Durante os dias 22 e 23 de março deste ano, a Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) fez audiências públicas no caso de Beatriz vs. El Salvador, e por que isso nos interessa?
O caso diz respeito a um tema bastante controvertido no nosso país: o aborto. Em um breve resumo, Beatriz engravidou pela primeira em julho de 2011, mas sua gestação era de risco em decorrência de uma série de doenças que possuía: lúpus eritematoso sistemático, lúpus nefropatia e artrite reumatoide.
Foi hospitalizada por diversas vezes, apresentou quadro de anemia, exacerbação dos sintomas da lúpus e uma pré-eclâmpsia, quase morreu durante o trabalho de parto, o filho teve de ficar internado por mais de 30 dias até ser receber alta do hospital, lhe disseram que uma nova gestação seria um risco à sua vida e sugeriram uma esterilização cirúrgica, que ela rejeitou.
Beatriz engravidou uma segunda vez, em fevereiro de 2013, que não foi muito diferente da primeira: era também de alto risco. Exceto por uma coisa: em 7 de março de 2013 ela recebeu a notícia de que o feto possuía anencefalia, condição incompatível com a vida extrauterina. Ao mesmo tempo em que recebia essa notícia, também foi alertada de que a continuidade da gestação representava um risco para sua própria vida.
Ela ingressou com o pedido para a realização de um aborto, que em um primeiro momento foi reconhecido pela Câmara Constitucional, mas depois foi alterado, pois consideraram que não houve qualquer “conduta omissiva” por parte das autoridades que causassem um perigo para os direitos de vida e saúde de Beatriz.
Beatriz entrou em trabalho de parto no dia 3 de junho, teve de ser submetida a uma cesariana e o feto faleceu 5 horas depois.
O caso se encontra na Corte Interamericana de Direitos Humanos e entre outras coisas, busca que El Salvador seja declarado responsável internacionalmente pela violação do direito à vida, integridade pessoal, garantias judiciais, privacidade, igualdade perante a lei, proteção judicial, direito a saúde etc., da Convenção Americana e por violar dispositivos da Convenção de Belém do Pará [1].
Se pensarmos do ponto de vista da legislação brasileira, podemos nos achar isentos desse tipo de discussão, afinal, nos casos previstos em lei, o aborto é “permitido” em nosso país, correto? Errado. Dados coletados pelo G1 apontam que quatro em cada dez mulheres que praticam o chamado “aborto legal” são submetidas ao procedimento em cidade diversa da que reside [2], chegando a percorrer mais de mil km, dificultando sobremaneira o acesso ao direito que possuem.
Os motivos para isso são os mais diversos, mas os que mais atingem quem precisa do procedimento podem ser classificados como dois: profissionais que se recusam a realizá-lo e a burocracia para consegui-lo, ainda que seja previsto em lei a possibilidade de o procedimento ser realizado pelo SUS, alguns hospitais se recusam a realizá-lo sem documentos específicos, ordens judiciais, boletins de ocorrência etc.
Entre janeiro de 2021 e fevereiro de 2022, foram registrados 1.823 procedimentos de aborto autorizados no Brasil, desse total, 711 foram realizados em cidades diferentes das de domicílio das mulheres.
Aqui precisamos então questionar o seguinte: se em um país como o Brasil, onde é permitido por lei a interrupção da gestação nos casos de gravidez decorrente de estupro, risco à vida da gestante e anencefalia do feto, há uma enorme dificuldade em se realizar o procedimento, o que dirá do que aconteceu em El Salvador? E ainda, como o caso de Beatriz nos importa?
A decisão do caso de Beatriz não vinculará o Brasil, mas formará um precedente importante no Sistema Interamericano, principalmente porque recentemente mais países da América Latina tem flexibilizado os requisitos para permitir que cada vez mais mulheres possam interromper voluntariamente a gestação, quando não, descriminalizam completamente a prática, e o Brasil não passará ileso a essa onda.
O ponto aqui é só um: o caso que a Corte Interamericana de Direitos Humanos está julgando é de Beatriz vs. El Salvador, mas poderia ser um caso envolvendo uma das 711 mulheres que precisaram se deslocar internamente no Brasil para efetivar um direito que possuem, contra o Brasil (e não demorará para acontecer).
Alanna Aléssia Rodrigues Pereira é advogada, mestranda em Direito Internacional (Uerj), bolsista do CNPq e assistente editorial (CEDIsF).