Alexandre Couto: O que aprendi com Marbury v. Madison

Em fevereiro deste ano, o caso Marbury v. Madison completou seu 220º aniversário. Os doutores Gustavo Troccoli Carvalho de Negreiros e Pedro Filipe Araújo de Albuquerque já publicaram nesta ConJur um bem elaborado resumo sobre esse julgado[1].

As contribuições foram bastante pertinentes. Contudo, neste breve artigo, tentarei ir além e analisar algo mais profundo, que consiste na própria natureza da revisão judicial e seu caráter contramajoritário (ou não), e no que a história por trás do caso Marbury pode nos ensinar sobre essas questões.

Como já é conhecido, a Revolução Gloriosa, em 1688, consagrou a supremacia do Parlamento inglês. Portanto, a doutrina de Coke perdeu força no Velho Mundo. Contudo, baseado nessa decisão, o juiz sir William Blackstone, no livro mais influente da era da fundação dos Estados Unidos, Commentaries of the Law of England, de 1765-1769, estabeleceu sua décima regra de construção jurisprudencial, que dispõe:

Com essas questões em mente, analisemos agora o contexto em que surgiu Marbury, um caso que ocorreu em meio à polarização política presente no início da fundação dos EUA. De um lado, havia os Federalistas, liderados por Alexander Hamilton e John Adams, a favor da ratificação da Constituição, e mais conservadores. Do outro, estavam os Antifederalistas, mais liberais e contrários à ratificação da Constituição.

Embora os antifederalistas tenham perdido a disputa política em um momento inicial, fundaram depois o partido Democrata-Republicano, que viria a ser a nova potência política do país, tendo como principais expoentes Thomas Jefferson, Aaron Burr (que viria a tirar a vida de Alexander Hamilton, em um duelo) e James Madison.

O monte Rushmore, em Dakota do Sul

Dean Franklin/WikiPedia

Cercado, o juiz Marshall então se eximiu de julgar o mérito do caso, afirmando que a Seção 13 do Judiciary Act of 1789, que dispunha da competência da Suprema Corte para julgar o caso, conflitava com o artigo III, seção 2, parágrafo 2, da Constituição Federal dos EUA[8].

No acórdão, a Corte realiza 3 perguntas: “1º. Tem o requerente o direito à comissão que demanda? 2º. Se tiver o direito, e esse direito tiver sido violado, as leis do país proporcionam-lhe um remédio? 3º. Se lhe proporcionam um remédio, é este uma ação expedida por essa corte?” [9]

Desta forma, fica consagrado, como provavelmente o principal precedente de toda a história da Suprema Corte americana (se não, de todas as cortes constitucionais do mundo), o seguinte entendimento:

“Então, a particular fraseologia da Constituição dos Estados Unidos confirma e fortalece o princípio, suposto ser essencial a todas as constituições escritas, de que uma lei repugnante à Constituição é vazia; e que as cortes, tanto quanto outros departamentos, são ligados a este instrumento.” [10].

Destarte, o caso Marbury v. Madison torna-se o primeiro exemplo de controle de constitucionalidade realizado por uma corte constitucional.

Apesar de Marbury, atualmente, ter um enorme prestígio, o fato é que, como explica o professor Robert Lowry Clinton, a decisão não teve relevância na época: os jornais falaram muito pouco a respeito, e até os tribunais não lhe concederam importância [11]. Além disso, segundo o professor Larry D. Kramer, o Dr. Boham’s case foi muito pouco citado na américa [12], e o juiz William Blackstone era a favor da supremacia parlamentar, e não, judicial [13]. Além disso, o famoso Federalista 78 não foi incluído na série de artigos federalistas que foram publicados nos periódicos da época, o que veio a ocorrer apenas em maio de 1788, na publicação do segundo volume de O Federalista, tarde demais para ter alguma influência sobre a Convenção de Ratificação, onde a maioria dos participantes ainda pensava em termos de constitucionalismo popular, e não, de supremacia judicial [14]. Em suma, segundo Lary D. Kramer, as poucas defesas da revisão judicial se davam no sentido de funcionar como um substituto à resistência popular [15].

Nesse sentido, indaga-se: porque então Marbury tornou-se um superprecedente? O que está por trás da “canonização” desse caso?

Depois de Marbury, a Suprema Corte americana apenas veio a realizar a revisão judicial novamente 62 anos depois, em 1865, no Dred Scott v. Sandford [16], no qual o tribunal decidiu a favor da escravidão – talvez a mais errônea decisão da história de todas as cortes constitucionais. Após a Guerra Civil, em 1896, no caso Plessy v. Ferguison [17], a Suprema Corte considerou constitucionais leis segregacionistas que estabeleciam a doutrina “separate but equal” (“separados, mas iguais”).

Finalmente, depois de mais de um século de julgamentos contrários aos Direitos Fundamentais pelo órgão que deveria protegê-los, em 1954, após o julgamento do caso Brown v. Board of Education of Tupeka [19], que decidiu pela inconstitucionalidade da segregação racial nas escolas do sul dos Estados Unidos, iniciou-se um período conhecido pelo mais forte ativismo liberal em toda a história da Suprema Corte americana, enquanto esta foi presidida pelo juiz Earl Warren, nomeado chefe da Suprema Corte pelo presidente Dwight D. Eisenhower.

É justamente nesse contexto, de uma corte atuante, que se inicia o processo de canonização de Marbury. Como explica Lowry Clinton, até 1958 o caso Marbury foi citado como precedente para a revisão judicial apenas dez vezes. Entre 1958 e 1983, porém, o precedente foi citado com essa finalidade 50 vezes [20]. O real motivo para esse brusco aumento na utilização desse caso como fundamento para a revisão judicial foi o fato de a Suprema Corte americana ter necessitado encontrar, de alguma forma, uma legitimação para a forte atuação que ocorreu nas decisões antissegregacionistas. Assim, em 1958, no caso Cooper v. Aaron, envolvendo segregação racial nas escolas, é que a Suprema Corte, citando Marbury, afirmou:

“[…] Esta decisão [Marbury] declarou o princípio básico de que o judiciário federal é supremo na exposição da lei da Constituição, e esse princípio sempre foi respeitado por esta Corte e pelo País, como uma permanente e indispensável característica de nosso sistema constitucional” [21],

Nesse sentido, conforme explicação de Keith Whittington e Amanda Rinderle, o caso “[…] Cooper v. Aaron transformou Marbury no moderno símbolo de poder judicial, e elevou o argumento de John Marshall a uma diferente dimensão, em direção ao standard judicial dentro da retórica legal no fim do século 20” [22].

A análise do caso Marbury demonstra o óbvio que se evita afirmar: as cortes constitucionais não são órgãos completamente independentes da política. Ora, ficou claro que a decisão tomada em Marbury ocorreu dessa forma pois o Juiz John Marshall não teria condições de vencer um conflito político contra os democrata-republicanos, liderados por Thomas Jefferson, que estava com uma alta popularidade. Além disso, durante a maior parte da história da Suprema Corte americana, Marbury não foi considerado um caso importante, tendo sido “requentado” para assim garantir-se legitimidade aos casos antissegregacionistas julgados pela Corte Warren.

Outra questão interessante a ser considerada, não a respeito especificamente do caso Marbury, mas da própria estrutura da corte constitucional, é que, apesar de esse órgão ser pensado para agir com um caráter contramajoritário, não há como desprezar o fato de que seus juízes são nomeados por um presidente eleito por uma maioria, sabatinados por um Senado também eleito por uma maioria, e julgam com base em um documento (a Constituição) que foi o resultado da vitória de uma maioria em algum momento. Há, portanto, um paradoxo que não pode ser negado.

Não defendo aqui, obviamente, a extinção da corte constitucional, ou que os juízes constitucionais devem deixar de decidir conforme princípios jurídicos, passando a adotar explicitamente, em suas decisões, uma argumentação política. Acredito ser importante que esse órgão não perca seu caráter de juridicidade. Tampouco defendo que a corte constitucional deva ser abolida, pois acredito que esse órgão exerce uma importante função no sistema de freios e contrapesos. Contudo, ressalto que não há como deixar de reconhecer o óbvio que muitas vezes evitamos: a corte constitucional não é um órgão completamente independente da política, e isso fica evidenciado no próprio contexto envolvendo o caso Marbury e sua canonização.

 


[8] Em todos os casos concernentes a embaixadores, outros ministros e cônsules, e naqueles em que um estado se achar envolvido, a Suprema Corte exercerá jurisdição de primeiro grau. Em todos os outros casos anteriormente citados, a Suprema Corte terá jurisdição de apelação, tanto de direito como de fato, com exceções e sob normas que caberá ao congresso estabelecer”. Tradução livre, nossa.

[21] Tradução, livre, nossa. Cooper v. Aaron 358 U.S. 1 (1958), p. 18.

Alexandre Freitas Couto é advogado, pós-graduado em Direito Constitucional, mestre em Direito Constitucional pela Universidade de Lisboa e doutorando em Constituição e Democracia pela UnB (Universidade de Brasília).

Consultor Júridico

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