Alexandre Pimentel: A internet, a lex algorítmica e as big techs

Numa tentativa de estabelecer uma harmonização sobre o conceito de internet, em outubro de 1995, o Federal Networking Council norte-americano aprovou uma resolução que definiu a grande rede como um sistema global de informação, o qual: “1) é logicamente ligado por um endereço único global baseado no Internet Protocol (IP); 2) é capaz de suportar comunicações usando o Transmission Control Protocol/Internet Protocol (TCP/IP) ou suas subsequentes extensões e/ou outros protocolos compatíveis ao IP; e 3) prover, usar ou tornar acessível, tanto publicamente como privadamente, serviços de mais alto nível produzidos na infraestrutura descrita” [1].

Por óbvio, esse conceito limita-se à Surface Web, porquanto pressupõe a adoção de protocolos lógicos que permitem a indexação e listagem de domínios pelos motores de busca.

No mesmo sentido, em 23 de abril de 2014, foi aprovada no parlamento brasileiro a Lei do Marco Civil da Internet (LMCI, Lei nº 12.965/2014), que estabeleceu os princípios sobre o uso da Internet indexada no Brasil, bem como direitos e deveres de usuários e provedores (de acesso à Internet e de aplicativos de Internet).

Constata-se que o regime jurídico da internet nos Estados Unidos da América segue diretriz liberal, com a adoção do monopólio privado, que vem sendo exercido pela empresa AT&T (American Telephone and Telegraph) [2]. Distintamente, a Europa adotara princípio diametralmente oposto ao norte-americano, isto é, o do monopólio público do controle das relações jurídicas na Internet.

Na doutrina, percebe-se que há um atrelamento do conceito de Internet ao de rede ou conglomerado de redes que possibilitam a comunicação em escala mundial, como prefere Testa Corrêa [3]. Por sua vez, Fabrízio Rosa reforça a ideia de agrupamento ou conjunto de redes […] interligadas pelo mundo inteiro, que têm em comum um conjunto de protocolos e serviços, possuindo a peculiaridade de funcionar pelo sistema de troca de pacotes, ou seja, as mensagens dividem-se em pacotes e cada pacote pode seguir uma rota distinta para chegar ao mesmo ponto” [4]. Snowden, por seu turno, define a internet como “[…] a rede universal que conecta a maioria dos computadores do mundo por meio de um conjunto de protocolos compartilhados” [5].

Do ponto de vista da cronologia do ordenamento jurídico brasileiro, inicialmente a Internet foi definida pelo artigo 3º da Portaria nº 148, de 31 de maio de 1995, do Ministério das Comunicações, como o “[…] nome genérico que designa o conjunto de redes, os meios de transmissão e comutação, roteadores, equipamentos e protocolos necessários à comunicação entre computadores, bem como o ‘software’ e os dados contidos nestes computadores” [6]

Em sequência, o inciso I do artigo 5º da LMCI aperfeiçoou o conceito de Internet, e, para manter relação de simetria com as proposições de estudiosos e organismos não governamentais, a definiu como “o sistema constituído do conjunto de protocolos lógicos, estruturado em escala mundial para uso público e irrestrito, com a finalidade de possibilitar a comunicação de dados entre terminais por meio de diferentes redes” [7]

Apesar da inegável dificuldade de controle estatal, a Internet não é um universo totalmente desprovido de leis, pois a “Lei Algorítmica” a autorregula a grande rede à margem da Lei Estatal. Há uma espécie de “ordenamento normativo”, ou, pelo menos, uma regulação na grande rede, ou, como prefere Lawrence Lessig, é factível a hipótese de regulação do comportamento dos internautas durante as navegações e transmissões de dados.

Lessig, que é um dos fundadores do Creative Commons (ONG) norte americana que objetiva expandir a disponibilidade e o acesso a obras criativas na internet, cujas licenças possibilitam cópias e compartilhamentos sem os rigores dos direitos autorais tradicionais, e que defende o direito à distribuição de bens culturais e do “fair use”, ou seja, o uso justo e honesto consentido pela legislação dos EUA para utilização de obras protegidas por direitos autorais quando aplicadas na educação e pesquisa [8], ele assere que na Internet há quatro espécies de regulações e que o usuário é o “ponto patético” no panorama virtual.

Como bem observou Lessig, as leis sobre direitos autorais, por exemplo, são uma clara maneira de regulamentação do comportamento dos usuários da Internet, pois “Apesar de originalmente a lei regulamentar apenas os editores, as mudanças no escopo do copyright significam que atualmente a lei regulamenta editores, usuários e autores. Ela regulamenta-os porque todos eles são capazes de fazer cópias, e o centro da regulamentação da lei do copyright são as cópias” [9].

Contudo, a ausência do Estado na internet não significa a presença de liberdade para os usuários, considerando que a arquitetura funcional da rede pode, por si só, representar uma modalidade de controle capaz, inclusive, de suprimir direitos fundamentais dos usuários [10]. A arquitetura da Internet é a sua lei, o seu código; e o código é a lei: a “lex algorítmica”.

No atual estado da arte, as big techs e os seus poderosíssimos sistemas computacionais inteligentes estão a estabelecer o que é e o que não é permitido na rede, incluindo balizas e restrições comportamentais dos usuários. Quem regula a rede é quem controla o código. Na teoria de Lessig, as quatro espécies de regulações ou de ferramentas de controle são: normas legais, regras sociais, o mercado, e a arquitetura da rede (o código). Entretanto, na internet a mais relevante de todas é a sua arquitetura: o seu “código” [11] a lex algorítmica.

O controle que existe na Internet, não é, necessariamente, aquele feito por um governo. O argumento nuclear do livro Código, de Lessig, é que uma mão invisível do ciberespaço está construindo uma arquitetura, bem diferente daquela que a inspirou em seu nascimento, ou seja, a Internet migrou de um ciberespaço anárquico para um locus de controle monopolizante e neopanóptico. Esse controle e sua governança podem se consolidar tanto pelo governo quanto pelo comércio, e está construindo uma arquitetura que aperfeiçoará os mecanismos de controle e pode tornar possível uma regulação altamente eficiente [12].

Assim, a lex algorítmica é representada pela arquitetura funcional do ciberespaço, a qual designa uma lei estrutural, um verdadeiro código lógico-informacional que rege o funcionamento da Internet, e, também, sob outra ótica, consiste numa compilação de regras de condutas sociais, as quais devem ser acatadas de modo impositivo pelos usuários da rede: “A vida no ciberespaço é regulada principalmente pelo código do ciberespaço. O Código é um regulador do ciberespaço porque define os termos nos quais o ciberespaço é oferecido” [13].

Mas, diante do fracasso da tentativa de regulamentação “jurídica” do ciberespaço, e considerando que não é concebível que as big techs fiquem fora ou por cima dos ordenamentos jurídicos estatais, é imperioso e urgente que cada Estado regulamente a atuação dessas empresas, a fim de proteger as liberdades individuais e a democracia.

A ausência de regulamentação estatal gerou uma ambiência capitalista ultraliberal, desterritorializada insurreta, gerida pela sua própria lei ou código, e que nem de longe garantiu aos indivíduos suas liberdades de escolha, ao contrário, o que se viu foi a transformação da Internet num ambiente selvagem, onde prepondera a lei do mais forte, isto é, das big techs.

Os episódios ocorridos em maio de 2023 no Brasil, quando o Twitter impediu postagens favoráveis ao projeto de lei das fake news e o Google direcionou os usuários no sentido de serem contrários a tal regulamentação estatal são exemplos incontestes da selvageria digital na qual estamos inseridos e, sob outra ótica, denunciam a premente necessidade de regramento jurídico da matéria.

Alexandre Freire Pimentel é professor doutor da Unicap (Universidade Católica de Pernambuco), da UFPE (Universidade Federal de Pernambuco) e desembargador do TJ-PE (Tribunal de Justiça de Pernambuco).

Consultor Júridico

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