrora previsão de hipóteses de recomendação de utilização do elevador de serviço, em substituição do elevador social, baseadas na finalidade, na tarefa ou na missão (função) foi e continuou a ser permitida aos condomínios edilícios, desde que proporcionais ao uso e desvinculadas do agente (pessoa). As exceções nas convenções e regulamentos internos dos condomínios edilícios para compras de mercado, objetos volumosos, animais domésticos, entre outras, em razão da função sempre foram compatíveis com as disposições da Lei nº 3.629/2003, seja antes ou depois da sua edição. Tanto isso é verdade, que as restrições adicionais que respeitam esses parâmetros proporcionais sempre foram validadas pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio Janeiro [5].
Dito isso, o que a lei de 2023 traz de novo? O que vai mudar na prática na vida do carioca com relação à Lei de 2003? Nada ou quase nada. Quando muito, diante do aparente conflito do artigo 1º da Lei nº 7.957/2023 com o artigo 3º, da Lei nº 3.629/2003, os edifícios privados novos ou em situações específicas poderão deixar de ter as indicações de elevadores “social” e, a depender do caso, de “serviço”, sendo que estes poderão passar a ser denominados de “carga”. No mais, as regras gerais de acesso aos elevadores no município do Rio de Janeiro continuam sendo as mesmas de 2003, sendo vedada qualquer tipo de discriminação de pessoas, permitidas as exceções funcionais expressas na lei; essas regras podem ser complementadas por regras específicas previstas nas convenções e regimentos internos dos condomínios edilícios privados para permitir as exceções funcionais não abusivas.
E quando isso vai mudar? Certamente não é agora; será preciso aguardar. Apesar de a Lei 7.957/2023 entrar em vigor na data da sua publicação e ser válida para todos os efeitos, a aplicação dessas mudanças não será imediata. A falta de ineditismo da lei de 2023, a superposição com a lei de 2003 sem a revogação parcial desta de forma clara e precisa, a imposição de custos para uma adequação inócua na prática sem previsão orçamentária, bem como todas as dúvidas que vêm a reboque fazem com que a lei em questão não seja autoaplicável — i.e. não tenha eficácia imediata.
E nesse sentido, se assim não fosse, a leitura atenta da parte final do artigo 4º da Lei nº 7.957/2023 dispõe que a eficácia dessa mesma lei somente irá ocorrer a partir da sua regulamentação pelo Poder Executivo. Somente após a edição do respectivo decreto pela Prefeitura do Rio de Janeiro será possível ter a exata noção de se, quando e como os condomínios edilícios privados comerciais e residenciais devem agir. Essa lei caloura ainda “não vai pro trono“, diriam os jurados do Chacrinha. Portanto, é desaconselhada qualquer medida para a implementação das regras da lei de 2023 desde já. É preciso evitar uma tomada de decisão açodada e, como visto, existem diversos argumentos de defesa em caso de advertência ou autuação por parte da fiscalização municipal.
A eliminação da discriminação da pessoa de qualquer tipo em qualquer situação deve ser uma busca incansável pelo poder público, seja no âmbito Legislativo ou Executivo. Tal objetivo deve perpassar pelo direcionamento da mudança da conduta de aspectos comezinhos do cotidiano, sim — principalmente no âmbito municipal, a esfera de governo mais próxima dos administrados. O decreto regulamentador que está por vir deverá endereçar todas essas questões de forma muito comprometida e holística, buscando dentro dos limites normativos dar algum real sentido à lei, para que alcance a sua máxima efetividade social, tudo isso sem impor excessiva onerosidade aos condomínios edilícios privados comerciais ou residenciais.
Nesse desiderato, à luz da eficiência e da finalidade da administração pública, requer-se muito mais do que a boba determinação da retirada ou troca de plaquetas com a denominação dos elevadores. São necessárias atitudes muito mais efetivas, concretas e exequíveis em parceria com os administrados. O buzinaço alerta e antecede o sábio conselho do Velho Guerreiro: “Quem não se comunica, se trumbica“.
[1] Art. 1º Fica vedado o uso das denominações Elevador Social e Elevador de Serviço nos elevadores dos prédios privados no âmbito do Município, excetuando-se elevadores de carga.
Art. 2º São objetivos desta Lei: I – coibir qualquer tipo de discriminação; e II – proporcionar o dinamismo para o acesso a estabelecimentos privados.
Art. 3º O descumprimento do disposto nesta Lei sujeitará o infrator, quando pessoa jurídica de direito privado, às seguintes penalidades: I – advertência, quando da primeira autuação da infração; e II – multa, quando da segunda autuação. Parágrafo único. A multa prevista no inciso II deste artigo será fixada em R$ 5.000,00 (cinco mil reais), tendo seu valor atualizado pelo Índice de Preços ao Consumidor Amplo Especial – IPCA-E, ou outro índice que venha substituí-lo.
Art. 4º Caberá ao Poder Executivo regulamentar a presente Lei em todos os aspectos necessários para a sua efetiva aplicação.
Art. 5º Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.” (Não grifado no original)
[2] “Percebemos, cotidianamente, a subutilização de elevadores privativos em prédios públicos e privados. Em ambientes que utilizam a segregação entre elevadores privativos e comuns a grande maioria das pessoas se percebem prejudicadas, acontecendo de elevadores ‘comuns’ ficarem lotados, enquanto ‘privativos’ ficam vazios esperando autoridades e afins. A mesma coisa acontece quando denomina-se ‘Elevador social’ e ‘Elevador de Serviço’. O presente Projeto de Lei ajudará a coibir qualquer ato discriminatório, além disso a situação interfere diretamente no cotidiano das pessoas, uma vez que devido às condições precárias do transporte público e congestionamentos no trânsito, filas para adentrar elevadores podem atrapalhar ainda mais a vida do cidadão.
Com a nova legislação, todas as pessoas entrarão nos elevadores existentes e disponíveis. Apenas em casos de transporte de grandes cargas ou materiais de obras, um elevador específico será utilizado para essa finalidade, sendo identificado como ‘Elevador de Cargas’.”
[3] “Art. 1.º Fica vedada qualquer forma de discriminação em virtude de raça, sexo, cor, origem, condição social, idade, porte ou presença de deficiência e doença não contagiosa por contato social no acesso aos elevadores existentes no Município do Rio de Janeiro.
Art. 2.º Fica ainda, estabelecido que o transporte de pessoas se dará pelo chamado elevador social. Parágrafo único. Somente quando estiverem transportando volumes, cargas, ou em serviços de obras ou reparos e em trajes de banho é que as pessoas poderão ser orientadas a utilizar o elevador de serviço.
Art. 3.º É obrigatória a colocação de placa contendo a expressão ‘SOCIAL’ ou de ‘SERVIÇO’, conforme o caso, diretamente aplicada ou acima da porta dos elevadores em decorrência do disposto no art. 2º e seu parágrafo único.
(…)
Art. 5.º Ficam os responsáveis pelos elevadores, obrigados a colocar as placas a que aludem os arts. 3.º e 4.º desta Lei no prazo de sessenta dias da sua publicação.
Art. 6.º Constitui penalidade, sujeitando os seus infratores à multa de dois salários mínimos, a ausência das respectivas placas de que tratam os arts. 3.º e 4.º desta Lei, aumentando para quatro salários mínimos, nos casos de reincidência.”
[4] “A Constituição Federal, em seu artigo 5º, assegura a igualdade de todos perante a lei, sem que haja distinção de qualquer natureza. A Lei Orgânica do Município também prevê em seu artigo 5º, caput e § 1º que o Município assegurará, através de lei a plena efetividade dos direitos e garantias individuais sancionados na Carta Magna e que ninguém será discriminado, prejudicado ou privilegiado em razão de nascimento, idade, etnia, cor, sexo, estado civil, orientação sexual, atividade física, mental ou sensorial, entre outras. Como corolário dessa intenção dispôs ainda, em seu § 3º desse mesmo artigo que o Município estabelecerá sanções administrativas a quem incorrer em qualquer tipo de discriminação, independente das sanções criminais.
Em vários edifícios públicos ou privados de nossa Cidade a utilização dos elevadores obedece a caráter absolutamente pessoal e na maioria das vezes preconceituoso e discriminatório, caracterizando um conceito equivocado da sociedade o entendimento de que o elevador de serviço deve ser utilizado por empregados ou serviçais, e o social exclusivamente por moradores do edifício.
Entendemos que o elevador de serviço deve ser utilizado sempre que a pessoa, tanto morador quanto empregado, estiver em condições especiais, ou seja, o elevador de serviço tem a função de transportar, a exemplo, moradores ou empregados deslocando cargas ou em traje de banho, terceiros ou profissionais em obras ou reparos ou que estiverem realizando mudanças. Ao contrário, o elevador social deve ter a função de transportar pessoas, moradores, empregados ou visitantes, desde que esses não estejam naquelas condições. Deve ser o meio normal de transporte de pessoas que utilizam as dependências dos edifícios. O entendimento dado por este projeto à função desses dois tipos de elevadores busca assegurar o princípio constitucional da igualdade sem qualquer tipo de distinção, que é a base de um Estado Democrático de Direito.
Considerando a importância da conquista dos direitos da população, a defesa da dignidade humana e da cidadania, excluindo qualquer tipo de situação vexatória, apresentamos o presente projeto de lei.”
Alaim Rodrigues Neto é advogado tributarista.