Alan Bousso: Penhora de salários para quitação de dívidas

Recente decisão da Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça (STJ) chamou atenção pelo impacto que pode ter na cobrança de dívidas. No caso, que tem como relator o ministro João Otávio de Noronha, houve entendimento de que pode ocorrer penhora de salário independentemente de um limite mínimo da remuneração do devedor. A decisão pode trazer mais segurança jurídica para aqueles que têm dificuldade em conseguir os pagamentos já reconhecidos como direito pela Justiça. Ao mesmo tempo, é necessário que se mantenha certa razoabilidade em relação aos valores e à garantia das partes executadas.

Primeiramente, é importante dizer que tal entendimento não é inédito, mas teve relevância por fazer a necessária comparação entre posicionamentos anteriores da própria corte.

Por um lado, a 4ª Turma tem o entendimento de que a jurisprudência da corte vai no sentido de que as exceções para a impenhorabilidade das verbas de natureza salarial cabem, respeitado o percentual que assegure a dignidade do devedor e de sua família, em caso de cobrança de pensão alimentícia; quando o executado tiver recebimentos mensais superiores a 50 salários-mínimos mensais, conforme prevê o Código de Processo Civil (CPC).

Contudo, o credor do processo recentemente em pauta no STJ argumentou nos autos que, por outro lado, a própria Corte Especial do tribunal já teve um entendimento distinto em outros casos, assim como a Terceira Turma, ao estabelecerem que, garantida a subsistência do devedor e de sua família, cabe a penhorabilidade de salário independentemente do valor dos rendimentos e da natureza da dívida.

Por exemplo, nos Embargos de Divergência em Recurso Especial (EREsp) 1.582.475/MG, julgados pela Corte Especial em 2018, com o ministro Benedito Gonçalves como relator, o entendimento foi de que a regra prevista no Código de Processo Civil “pode ser excepcionada quando for preservado percentual de tais verbas capaz de dar guarida à dignidade do devedor e de sua família”.

Tal regra está previsa no artigo 833 do CPC que prevê como impenhoráveis no inciso IV “os vencimentos, os subsídios, os soldos, os salários, as remunerações, os proventos de aposentadoria, as pensões, os pecúlios e os montepios, bem como as quantias recebidas por liberalidade de terceiro e destinadas ao sustento do devedor e de sua família, os ganhos de trabalhador autônomo e os honorários de profissional liberal”, com limite de 50 salários-mínimos mensais, conforme previsto no §2º do mesmo artigo.

Para o ministro João Otávio de Noronha, é possível a relativização dessa norma por que o CPC 2015 suprimiu a palavra “absolutamente” como complemento da afirmação “São impenhoráveis”.

A relativização da impenhorabilidade já vem sendo aplicada em tribunais de Justiça Brasil afora. E tem sido relevante para garantir a quitação de dívidas de partes que muitas vezes estão em determinada circunstância não por inesperados reveses aos quais todos estão sujeitos, mas com verdadeiro dolo e sem qualquer intenção de acordo ou esforço para fazer o pagamento. São pessoas que, cientes de suas pendências e das medidas cabíveis, não têm qualquer patrimônio em seu nome, tornando praticamente impossível a execução da dívida.

A penhora do salário é medida extrema e última alternativa e assim deve seguir sendo. Até porque só vai chegar ao salário após rastreio dos bens, bloqueios judiciais, entre outras medidas cabíveis. Tampouco essa deve ser uma medida que vá sacrificar vulneráveis.

Por outro lado cabe ao juízo considerar a boa-fé das partes, pois há processos que envolvem situações complexas, especialmente os relacionados a questões societárias. Por isso, a penhora dos salários, ainda que seja definitivamente flexibilizada deve ser medida última e aplicada principalmente quando forem detectadas ações das partes no sentido de ocultar patrimônio ou de resistir a fazer um acordo.

Outro ponto importante: se os 50 salários mínimos são surreais para a realidade brasileira, há por outro lado que se ter prudência, pois, como se pode definir o que garante a subsistência de uma família? Há nuances na vida pessoal que tornam esse valor diferente em cada caso. Duas pessoas com o mesmo salário podem dispor dos recursos de maneira bem diferente. Por exemplo, se for uma pessoa solteira e saudável, em geral, vai necessitar de menos do que uma pessoa com filhos e que tenha pessoas idosas dependentes que demandem cuidados específicos. É pouco provável que as cortes disponham de mão de obra, tempo e recursos técnicos para fazer essa avaliação.

Além disso, um valor fixo tem sempre o risco de ficar desatualizado e se tornar irrisório se considerado o índice de inflação. Portanto definir um percentual dentro de uma margem de ganhos talvez seja o caminho mais acertado. No caso embargos de divergência interpostos no STJ, por exemplo, houve o pedido de penhora de 30% do salário do executado, cerca de R$ 8.500 para quitação de uma dívida R$ 110 mil.

Como ao caso que teve destaque recentemente ainda cabem recursos, é fundamental que uma definição das cortes superiores venha em breve. Tal medida será um direcionamento não somente para os credores — que podem ser tanto empresas quanto vencedores de ações trabalhistas  mas para o mercado como um todo. A insegurança jurídica que gera a incerteza do recebimento do que se é reconhecido como direito impacta diretamente o ambiente econômico. Tal definição se faz urgente pelo efeito que trará tanto para os casos individuais quanto para o interesse coletivo.

Alan Bousso é advogado sócio do escritório Cyrillo e Bousso Advogados e mestre em Direito pela PUC São Paulo.

Consultor Júridico

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