Em janeiro deste ano, a empresa Americanas S.A, sociedade anônima de capital aberto, divulgou um fato relevante [1] aos seus investidores, a saber, a identificação de inconsistências contábeis que evidenciavam a ausência de reconhecimento de passivos financeiros na ordem de R$ 20 bilhões de reais, os quais — certamente — impactarão as demonstrações financeiras e de resultados da companhia.
Ainda que tenha comunicado que o “efeito caixa” das referidas distorções seria “imaterial”, ou seja, que não afetaria o pagamento de seus credores, fato é que a Americanas se viu pressionada a formalizar um pedido de recuperação judicial [2], argumentando estar enfrentando problemas de liquidez a curto prazo, notadamente em razão da decretação de vencimento antecipado de suas dívidas pelos bancos BTG Pactual e Votorantim, que teriam retido indevidamente os valores disponíveis em suas contas, ao menos, de acordo com as afirmações feitas pela Companhia em âmbito judicial [3].
Desde então, notou-se uma significativa e recorrente queda no preço das ações da companhia [4] — em aproximadamente 85% — após a constatação das referidas inconsistências e das acusações de fraude contábil [5] [6], que pressuporia — em tese — uma comprovação da atuação dolosa por parte de conselheiros, diretores e auditores da companhia.
Em razão disso, questiona-se como o direito societário poderia contribuir para a prevenção de fraudes e/ou adulteração das demonstrações financeiras? Sem discorrer sobre a responsabilidade dos acionistas controladores e dos administradores por ele indicados, como os demais acionistas deveriam, em geral, portar-se na fiscalização dos negócios da companhia?
Inicialmente, é preciso dizer que os conselheiros e diretores da companhia são obrigados a prestar contas de seus atos de gestão anualmente, nos termos do artigo 132 e seguintes da Lei de Sociedades Anônimas (Lei 6.404/76 ou LSA), cujas disposições são refletidas em seu estatuto social. Logo, os acionistas têm o direito de “examinar, discutir e votar” as demonstrações financeiras e de resultado econômico da companhia, assim como de solicitar, previamente e por escrito, os demais documentos que entenderem pertinentes para análise dos números apresentados. A assembleia ordinária, portanto, é uma ferramenta legal prevista para assegurar que os investidores tenham pleno acesso a quaisquer informações sobre os negócios da companhia, a fim de que possam atestar que as referidas demonstrações são fidedignas e refletem o seu atual estado econômico e financeiro.
Em seguida, importante frisar que, de acordo com o artigo 109 da Lei 6.404/76 [7], é direito essencial dos acionistas a fiscalização dos negócios sociais. Nesse ponto, considerando que o estatuto social [8] da Americanas S.A não disciplinou a forma, época e limites para acesso às informações e/ou documentos ligados às suas finanças e contabilidade, poderiam seus acionistas pleiteá-las a qualquer tempo, como, por exemplo, exigir uma cópia dos contratos de realizados perante as referidas instituições financeiras para — justamente — verificar se os juros dos empréstimos estariam corretamente refletidos em seus informes.
Dessa forma, os acionistas possuem um papel fundamental na fiscalização dos atos praticados pelos órgãos de administração, devendo se tornarem cada vez mais participativos — e ativos — na tomada das decisões do negócio, até para que possam identificar potenciais fraudes e/ou irregularidades e, se for o caso, deliberar sobre a necessidade de correções ou ajustes nas demonstrações financeiras, porquanto são as pessoas mais interessadas na valorização de suas ações. Obviamente que a organização dos investidores em discussões dessa natureza não é tarefa fácil, mas, considerando sua relevante participação societária com direito a voto [9], poderiam ter influído na prevenção do problema narrado.
Ainda, convém observar que a construção de uma adequada estrutura de governança corporativa poderia evitar situações similares àquelas experimentadas pela Americanas, tal como o funcionamento permanente de um conselho fiscal, o qual teria a independência necessária para avaliar os princípios, premissas e rigor técnico aplicado na elaboração dos relatórios da companhia e propor aos acionistas a correção das inconsistências, antes da divulgação das demonstrações contábeis. O poder atribuído aos conselheiros fiscais é maior que àquele conferido ao comitê de auditoria, cujo órgão tem uma finalidade precípua de assessorar o conselho de administração [10] e que está subordinado às suas orientações.
Em resumo, apesar do direito societário apresentar mecanismos preventivos e auxiliares para mitigar riscos e/ou fraudes na elaboração das demonstrações financeiras, o caso Americanas é extremamente útil para demonstrar que os acionistas, gestores, auditores e consultores externos devem participar, refletir e construir processos de fiscalização e controle mais efetivos e que estejam alinhados com o interesse da companhia, corrigindo defeitos organizacionais que podem colocar em xeque a continuidade dos negócios.
[4] De acordo com o pedido de recuperação judicial da Americanas S.A, cada ação negociada pela Companhia estava avaliada em R$ 12,00, tendo como data base 11.01.2023. Após a divulgação de Fato Relevante e a propositura do , cada ação da Companhia está avaliada em R$ 1,02, considerando a data base 05.03.2023, conforme as informações obtidas em seu sítio eletrônico: https://ri.americanas.io/
Lucas Alves Canha é sócio do escritório Passinato & Graebin, advogado com atuação estratégica nas áreas de Direto Contratual, Societário e arbitragem, pós-graduado pela CEU Law School no programa de LL.M. em Direito e Prática Empresarial e com certificação em Direito Societário Avançado.